• Nenhum resultado encontrado

Os enlaces entre cultura e desenvolvimento emergiram com mais evidência e sistematicidade no meio acadêmico e no ambiente político institucional a partir da segunda metade do século XX, mas somente em 1966 é que surge, no âmbito da

UNESCO, o primeiro elemento de reflexão sobre as políticas culturais e o desenvolvimento ao constar no artigo primeiro da Declaração de Princípios sobre a Cooperação Cultural que:

1. Cada cultura tem uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e preservados; 2. Todo o povo tem o direito e o dever de desenvolver a sua cultura; 3. Na sua rica variedade e diversidade e nas influências recíprocas que exercem entre si, todas as culturas fazem parte do património comum de toda a humanidade (www.unesco.org).

Aspectos como “valor”, “patrimônio”, “preservação”, “diversidade”, “direitos” e “deveres” ao serem acionados demarcam as configurações iniciais dessa relação em que a cultura é entendida como algo valioso em si, mas que também tem o poder de influenciar de forma determinante a melhoria da vida humana.

Em 2005, a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural avança na demarcação dessa relação ao estabelecer entre seus objetivos que vai:

f) Reafirmar a importância da ligação entre cultura e desenvolvimento para todos os países, em particular para os países em desenvolvimento, e apoiar as ações empreendidas a nível nacional e internacional para garantir o reconhecimento do verdadeiro valor desta ligação; (idem).

Nos princípios orientadores da mesma Convenção são estabelecidos:

5. Princípio da complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento. Uma vez que a cultura é um dos principais motores do desenvolvimento, os aspectos culturais do desenvolvimento são tão importantes quanto os seus aspectos econômicos, que os indivíduos e os povos têm o direito fundamental de participar e desfrutar. 6. Princípio do desenvolvimento sustentável. A diversidade cultural é um bem rico para os indivíduos e as sociedades. A proteção, a promoção e a manutenção da diversidade cultural são um requisito essencial para o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações presentes e futuras. (ibidem)

Após quase quarenta anos, o avanço no foro internacional em termos de vinculação entre cultura e desenvolvimento alcançaram a condição de ordenamento explícito, com a cultura alçada ao protagonismo de ser um dos motores do desenvolvimento. Por outro lado, é preciso considerar ainda que os marcos legais exarados no âmbito da UNESCO, além das repercussões e implicações jurídicas e institucionais, refletem tanto a progressão dos embates (com avanços, hiatos e recuos) no plano das políticas culturais, quanto a primazia que a cultura alcança na

contemporaneidade, como afirma Paulo Miguez (2014) em “Cultura, diversidade cultural e desenvolvimento”:

Recorrendo à gramática das relações internacionais, pode-se dizer, portanto, que o lugar destacado de que desfruta a cultura no contexto contemporâneo sugere seu deslocamento do amplo leque das low politics (educação, saúde, emprego, segurança etc.) na direção das high politics, repertório com sua exclusiva e restrita agenda de temas considerados vitais para os Estados, como política exterior, comércio internacional, defesa e segurança.

A expansão do campo tem adensado sua conceituação e tantos são seus modos de interpretação (Thiry-Cherques aponta quatorze exemplos de definição de cultura em “De falácias e de Cultura”, 2001) que Jean-Claude Passeron adverte que a cultura “é o mais proteiforme dos conceitos sociológicos [...] é o termo que leva ao labirinto mais vertiginoso de uma biblioteca babeliana” (PASSERON apud FLEURY, 2009, p.13). A cultura se espalhou de tal modo por outros campos da vida social que favoreceu aquilo que George Yúdice (2004) denomina de usos da cultura: a percepção da cultura como recurso e sua empregabilidade para as mais diversas finalidades.

