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O cuidado de si no período contemporâneo

PARTE I: O SUJEITO, A CONDIÇÃO HUMANA E O

4. O CUIDADO DE SI

4.3 A HISTÓRIA DO CUIDADO DE SI

4.3.4 O cuidado de si no período contemporâneo

O pensamento filosófico contemporâneo começa com as obras de Immanuel Kant (1724 – 1804) e chega até nossos dias. Kant imprimiu uma nova orientação à atividade especulativa da humanidade, encaminhando-a decididamente pelos caminhos do idealismo e do subjetivismo. Discute a questão gnoseológica (Teoria do conhecimento

em geral) adotando uma solução imanentista (o que está contido na natureza de um ser) que influi profundamente no pensamento posterior. Para ele, o conhecimento não é apenas resultante da atividade investigadora, mas o sujeito traz consigo algumas categorias mentais que torna possível o conhecimento e a própria sistematização do conhecimento (REIS, 2006).

O pensamento contemporâneo posterior a Kant manifesta, antes de tudo, duas tendências aparentemente opostas, mas, no fundo, filhas de uma mesma estrutura - o pensamento imanentista. A primeira tendência refere-se ao pensamento idealista de Hegel que nega a objetividade do conhecimento e reduz o ser ao pensamento. A segunda, o positivismo, é contrário ao idealismo por entender que o conhecimento é fruto de uma experiência real à qual o sujeito se submete.

Kant em sua obra “Crítica da Razão Pura” de 1782, defende a proposta de uma filosofia crítica visando superar a dicotomia entre racionalismo e empirismo, examinando as condições de possibilidade da experiência humana do real e fundamentar a pretensão ao conhecimento, demarcando os casos legítimos em que se produz conhecimento dos casos em que a pretensão ao conhecimento é infundada. Kant considera, ao contrário do que propunha a filosofia tradicional, que os objetos de nosso conhecimento devem conformar-se à nossa estrutura cognitiva, e não o conhecimento à natureza do objeto. No início da “Crítica da Razão Pura” Kant apresenta as questões fundamentais acerca da possibilidade do conhecimento em três seções: a Estética, que trata das formas puras da sensibilidade, espaço e tempo, que nos permitem percepções sobre objetos do mundo externo; a Analítica, que examina a estrutura de nosso entendimento a partir da qual determinamos conceitualmente aquilo que percebemos espaço temporalmente; e a Dialética, que examina os usos da razão em que não obtemos conhecimento (HUISMAN, 2001; MARCONDES, 2007).

Para Hegel (1770 – 1831) a filosofia deve examinar a consciência como resultado de um processo de formação, mas também de seu lugar na história, já que é formada pela cultura a que pertence. A obra de Hegel é fortemente sistemática, procurando dar conta dos últimos aspectos do saber humano em busca da verdade e em sua direção ao absoluto, o que constitui em última análise sua finalidade. Em seu texto, a “Fenomenologia do Espírito” Hegel nos trás uma análise dialética do processo de formação da consciência como determinado pela relação com o outro. A relação entre as duas consciências, impondo-se ao outro como sujeito e suas subjetividades, mas que se visam mutuamente como objeto, trata-se da luta que as consciências travam entre si. Segundo

Hegel “...o duplo sentido do diferente reside na própria essência da consciência-de-si: (pois tem a essência) de ser infinita, ou de ser imediatamente o contrário da determinidade na qual foi posta. O desdobramento do conceito dessa unidade espiritual, em sua duplicação, nos apresenta o movimento do reconhecimento”(HEGEL, 1992 p.178).

Para Nietzsche (1844 – 1900) a liberdade não é mais que a aceitação consciente de um ensino necessitante. O homem libertado de qualquer vínculo, senhor de si mesmo e dos outros, o homem desprezador de qualquer verdade estabelecida ou por estabelecer e apto a viver em todo os seus atos, era o ideal apontado por ele para o futuro da humanidade. No ensaio “Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral”,Nietzsche afirma que aquilo que consideramos verdade é mera “armadura de metáforas, metonímias e antropomorfismos”. Seu objetivo é desmistificar a “verdade”, revelando-a como um conceito fabricado, criado histórica e socialmente (MARCONDES, 2007).

