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Cuidado e Educação de Crianças Pequenas no Brasil

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 58-73)

2 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO

2.1 Cuidado e Educação de Crianças Pequenas no Brasil

Os estudos acadêmicos sobre educação infantil (EI) vêm se ampliando nos últimos anos, conforme o mapeamento dos grupos de pesquisa realizado nas bases de dados de agências que regulam e fomentam a pesquisa acadêmica no Brasil, dentre elas o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Esse mapeamento, produzido por Silva, Luz e Faria Filho (2010), investigou grupos de pesquisa que tomaram por tema, explicitamente, a infância, criança e EI, no ano de 2008. Apesar da ampliação dos estudos, para os autores, a produção referente à creche ainda é pouco representada dentre os trabalhos acadêmicos da pós-graduação.

Provenientes principalmente da Educação (40,3%) e realizados no Sul (22,6%) e Sudeste (37,3%), as principais temáticas nas palavras-chave das linhas de pesquisa, dos grupos de pesquisa localizados, se referiram à infância, às crianças, à formação de professores (as) e às políticas. A partir dos anos 1990, os temas que ganharam destaque foram cultura, cultura infantil, práticas educativas, o brincar, as crianças como atores sociais e como reprodutores e produtores de cultura, o que pode estar associado à ruptura paradigmática proposta pelos estudos sociais da infância (SILVA; LUZ e FARIA FILHO, 2010).

Cabe destacar que, a partir do descritor “creche”, na busca das temáticas trabalhadas nos grupos de pesquisa, Silva, Luz e Faria Filho (2010) encontraram apenas seis grupos na área da Educação e cinco na área da Psicologia, um total de onze grupos, o que correspondeu a 3,4% do total de grupos registrados na base de dados do CNPq, em 2006. Quando a busca com o mesmo descritor foi realizada

dentre as palavras-chave utilizadas, a creche apareceu apenas cinco vezes. O mesmo ocorreu com o descritor “criança pequena” que localizou apenas dois grupos de pesquisa. Essa baixa incidência pode indicar que as pesquisas continuam enfocando crianças, ou o trabalho com crianças acima de 3 anos (SILVA; LUZ e FARIA FILHO, 2010).

Em épocas recentes, tem-se apontado que a creche e a criança de 0 a 3 anos não ocupam o mesmo lugar que a pré-escola e as crianças entre 4 e 5 ou 6 anos, apesar de, desde a Constituição Federal de 1988, a creche ser considerada um direito da criança. O privilégio atribuído à pré-escola, em detrimento da creche, não é particularidade da produção acadêmica, mas é compartilhada por outros setores da sociedade brasileira, particularmente as políticas de EI.

Conforme apontado por Nascimento (2011), a categoria idade contribui para se entender o respeito e a restrição dos direitos da criança. Decorrente da subordinação da infância em relação à adultez, a creche, em específico, adquire pouca atenção no âmbito político. Para a autora, a concepção de infância subordinada, vulnerável, frágil, contribui para a definição de práticas sociais protetivas e de controle. A creche, muitas vezes, é apresentada como sendo um sistema de proteção e preparação para o futuro da criança pequena.

Em contrapartida, no plano legal, como vimos, desde a primeira metade da década de 1990, as políticas públicas para a pequena infância pautam-se na concepção de criança como sujeito de direitos e ator social. O descompasso existente entre os planos legal e concreto fazem com que as potencialidades e as oportunidades das crianças menores não sejam totalmente viabilizadas e concretizadas (NASCIMENTO, 2011).

Estudos de pesquisadores do NEGRI vêm se referindo à “dívida histórica” da sociedade brasileira para com a creche e a criança pequena. Essa dívida histórica decorre de uma desigual distribuição de rendimentos e de benefícios de políticas sociais. Os gastos por aluno são expressivamente inferiores quando referentes às crianças pequenas (IPEA, 2008 apud ROSEMBERG, 2009a).

Além disso, é assinalada pelas taxas de cobertura ou de freqüência à creche entre crianças brasileiras: tem-se observado que a taxa de frequência à creche é inferior à da pré-escola e a taxa de frequência à creche entre crianças de 0 a 3 anos é a menor entre os grupos de idade que frequentam escola no Brasil. Observa-se

que essa taxa é mais intensa para crianças brancas, de nível socioeconômico superior (tabela 1).

Tabela 1 – Taxa de frequência bruta (%) à creche/escola (EI/EF), por variáveis selecionadas. Brasil, 1995 e 2008.

Fonte: IBGE (2009 apud ROSEMBERG, 2009a).*Inclusive a população rural da região Norte. EI = educação infantil; EF = ensino fundamental.