Entretanto, o protagonismo da cultura e de suas agendas na contemporaneidade não se dá sem tensões, especialmente na relação desta com o desenvolvimento. Ainda que o entendimento economicista de desenvolvimento como resultante de crescimento econômico esteja em declínio, a noção de desenvolvimento como um fenômeno endógeno, portanto “em busca de relações de preservação com o ambiente, aberto ao câmbio institucional e dependente da história, que se realiza sobre territórios, e que, por isso tudo, é dependente de fatores externos e internos a esses territórios”, proposta por Beth Loiola e Paulo Miguez (2007) em “Sobre cultura e desenvolvimento” e que reflete o conjunto de proposições e axiomas de diversos autores, não transcende plenamente a condição de formulação teórica, tendo em vista que sua aderência ao campo institucional e político brasileiro não se espraia com efetividade nas políticas públicas de cultura em curso, não obstante os incontáveis avanços das últimas duas décadas.

O diálogo da dimensão econômica da cultura - um campo novo, avançado e inovador - com o estado, um setor marcado pela burocracia, pela inaptidão, inépcia é marcado pela falta de agilidade dos governos em absorverem os novos paradigmas que aquele campo propõe, conforme ilustra Yudhishthir Raj Isar:

Mais aporias são causadas pela falta de coerência entre a política cultural, da forma como hoje é estruturada, e as realidades da economia cultural. As atividades e os processos dessa última “encontram-se incomodamente dentro da estrutura de políticas públicas”, como apontado por Pratt (2005: 31), que até agora tem se engajado de forma muito limitada na “baixa” cultura orientada ao mercado, enfocando a provisão das formas de “alta” cultura, que devem ser apoiadas e financiadas como bens públicos. Logo, a maior parte das indústrias culturais com fins lucrativos existe em tensão crescente com a maior parte do setor cultural sem fins lucrativos, que é o principal objeto da política cultural. [...] É claro que há muitas interconexões entre atividades culturais subsidiadas, comerciais e voluntárias, mas essas não são suficientemente reconhecidas. Há fragmentação nas estatísticas relativas a tais fenômenos culturais mensuráveis, como o desempenho das indústrias criativas, suas taxas de crescimento e o impacto das iniciativas tomadas para incentivá-las (ISAR, 2000, p.44). O efeito acumulado de tais frustrações nos últimos anos transformou as indústrias culturais de todas as partes em algo “irritante” (PRATT, 2005: 31) para os responsáveis por políticas culturais, porque são tão dirigidas pelos valores de mercado enquanto promovem estéticas alternativas, e também porque as suas contribuições têm de ser medidas em termos que desafiem as suposições nas quais a política cultural tem se baseado até agora. De modo inverso, os agentes da indústria cultural acreditam que não são compreendidos de forma adequada pelos formuladores das políticas culturais. (ISAR in REIS, org., 2008, p.84)

De todo modo, é preciso estabelecer no contexto das políticas públicas a compreensão que o crescimento econômico não é um fim em si mesmo para o desenvolvimento. Se o desenvolvimento é um processo de “apropriação universal pelos povos da totalidade dos direitos humanos, individuais e coletivos, (incluindo-se nesse contexto os direitos políticos, civis, sociais, econômicos e culturais, os direitos coletivos ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à cidade)” Bobbio(1990) e Lafer(1994), o crescimento econômico passa a ser um dos meios através dos quais o ser humano poderá ter acesso aos direitos que lhes são devidos.

Amartya Sen (2010) vai além e declara que “o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”. Para ele, os fatores que podem promover a expansão dos diferentes tipos de liberdades humanas estão inter-relacionados. “A privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade econômica. [...] Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras”.

Celso Furtado (1984) afirma que a cultura de uma sociedade é o que define a sua visão de desenvolvimento assim como as condições que irão lhe permitir sua

consecução. Portanto, uma sociedade desenvolve-se na medida da sua compreensão sobre o sentido e o significado do desenvolvimento, e esse significado é, em grande parte, construído no domínio da cultura. Nesse sentido, podemos estimar que o próprio desenvolvimento é uma expressão cultural, pois modelos de desenvolvimento articulam percepções e respostas aos problemas que as sociedades enfrentam, logo guardam atinência aos modos de ser e viver, aos valores, às características e condições de vida, ou seja, ao repertório cultural.