Para Nietzsche o problema da origem do instinto de verdade está ligado ao da origem da linguagem, pois segundo ele ser verídico é utilizar metáforas usuais e obrigatórias. A verdade é desenvolvida e aprofundada em Gaia Ciência publicada em 1882 ganhando desde então papel capital no pensamento de Nietzsche. Nesta obra o autor aponta que a crença na ciência nasceu “a despeito de a inutilidade e o perigo da vontade de verdade, de verdade a qualquer custo, serem constantemente demonstrados (...)”. (HUISMAN, 2001 p.729).

Heidegger (1889 – 1976), em sua tese “Ser e Tempo”, aborda o esquecimento do ser na filosofia ocidental. Em um dos trechos centrais deste texto, Heidegger examina a relação originária entre verdade e ser, analisando a verdade como manifestação do ser, o que seria para ele o sentido literal do termo grego aletheia (verdade). Mostra também que desde Aristóteles até a modernidade, a verdade passa a ser considerada uma propriedade de proposições, definindo-se como a adequação ou correspondência entre a proposição e o real, tendo, portanto, um sentido lógico e epistemológico e não mais essencialmente ontológico (MARCONDES, 2007).

Na obra de Foucault (1926 – 1984) o tema do cuidado de si mesmo foi abordado de forma específica durante o curso ministrado no Collège de France nos anos de 1981 e 1982, e publicado no Brasil sob o nome de “A hermenêutica do sujeito”, embora tenha também abordado a temática em outras obras (FOUCAUL, 2004; BUB et all, 2006).

Foucault distingue a filosofia e a espiritualidade como coisas distintas e essenciais ao cuidado de si mesmo. A filosofia como forma de pensamento que determina as condições de acesso do sujeito à

verdade. A espiritualidade é a pontada como a busca das práticas, das experiências por meio das quais o sujeito se modifica para ter acesso à verdade. A verdade não se oferece imediatamente ao sujeito por um ato de conhecimento, implica em uma conversão (Eros ou áskesis); o acesso à verdade produz certos efeitos sobre o sujeito.

Para Foucault a modernidade começa quando o acesso à verdade passa a ser uma questão de conhecimento que certamente implica em condições internas (método) e externas (consenso em estudos), mas que não envolvem o sujeito em sua estrutura interna. Em outras palavras, a modernidade começa quando a verdade se vê incapaz de salvar o sujeito (CASTRO, 2004).

As diferentes formas e abordagens sobre o cuidado de si ao longo da história e da filosofia. No período pré-socrático o pensamento e posteriormente a relação dele com a verdade surgem como marcos iniciais do cuidado de si. Na seqüência, temos no período clássico o momento filosófico mais significante do cuidado de si claramente encontrado nas obras de Sócrates e Platão. A busca da verdade e das suas bases como o prazer, a felicidade, a natureza das sensações e a própria dúvida sobre a verdade tornaram-se o eixo norteador deste período. No Cristianismo, as formas de pensar se modificam passando às verdades reveladas apenas por Deus aos homens, trazendo discussões sobre o certo e o errado, sobre o bem e o mal, o problema do conhecimento, e a relação do homem com Deus. Neste período as questões divinas estão acima das questões do homem, ficando o cuidado de si relegado, sendo a espiritualidade o aspecto principal da existência humana.

No pensamento moderno surgem manifestações inversas ao período anterior passando agora à interesses e ideais materiais e terrenos em relação aos ideais espirituais e religiosos. Neste período o pensamento, a moral, a liberdade, a natureza do corpo e da alma, a ética e o entendimento da condição humana passam a ser os elementos chaves na origem do conhecimento sobre as coisas e sobre a natureza humana. A teoria do conhecimento, a sistematização do conhecimento e as formas as quais o homem chega a ele são questões filosóficas marcantes no início do período contemporâneo. A negação da objetividade do conhecimento e a redução do ser ao pensamento; a desmistificação da verdade e a liberdade do homem em relação às verdades pré- estabelecidas surgem como forma de certo rompimento com estes conceitos teóricos que por vezes implicavam no distanciamento do sujeito de si próprio. Nota-se nas obras de Heidegger e Foucault o resgate claro da temática do cuidado de si quando nos é novamente

demonstrado o pensamento como forma de acesso do sujeito a verdade. Que para o sujeito ter acesso à verdade necessita da modificação pela espiritualidade; e que a verdade passa a implicar em conversão do sujeito, ou como forma de salvar o sujeito. Após esta breve análise sobre a temática do cuidado de si, nos atrevemos a apontar o pensamento, a liberdade, a verdade, e o conhecimento como aspectos que sustentam o cuidado de si ao longo da história e da filosofia, daí sua relevância enquanto tema de nosso estudo.