Rosemberg (2008) afirma que o resgate da dívida, da sociedade brasileira, com a criança pequena e a creche, pode ser iniciado colocando-se ambas em evidência, para que adquiram visibilidade pública e fortaleçam seu poder de negociação, no debate público, sobre as prioridades no campo das políticas públicas. Isto é, nosso objetivo “enquanto pesquisadores (as) [é] “desevidenciar” processos de naturalização de opções históricas, de construções sociais” (p. 14) que colocaram a criança de 0 a 3 anos e a creche em posição desvantajosa na arena de políticas públicas.

O processo de tornar as crianças visíveis está atrelado à sua presença nas pesquisas estatísticas sobre as condições socioeconômicas das crianças pequenas. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) produz, organiza e publica estatísticas sobre crianças entre 0 e 6 anos de idade, a partir de diferentes fontes, desde 1980. Já as informações socioeducacionais das crianças até 4 anos “(...) começaram a ser incluídas nas PNADs a partir de 1995, tendo sido incluídas no censo demográfico somente em 2000” (KAPPEL, 2001 apud NASCIMENTO, 2010, p. 558). O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos Anísio Teixeira (INEP) realizou

1995 2008* 1995 2008*

Brasil* 5,7 18,1 53,4 79,7

Região mais pobre: Norte 5,7 8,4 55,1 72,5

Região mais rica: Sudeste 8,1 22 55,1 82,9

Brancos 8,7 20,6 56,2 81,8

Pretos e pardos (negros) 6,2 15,5 50,5 78,2

Residência urbana 8,7 20,6 56,2 81,8

Residência rural 6,2 15,5 50,5 78,2

Famílias mais pobres (quintil inferior de renda familiar per capita) 5,3 10,7 43,1 72,7

Famílias mais ricas (quintil superior de renda familiar per capita) 17,1 37 71,3 93,8

“O primeiro registro nacional das instituições que atendem crianças pequenas, para conhecer a dimensão do atendimento, (...) em 2000” (NASCIMENTO, 2010, p. 558). O Censo Escolar é um levantamento também realizado pelo INEP e os resultados obtidos entre 2006 e 2008 apontam para um aumento no número de matrículas em creches de 1.427.942 para 1.739.188 crianças entre 0 e 3 anos, sendo que a síntese de indicadores veiculados pela PNAD de 2008 apontam que o grupo de crianças entre 0 e 4 anos de idade compõem 7,3% da população nacional, totalizando 13.743.000 pessoas (NASCIMENTO, 2010).

A visibilidade pública das crianças também implica na qualidade com que seu direito à educação é viabilizado. Para Nascimento (2010), a creche é uma instituição importante para a criança no seu processo de desenvolvimento das suas múltiplas linguagens. Esse objetivo é alcançado quando o atendimento se pauta em formação adequada dos profissionais; na organização do espaço físico e do tempo, de forma que possibilite o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e social da criança; na proporção ideal de adultos e crianças; em um projeto pedagógico e de gestão adequados. Porém, as últimas pesquisas têm mostrado que a qualidade da EI, particularmente da creche, é insatisfatória (Campos et al., 2011).

Campos e colaboradores apresentam uma revisão de dados empíricos, sobre a qualidade de creches e pré-escolas, levantados entre 1996 e 2003, de autoria de Campos, Füllgraf e Wiggers (2006). Nessas pesquisas os principais problemas encontrados referiam-se às dimensões da formação de pessoal; currículo; práticas pedagógicas; condições de infraestrutura e relações com as famílias. Em todas essas dimensões as creches, em particular, apareciam em situações mais precárias.

As avaliações de qualidade recentes mostram que essas disparidades e ambiguidades permanecem na atualidade, conforme Campos e colaboradores (2011). Os resultados apresentados por esses autores compõem a análise realizada em 147 instituições de seis capitais brasileiras, no segundo semestre de 2009. No total foram avaliadas 229 turmas de crianças com idades de creche e de pré-escola.

A pesquisa Educação infantil no Brasil: avaliação qualitativa e quantitativa

(CAMPOS et al, 2011) revela diferenças regionais da qualidade de EI entre os diferentes segmentos sociais, etários e entre as diferentes regiões brasileiras. Essas divergências são traduzidas na heterogeneidade de métodos de trabalho e condições de funcionamento, piores nas creches; disparidades nos valores gastos,

por ano, com cada aluno; diferenças na formação profissional da equipe, mais precárias nas creches, e rotinas rígidas de alimentação e cuidados pessoais.

