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PARTE I: O SUJEITO, A CONDIÇÃO HUMANA E O

4. O CUIDADO DE SI

4.3 A HISTÓRIA DO CUIDADO DE SI

4.3.2 O cuidado de si no período cristão

O período cristão consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e devidamente interpretadas segundo a autoridade da Igreja. No plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, traçando um quadro intelectual em que a fé cristã era o pressuposto fundamental de toda sabedoria humana.

De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas, especialmente aquelas verdades essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Assim, toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Segundo essa orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca da verdade, pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé (LENTSMAN, 1988).

Por outro lado, haviapensadores cristãos que defendiam o conhecimento da filosofia grega, na medida em que sentiam a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e demolir os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tanto

quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios divinos, somente acessíveis à fé.

Sob a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões filosófico-teológicas, tentando conciliar a fé e a razão. Entre os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino tidos como responsáveis pelo resgate cristão das filosofias de Platão e de Aristóteles (LENTSMAN, 1988).

Santo Agostinho (354 – 430) foi o primeiro grande pensador a elaborar uma síntese sistemática entre a tradição filosófica grega e o platonismo e o cristianismo. Em seus textos aparecem como temas centrais a natureza do bem e do mal, a questão da linguagem e problema da verdade e do conhecimento, e a relação do homem com Deus (AGOSTINHO, 1991).

O pensamento agostiniano considera histórica e sistematicamente a verdade como o ponto de partida preocupando-se com a possibilidade da verdade absoluta no curso de sua vida pressupondo que a verdade deve ser sempre necessária e eterna. Para ele o tema não parte, como a filosofia antiga, das verdades transcendentais, mas de fatos de evidência imediata, dos dados da consciência, como o fará mais tarde Descartes descobrindo um novo gênero de verdades: as verdades de consciência. Segundo Agostinho podemos duvidar do mundo exterior da consciência dizendo: Mas "quem duvidará que vive, lembra-se, entende, quer, pensa, conhece e julga? pois, se duvida, vive…. se duvida, sabe que não sabe com certeza; se duvida, sabe que não pode dar o seu assentamento temerariamente" (De Trin., X, 10 in HIRSCHBERGER, 2009).

Agostinho vai além das verdades de ordem ideal, como a matemática. Foi precursor do cogito ergo sum cartesiano, como também anunciou a teoria de Hume sobre o valor da percepção sensível, e a distinção de Leibniz, sobre verdades de fato e verdades de razão.

Ao buscar outra fonte da verdade, achou-a no espírito do homem. "Não procures fora! Volta-te para ti mesmo! No interior do homem é que habita a verdade. E se achares que também a tua própria natureza é mutável, então transcende-te a ti mesmo" (De vera rei. cap. 39, n° 72). Embora pense que o entendimento do espírito não cria a verdade, mas a encontra(De vera rel. cap., 39, n° 73) e que o espírito não tem em si mesmo a sua razão de ser, mas está em permanente dependência de um ser superior: "tudo quanto o entendimento acha ser verdadeiro não o deve a si mesmo” (De serm. Domini in monte II, 9, 32 in HIRSCHBERGER, 2009).

A verdade coincide com as idéias eternas existentes na mente divina, as quais rationes, ideae, speciesaeternaeconstituem propriamente a essência da verdade onde Agostinho afirma que Deus é a verdade - assumindo uma realidade ontológica: "a verdade é o que é" (verum est id quod est), onde o "o que é” já não significa a concordância do juízo com a realidade, mas com os exemplares primeiros na mente de Deus. Neles vê Agostinho, como Platão, o ser verdadeiro, o „ “ser em verdade" (HIRSCHBERGER, 2009).

Santo Tomás de Aquino (1225-74) tem, no período final da idade média importante semelhança a de Santo Agostinho no seu início. Santo Tomás de Aquino tem em suas obras importante influência do pensamento de Aristótelesreconhecida pela novidade da valorização do conhecimento natural em face da fé. Para Santo Tomás de Aquino a ciência não é valorizada somente como auxiliar da teologia, mas é algo independente e com os seus direitos próprios. Adverte que ao lado da luz natural (filosófica) também há lugar para o sobrenatural (teológica) (TOMAS, 2002; HIRSCHBERGER, 2010).

Para o tomismo há entre a teologia sacra e a filosofia natural, antes a colaboração do que separação. Era entendido que a teologia sacra podia ajudar a filosofia natural, que repousa somente no raciocínio a partir da experiência, mostrando-lhe certos resultados que ela deva aingir e que são dificilmente acessíveis à maioria dos homens, em razão da dificuldade dos estudos científicos. Inversamente o método filosófico ajudava poderosamente a teologia sacra, permitindo-lhe “exibir as riquezas da fé”. Para Santo Tomás de Aquino não se deve confundir as verdades da fé (credenda), indispensáveis para a salvação, e a própria revelação, onde as primeiras são mais extensas que a segunda (HUISMAN, 2001 p.979).

Antigos filósofos acreditavam que era verdade somente o que poderia ser visto. Tomás de Aquino afirma que a descoberta da verdade vai além do que é visível; questiona que a verdade era todas as coisas porque todas são reais, visíveis ou invisíveis, concordando e aprimorando Agostinho quando diz que "A verdade é o meio pelo qual se manifesta aquilo que é". A verdade está nas coisas e no intelecto, e, ambas convergem junto com o ser. O "não-ser" não pode ser verdade até o intelecto a tornar conhecida, ou seja, isso é apreendido através da razão. Aquino chega à conclusão que só se pode conhecer a verdade se você conhece o que é o ser.

Objetivamente o cuidado de si no período cristão era visto como algo pronto, revelado por Deus aos homens com verdades já interpretadas, sendo estas verdades os pressupostos a toda sabedoria

humana. Neste período se reconhece também o deslocamento do cuidado de si pelos princípios da verdade sobre si, a natureza humana, a subjetividade e o pensamento.