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PARTE I: O SUJEITO, A CONDIÇÃO HUMANA E O

4. O CUIDADO DE SI

4.3 A HISTÓRIA DO CUIDADO DE SI

4.3.3 O cuidado de si no período moderno

A passagem da concepção tradicional, teísta2, à concepção moderna, imanentista, representa teoricamente uma ruptura. O pensamento moderno, especialmente o pensamento da Renascença, fundamenta seu precedente lógico no panteísmo neoplatônico, que após ter-se afirmado como extrema expressão do pensamento clássico permanece através de todo o pensamento cristão em tentativas mais ou menos ortodoxas de síntese entre cristianismo e neoplatonismo. De outra forma, o pensamento tradicional, helênico-escolástico, aristotélico- tomista, encontrará nos grandes valores da civilização moderna - a ciência natural, a técnica, a história, e a política, sua integração lógica.

Em parte da Idade Média, em que a religião e civilização, teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e laicado, estavam ligados a transcendente unidade cristã, foi modificado pelo humanismo imanentista, que constitui o espírito característico do pensamento moderno. Este pensamento começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais e terrenos, com o conseqüente esquecimento dos interesses e ideais espirituais e religiosos, e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a exclusão dos segundos (DONALD, 1999).

René Descartes (1596 – 1650) adota uma posição dualista acerca da natureza do corpo e da alma, dando forte ênfase à subjetividade na análise do processo do conhecimento pelo rigor analítico e argumentativo. Em “Meditações Metafísicas” Descartes centra-se no pensamento e o utiliza como forma de refutar o ceticismo e diz que “a

2 O teísmo caracterizava a Doutrina que afirma a existência de um Deus único, onipotente,

onipresente e onisciente, criador do universo, tal como na tradição judaico-cristã. Já o imanentismo é uma forma de panteísmo, identificando Deus com o Uni-verso, ou considerando-o presente em todas as coisas, ou na natureza (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2001).

dúvida é uma forma de pensamento, portanto duvidar é pensar”. Isto mostra que a existência do pensamento não pode ser colocada em dúvida e se há o pensamento há o ser pensante – “Penso, logo existo” considerado elemento essencial para o conhecimento da verdade sobre si e sobre as coisas. No “Discurso do Método – A Formação do Filósofo”, Descartes defende a necessidade de rompermos com o saber adquirido, que naquele momento incluía as teorias escolásticas e a ciência antiga, para pensarmos por nós mesmos. No mesmo texto, em “A moral provisória”, a questão da moral e a decisão sobre o que é certo ou errado, Descartes apresentou asregras de uma moral provisória adotada até que uma verdadeira ciência da moral surgisse, baseada na investigação da natureza humana (MARCONDES, 2007).

Thomas Hobbes (1588 – 1679) foi um empirista inglês e em sua obra se encontram temas fundamentais sobre a natureza humana. Para ele “a origem de todo conhecimento é a sensação”, princípio que origina o conhecimento dos próprios princípios onde a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensações e a memória nada mais é do que o reflexo das antigas sensações. Na filosofia de Hobbes a percepção é descrita como resultado mecânico das excitações transmitidas pelo cérebro e a moral se reduz ao interesse e à paixão. Como fonte de nossos valores, Hobbes aponta o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio, a libertadade, – esforço próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada, tema também encontrado no spinozismo.

Em relação àcondição humana e a liberdade, importantes para o cuidado de si, Hobbes na primeira parte da obra - Leviatã, considera que” o direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida”. Para Hobbes a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra um, resultando na situação que cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros (BERNARDES, 2002).

Baruch Epinoza (1632 – 1677) filósofo conhecido por seu espírito crítico e defensor da liberdade de pensamento, revela sua concepção do sistema filosófico, bem como seu emprego do método geométrico para a demonstração das verdades que busca. Spinoza divide sua principal obra “Ética” em cinco partes que tratam de Deus, da mente, das emoções, da servidão humana, dos poderes do intelecto e da liberdade. No texto que trata de Deus, Spinoza afirma a existência de uma substância única, divina e infinita que se identifica com a natureza, justificando a fórmula “Deus ou a Natureza”. A concepção do filósofo

sobre a natureza é determinista, a realidade é vista como necessária, sendo que Deus, como princípio metafísico, é a causa primeira o que dá unidade à realidade natural. Na parte IV da Ética, que trata da servidão humana, Spinoza introduz seus conceitos de ética com base no ser, a causalidade e a natureza humana intelectual e emocional. A servidão humana consiste, segundo o filósofo, na submissão a nossas paixões, ao passo que a liberdade humana consiste na libertação por meio do intelecto, condição esta para o conhecimento de si. Sua concepção é fortemente racionalista, e o exercício da liberdade e da conduta ética pressupõe o entendimento da condição humana (HUISMAN, 2001; MARCONDES, 2007).

David Hume (1711 – 1776) foi considerado cético, sobretudo devido a sua crítica radical à subjetividade bem como ao princípio da causalidade ou a unidade do mundo natural. Na sua obra “Tratado sobre a natureza humana” ele afirma que o eu (self) não existe e que consiste apenas em um feixe de percepções, pois todas as idéias tem sua origem na impressão sensível que temos de um determinado momento. Da mesma forma, para Hume a origem das idéias é atribuída à experiência sensível, sendo que quanto mais próximas da percepção que as originou, mais nítidas e precisas são as idéias conforme descrito na obra “Uma investigação sobre o entendimento humano”(MARCONDES, 2007).

De modo geral, nota-se que as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo da tradição e das estruturas de períodos anteriores.Trevisol (2004, p. 15), ao falar do homem moderno, diz que este “não somente sofre a falta de sentido na vida presente, como também o medo do futuro e, em conseqüência, a facilidade de alimentar a fantasia”. Rojas (1996) denomina esse fenômeno de “socialização da imaturidade”, que, segundo ele, é definido por três elementos: desorientação, inversão de valores e vazio espiritual.