Campos e colaboradores (2011) avaliaram 91 turmas de crianças em idade de creche a partir de subescalas relativas às rotinas de cuidado pessoal; atividades e interação. Os itens sobre refeições/merendas, sono e práticas de saúde, subjacentes às rotinas de cuidado pessoal obtiverem nível inadequado. A subescala das atividades foi a que recebeu as avaliações mais preocupantes, na qual todos os itens foram avaliados como inadequados, a saber: atividade motora fina; atividade física; arte; música e movimento; blocos; brincadeira de faz de conta; brincadeira com areia e água; natureza/ciências; uso de TV, vídeo e/ou computadores; promoção de aceitação da diversidade. A subescala interação foi a mais bem avaliada, principalmente no item interação criança-criança, a qual parece ser valorizada pelas instituições.

As creches avaliadas na pesquisa de Campos e colaboradores (2011) que obtiveram melhores medidas de qualidade correspondiam a estabelecimentos exclusivos para crianças em idade de educação infantil, com cinco ou mais salas e com maior número de recursos e/ou equipamentos; atendiam crianças que utilizavam transporte escolar; sem matrícula automática para filhos de funcionários; com salário de diretor superior a 9 salários mínimos; com professores mais jovens e que informavam realizar mais de 8 atividades diárias diferentes, com as crianças; localizadas em bairros com baixa intensidade de responsáveis, por domicílio, com escolaridade menor que sete anos.

Esses indicadores apontam para negligência, na maioria das instituições avaliadas, de aspectos importantes para o cuidado e educação de crianças pequenas. Além sugerir que não “(...) só o acesso é mais difícil para os segmentos de menor renda, mas também a qualidade da educação oferecida nas instituições localizadas nesses bairros [com piores condições socioeconômicas] tende a ser pior” (CAMPOS et al, 2011, p. 47).

Ainda, essa pesquisa identificou que vem ocorrendo um aumento significativo da oferta em creches e pré-escolas, porém a obtenção de dados precisos é dificultada, pois os dados são apresentados de forma agregada, por faixa etária. Quando as análises são feitas fragmentando essas idades, por exemplo, 0-1, 1-2, os dados são significativamente diferentes. No caso das capitais Belém, Teresina e

Fortaleza, dentre as capitais que compuseram o estudo, o atendimento em berçários é pequeno. As crianças que frequentam a creche têm 3 anos ou mais, mesmo tendo sido estipulado na LDBEN que a creche deve atender crianças de 0 a 3 anos (CAMPOS, 2011a).

Os valores calculados para os gastos das creches estão aquém daqueles estipulados pelo Custo Aluno Qualidade (CAQ). A oferta de EI, isto é, de pré-escolas e de creches, é de responsabilidade municipal e o valor arrecadado em cada cidade tem diferenças, muitas vezes discrepantes. Isso, por sua vez, é materializado em diferenças na remuneração de professores e na infra-estrutura da instituição escolar. Por exemplo, o número de crianças por sala, salas mal ventiladas, pouca diversificação das atividades, falta de material, falta de brinquedos, falta de livros, alimentação e higiene comprometidas, entre outros (CAMPOS, 2011a).

Porém, algumas explicações têm sido levantadas para se entender essa situação, associadas, muitas vezes, às políticas públicas para crianças pequenas. Iniciamos com a origem das creches como instituições destinadas à pobreza e ao abandono de crianças, o que foi denominada por Rosemberg (2009c) como a marca

da origem. A primeira aparição escrita do termo creche ocorreu no jornal A Mãi de

Família, publicado entre 1879 a 1888, em uma matéria publicada intitulada “A creche

(asilo) para a primeira infância” (KUHLMANN JR, 2000, p. 471). Nessa matéria, Dr. Vinelli, médico da roda dos expostos, deixa claro o propósito da creche: ela serviria como alternativa às crianças recém libertas pela lei do “Ventre Livre”, mas cujas mães permaneciam escravas (ROSEMBERG, 2009c).

No século XX, especificamente no período da Guerra Fria, Cavagnari Filho (1994 apud ROSEMBERG, 1997) aponta que os Estados Unidos, com posição hegemônica, impuseram um planejamento estratégico-militar para os países da América Latina, a fim de proteger seus interesses econômicos e estratégicos na região. No Brasil, primeira região a instalar um regime de Segurança Nacional no período de regime ditatorial, criaram-se duas frentes de atuação, para garantir a imposição de um sistema de controle e dominação contra quaisquer tipos de oposições (ROSEMBERG, 1997). Uma frente foi a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), cuja filosofia subjacente era a criação de uma Nação total com interesses e um destino sob responsabilidade de execução do Estado, a saber: “(...) integridade territorial; integração nacional; democracia; progresso social; paz social e soberania”

(ROSEMBERG, 1997, p. 143). A segurança exigia desenvolvimento econômico, pois o poder militar estava ligado ao desenvolvimento industrial e tecnológico do país; e social, pois a falta de atenção para as desigualdades sociais podia ser um fator disparador para tensões e lutas (ROSEMBERG, 1997).

