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EPIMÉLEIA HEAUTÔU E O GNÔTHI SEAUTÓN

PARTE I: O SUJEITO, A CONDIÇÃO HUMANA E O

4. O CUIDADO DE SI

4.1 EPIMÉLEIA HEAUTÔU E O GNÔTHI SEAUTÓN

Na Apologia de Sócrates, ilustrado na Figura 03 acima, ele se apresentacomo aquele que, essencialmente, fundamental e originariamente, tem por função, ofício e encargo incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados consigo e não descuidarem de si. Sócrates se apresenta como aquele predestinado a

incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos como tarefa lhe confiada pelos deuses; como homem que negligencia com esta atividade uma série de outras atividades tidas em geral como interessadas,

proveitosas, propícias como riquezas, fama e honrarias. Sócrates ainda diz que na atividade que consiste em incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, ele desempenha, relativamente a seus concidadãos o papel daquele que desperta considerando, portanto, o cuidado de si como o momento do primeiro despertar.

A incitação a ocupar-se consigo mesmo alcançou durante o longo brilho do pensamento helenístico e romano, uma extensão tão grande que se tornou um verdadeiro fenômeno cultural de conjunto. No curso da história a noção de cuidado de si ampliou-se, multiplicaram-se suas significações e deslocaram-se também. Mesmo com o passar dos tempos três idéias ficaram marcadas: Primeiramente, como tema de uma atitude geral, certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. A epiméleiaheautoûé uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo. Em segundo lugar, a epiméleiaheautoûé certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si implica em converter o olhar do exterior, dos outros, do mundo, para si mesmo. Em terceiro lugar, a noção de epiméleiaheautoûtambém designa algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos.

Com a noção de epiméleiaheautoûsurge todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das nações ou das teorias, mas na própria história da subjetividade, ou na história das práticas da subjetividade (FOUCAULT, 2004b).

Existem muitas razões que explicam que o “conhece-te a ti mesmo” culminou no “cuida de ti mesmo”. A primeira é que os princípios morais da sociedade ocidental passaram por uma profunda transformação. Experimentamos a dificuldade de fundamentar uma moral rigorosa e princípios austeros sobre um preceito que mostra que devemos nos preocupar conosco mesmos mais do que qualquer outra coisa. Inclinamo-nos, em princípio, a considerar o cuidado de si como qualquer coisa de imoral, como um meio de escapar a todas as regras possíveis. Herdamos isso da moral cristã, que faz da renúncia de si a condição da salvação. Paradoxalmente, conhecer-se a si mesmo constituiu um meio de renunciar a si mesmo.

Somos também herdeiros de uma tradição secular, que vê na lei externa o fundamento da moral. Assim, como o respeito que se tem por si mesmo pode constituir-se na base da moral? Somos os herdeiros de uma moral social que fundamenta as regras de um comportamento

aceitável sobre as relações com os outros. Se a moral estabeleceu-se, depois do século XVI, como objeto de crítica, o fez em nome da importância do reconhecimento e do conhecimento de si. É ainda difícil imaginar que o cuidado de si pudesse ser compatível com a moral. “Conhece-te a ti mesmo” eclipsou “cuida de ti mesmo”, porque nossa moral, uma moral do ascetismo, não parou de dizer que o si é a instância que se pode rejeitar.

A segunda razão é que, na filosofia teórica que vai de Descartes a Husserl, o conhecimento de si (o sujeito pensante) ganhou uma importância tanto maior enquanto ponto de referência da teoria do conhecimento. Em resumo, tem ocorrido uma inversão na hierarquia dos dois princípios da Antigüidade, “cuida de ti mesmo” e “conhece-te a ti mesmo”. Na cultura greco-romana, o conhecimento de si aparece como conseqüência do cuidado de si. No mundo moderno, o conhecimento de si constitui o princípio fundamental (FOUCAULT, 1985).

Desta forma, o cuidado de si constitui-se, simultaneamente, como um atributo e uma necessidade universal dos seres humanos, regido por princípios de aplicação geral, embora orientados para uma prática de escopo e responsabilidades absolutamente individuais. Não mais um prazer ou uma prerrogativa, não cuidar-se é sucumbir, e para não sucumbir era preciso conhecer a verdade que a razão a todos podia dar acesso. Esses preceitos, como já indicado, desdobraram-se para além desse caráter doutrinário, conformando um conjunto bem especificado de ações. Como Foucault adverte, o termo epiméleia designa não apenas uma preocupação, mas um conjunto de ocupações, um trabalho. Era com esse mesmo termo que se designava as atividades de um dono de casa, as tarefas de um príncipe que vela por seus súditos, ou os cuidados que se deve ter para com um doente ou ferido. Esta vinculação com o trabalho, com essa atividade relacionada às necessidades vitais, com a vitaactiva, conforme Arendt (2007) estabeleceu precocemente uma correlação muito estreita entre o cuidado de si e a medicina. Embora não fosse uma preocupação exclusiva sua, não há dúvida de que o conjunto de atividades que constitui o trabalho implicado no cuidado de si – exercícios, dietas, regimes de sono e vigília, atividade sexual, cuidados corporais, meditações, leituras – foram formulados principalmente por médicos. Se somarmos a isso que o restabelecimento da saúde é também parte dos imperativos do cuidado de si, mais razão nós teremos para atribuir à medicina o papel de grande responsável pelo desenvolvimento da epiméleiaheautoû(AYRES, 2004).

4.2 O CUIDADO DE SI

Percebe-se que o cuidado de si ocorreu de formas diferentes em cada momento histórico, assim como em linguagens diferentes conforme as correntes filosóficas. Para compreendermos a história do cuidado de si realizamos a leitura da obra de vários filósofos do período pré-socrático ao contemporâneo, na tentativa de observar em seus diferentes tempos históricos, como era percebido ou ocorria o cuidado de si.

Para proceder esta análise, partimos do princípio daquilo que objetivamente sustenta o cuidado de si indiferentemente da época ou filósofos, ou seja, os princípios da verdade sobre si e sobre as coisas; a natureza humana e tudo o que ela envolve; a subjetividade e o pensamento (FOUCAULT, 2004b; PLATÃO, 2006; AVRELLA, 2008).

Além do desafio de compreender e relacionar os diferentes momentos da história com a filosofia, existiram outros obstáculos, entre eles, perceber na obra de muitos filósofos a sutileza como se referiam ao cuidado de si da forma como nos propomos analisar nesta tese, exigindo a leitura cuidadosa dos textos. Outro cuidado importante foi a procura e seleção de textos de fontes bibliográficas clássicas, procurando por aqueles que fossem fiéis aos textos e idéias originais dos autores.

Para chegar a estes filósofos e seus textos nos apoiamos inicialmente na cronologia básica e a ordem histórica da filosofia partindo do séc. VI a.C. com o início da filosofia ocidental com Tales de Mileto até os filósofos contemporâneos. Após a análise dos textos de cada filósofo e considerando a ordem e os fatos históricos que as caracterizavam realizamos a extração apenas dos textos que de alguma forma tratava da temática do cuidado de si.

Com esta finalidade foram selecionadas e sistematizadas as ideiasdos textos de Parmênides de Eléia e Heráclito de Éfeso no período pré-socrático; Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Epiteto, o Ceticismo, e o Estoicismo no período clássico; O Cristianismo, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino no periodo Cristão; René Descartes, Thomas Hobbes, Baruch Spinoza e David Hume no período moderno; e os textos de Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger e Foucault, no período contemporâneo.