A segunda frente de atuação foi definida pela ONU, em 1956, como um processo de união dos esforços da população aos das autoridades do governo, capacitando a “comunidade” à contribuição plena ao progresso do país. Para garantir o progresso, concebia-se como necessária a atuação, principalmente para com as crianças, em áreas de saúde, alimentação e educação, para a prevenção da ociosidade e mendicância decorrentes do abandono infantil e da decadência moral. “Em outras palavras, o Desenvolvimento Comunitário (DC) e a participação comunitária constituíam, no período, estratégias propostas para integração social e nacional de pessoas ou regiões desintegradas do processo de desenvolvimento” (ROSEMBERG, 1997, p. 147).

Nesse bojo de estratégias, em 1977, foi implantado um programa de educação pré-escolar de massa – Projeto Casulo. Seus objetivos situavam-se nas áreas de assistência à infância, objetivando seu desenvolvimento integral, mas que tinham o caráter da prevenção. Naquele momento, o Projeto Casulo era uma estratégia preocupada com a ameaça dos pobres à integração nacional. A proposta era criar um atendimento pré-escolar universal, de baixo custo, com construções simples, utilização de espaços “ociosos” ou cedidos pela população, bem como, ser desenvolvido por meio do trabalho voluntário ou semi-voluntário de pessoas da “comunidade” (ROSEMBERG, 1997).

Esses modelos estiveram alinhados aos interesses e orientações de organizações como o Banco Mundial, o UNICEF e a UNESCO, que definiram, para países subdesenvolvidos, uma estratégia de EI fundamentada em recursos da comunidade, com o menor custo público possível. Foram, então, desenvolvidos modelos de “EI pobre para pobres”. Além disso, foi priorizado um modelo familiarista, focado na educação de mães, para o cuidado das crianças no contexto privado, da casa, pautados, principalmente, em conceitos de rede de proteção social (ROSEMBERG, 2008; 2009c).

As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por um intenso crescimento de EI (802%). Porém, essa expansão considerável ocorreu em função da proliferação

de instituições com baixa qualidade, profissionais sem formação específica para a área. Havia duas especificações ou denominações diferentes para o ensino infantil, creches e pré-escolas, diferenciadas não pela idade das crianças, mas pelas condições sociais de seu público-alvo. A alternativa pobre para os pobres gerou um conjunto de discriminações para as populações negras, para as mulheres e para as crianças pobres (ROSEMBERG, 2009c).

Uma oposição a essa tendência veio, no Brasil, com os movimentos feministas que reivindicaram a creche como direito, sobretudo da ótica da mãe trabalhadora. Em um cenário de repressão à liberdade de expressão e organização da sociedade civil, após o golpe militar de 1964, emergiram, particularmente, na cidade de São Paulo, organizações da sociedade civil. As mulheres participavam desses movimentos em organizações próprias, vinculadas ou não à Igreja Católica, ou em associações para todos (ROSEMBERG, 1984).

No ano de 1975, ano considerado como o ponto de partida do movimento de

mulheres na contemporaneidade brasileira, no Encontro para Diagnóstico da Mulher

Paulista, tem-se uma das primeiras vezes em que ocorre a reivindicação pública por

creches

(...) é necessário que todas as mulheres, os representantes das sociedades amigos de bairros, clubes de mães e interessados em geral, desenvolvam juntos um programa que venha resolver o problema das creches na cidade de São Paulo (BRASIL MULHER, nº5, 1976, p.12 apud ROSEMBERG, 1984).

Conforme apresentado por Rosemberg (1984), no início, os movimentos que

eram isolados, articularam-se posteriormente, em 1979, no Movimento de Luta por

Creches, formado por feministas, mulheres de diferentes partidos políticos,

associadas ou não à Igreja Católica e por moradoras de bairros que reivindicavam por creche.

Apesar das conquistas nesse período de luta por creches, essa instituição continuou a ser considerada provisória, destinadas a algumas mães e a criança pequena continuou vinculada ao espaço privado (ROSEMBERG, 1984).

Essas interferências levaram a creche a ser incluída na plataforma feminista para a CF de 1988, a qual contou com a contribuição da sociedade civil, por meio de

emendas populares e audiências públicas, com intensa mobilização de sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais (ROSEMBERG, 2008).

Conforme Mariano (2010), a CF de 1988 e o ECA foram inspirados pela ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (1989). Esses documentos marcaram o engajamento de diferentes atores sociais em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes, possibilitando uma formulação gradativa de políticas para esses segmentos etários. Contudo, a autora destaca o descompasso existente entre essa grande mobilização em torno dos direitos das crianças e dos adolescentes e a permanência de indicadores de desigualdade e injustiça em relação a esses grupos populacionais.

A divulgação dos novos direitos das crianças e adolescentes, como descrito por Mariano (2010), centrou-se no combate das situações irregulares, nas políticas assistencialistas e correcionais dirigidas às crianças e adolescentes pobres. Essas ações foram fundamentadas nas concepções de abandono físico e moral, de desvio e delinquência, da criminalidade e das crianças e adolescentes em situação de rua.

Os argumentos que sustentaram que o ECA representava um avanço repousaram, sobretudo, no seu mérito de estender os direitos sociais ao conjunto das crianças e adolescentes brasileiros. Entretanto, temos observado que são as problemáticas associadas ao “risco” ou ao “desvio” que prevalecem nos debates e na agenda de implementação dos direitos da criança e do adolescente. Ou seja, tem preponderado a preocupação com as políticas de proteção especial e não as políticas sociais (MARIANO, 2010, p. 120).

Mariano (2010) aponta que o foco direcionado ao “risco” pode contribuir para as propostas de políticas públicas que reiterem as desigualdades sociais, que promovam e reproduzam a exclusão de segmentos sociais menos favorecidos. Para essa autora, houve estigmatização da pobreza nas intervenções em favor das crianças e adolescentes em situação de violação de direitos. As práticas desenvolvidas adquiriram um caráter caritativo, assistencialista, preocupadas principalmente nas condições sociais básicas dos setores mais pobres. Assim, “(...) se delineiam intervenções sanitárias, educativas e nutricionais para superar as múltiplas carências que afetam as crianças pobres” (PILOTTI, 2000, p. 40 apud MARIANO, 2010, p. 51).

Essa mobilização por políticas sociais de caráter emergencial, focalizadas em grupos populacionais específicos, especialmente pobres, constituíram o cenário político brasileiro, em particular, os debates constituintes a respeito da EI e da creche. Foram representados por uma fragilidade no consenso, estreitando as possibilidades de debate referente às tensões subjacentes aos direitos especificados nos diferentes marcos legais.

Rosemberg (2010a) aponta a permanência da tendência de cisão entre creche e pré-escola, com valorização dessa última em detrimento da creche. Para essa autora as emendas dos parlamentares pouco se ativeram à creche como um direito da criança, focalizando-a como um direito associado ao trabalho da mãe e do pai. As emendas populares, especialmente originárias de entidades privadas, enfatizavam a obrigatoriedade da oferta de pré-escola, omitindo a creche.

Nas discussões da LDBEN, por exemplo, Rosemberg (2010a) destaca a manutenção dessas tensões: nas versões preliminares, a creche não fora contemplada. Porém, pressões posteriores fizeram com que toda a EI, entendida como creche e pré-escola, fosse integrada ao sistema educacional, como primeira etapa da educação básica.

Além disso, a LDBEN especifica a exigência de formação profissional em, pelo menos, nível médio, com licenciatura que ofereça conhecimentos e prática de ensino em EI, a fim de possibilitar a atuação no processo de desenvolvimento integral da criança (dimensões física, psicológica, intelectual e social (NUNES, et al, 2011). A distinção entre creche e pré-escola passou a ser em função exclusiva da faixa etária das crianças: 0 a 3 e 4 a 6 (recentemente alterada para 4 e 5), respectivamente (ROSEMBERG, 2010a).

As tensões também estiveram presentes nas políticas econômicas, de financiamento da educação básica. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (BRASIL, 2011b) mobiliza recursos em função de um compromisso do governo federal com toda a educação básica, a fim de ampliar o volume de recursos destinados à educação brasileira. A proposta é distribuir tais recursos de acordo com o desenvolvimento social e econômico de cada região, promovendo uma redistribuição desses recursos. O parâmetro utilizado, para a definição do destino dos investimentos, é o número de alunos da educação básica apresentado pelo censo escolar anual (BRASIL, 2011a).

A inclusão da creche para participar da distribuição do Fundo só ocorreu após

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