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A PUBLICIDADE NO CENTRO DA CONTROVÉRSIA: ANÁLISE DO FILME CASAIS PELA ÓTICA DA TEORIA ATOR-REDE

DAS DECLARAÇÕES ÀS LITERATURAS

O texto midiático constituído pelo filme publicitário é aqui considerado a declaração inicial. Em torno dele, uma série de outras vozes/discursos deu corpo ao debate social. Dividimos a avalanche de declarações em dois eixos: o debate público (3.1) e a cobertura da imprensa especializada (3.2).

Rastros digitais: como domá-los?

Sendo um estudo de natureza exploratória, com o intuito de criar articulações entre os pressupostos da Cartografia das Controvérsias e o campo da publicidade, limitamo-nos à análise de uma amostra intencional, obtida a partir da observação dos comentários sobre a controvérsia no Facebook e no YouTube. No canal oficial de O Boticário no YouTube, o comercial alcançou até o fechamento da análise mais de três milhões e quinhentas visualizações, 386.563 likes e 193.171 dislikes. O volume de comentários chegou a quarenta e sete mil. Longe porém de um debate dialético, observa-se uma disputa dominada pelos afetos entre pontos de vista polarizados. "Uma criança assiste essa propaganda e acha que é normal dois machos barbudos namorarem. Sempre comprei seus perfumes, O Boticário, mas agora não compro mais assim como milhares de cristãos que estão indignados com essa película com más intenções", provoca R.V.37 "Vcs interpretam a bíblia como querem seus babacas, tanta coisa q é dita e vcs não cumprem, só vê o q convém as vcs seus acéfalos!!", retruca A.Y. No canal do pastor Silas Malafaia, outro importante ator na teia de relações em questão, a página com o video Pr. Silas Malafaia critica propagandas que incentivam o

homossexualismo38 (sic) traz números que revelam que o seu poder de alcance se deve

muito mais ao caráter controverso das suas declarações, do que ao teor quantitativo de concordância em relação a elas. Até o fechamento da análise, cerca de 590 visualizações e 421 comentários. Destes, todos mensagens de apoio e concordância, baseadas em pressupostos de crença e fé. "É isso aí Pastor Silas, aqui em Brasília estamos com a Bíblia e com as verdades divinas; apoiamos sua pregação." (S.S.F.); "Parabéns pastor! Vamos defender a verdadeira família! Abraços e fique com Deus." (R.M.); O video angariou 11.300 likes, contra 68.072 dislikes.

Já no Facebook, observou-se, em geral, um tom de maior apoio à marca e a construção de discursos em prol da representatividade LGBT a partir do comercial. Porém uma parcela desta produção chama a atenção pelo que tem de inusitada e criativa: os memes. "Unidades de informação cultural passadas adiante de pessoa a pessoa, mas que gradualmente transcendem para um fenômeno social" (SHIFMAN, 2014, pos. 250/2585), os memes representam um novo espaço de expressão popular,

37 Depoimentos transcritos em sua forma integral. Usamos apenas as iniciais dos seus usuários por

questões de privacidade.

onde se cruzam cultura, política e participação. Um exemplo dessa inventividade foi o meme raio boticarizador (figura 4): uma proposição criativa baseada na montagem de duas fotos de uma mesma pessoa do sexo masculino em versões usual e travestido. Muitas vezes vistos apenas como diversão descompromissada, os memes são inscrições de atores que, através do humor, registram seu posicionamento político sobre determinados temas. Enquanto textos midiáticos, espalham-se de forma viral, tornando- se assim, importantes actantes na condução das controvérsias.

Figura 4 - o meme raio boticarizador

Fonte: Facebook

As ameaças de boicote à marca lideradas por Malafaia perderam o sentido no momento em que, tendo como oportunidade os eventos derivados do mês do orgulho gay, uma série de outras marcas lançaram materiais comemorativos à causa. Movimento que culminou com a aprovação à legalização da união civil homossexual pela Suprema Corte estadunidense. Gatorade, General Eletric, Netflix e Conselho Nacional de Justiça estavam entre elas (figura 5). Parece-nos evidente que o apoio vindo de marcas desse porte foram fundamentais para incentivar e consolidar as reações em prol da causa LGBT e silenciar paulatinamente as reações contrárias.

Textos da imprensa

Durante o calor da controvérsia seguimos também os registros da imprensa especializada em publicidade e marketing, que se debruçou de forma mais incisiva sobre o processo aberto no CONAR, a partir da queixa de cerca de 30 consumidores,

sobre o caráter supostamente ofensivo do comercial39. O principal destes veículos é o Meio&Mensagem, periódico do grupo homônimo, reconhecido nacionalmente como um dos principais na cobertura do segmento. Em paralelo, foram analisadas também a cobertura do Terra e UOL, importantes portais noticiosos. De maneira geral, os veículos adotam um posicionamento favorável ao polo pró-LGBT, com ampla cobertura de eventos favoráveis à causa. O Meio&Mensagem pode ser lido como um termômetro da opinião predominante entre publicitários e mercadólogos, revelando que ambos os campos encontram-se dispostos a lidar com o tema e veem a questão como tendência irreversível.

O que O Boticário fez foi aquilo que grandes marcas precisam fazer. Marcas são criadas e posicionadas para vender, mas fazem parte de uma sociedade e precisam dialogar com ela. E as questões defendidas pela bandeira LGBT, como a união estável de pessoas do mesmo sexo, fazem parte dessa sociedade (TURLÃO, 2015).

O blog Brainstorm9, por sua vez, dedicou-se a uma entrevista com Rynaldo Gondim, diretor de criação da ALMAP/BBDO, agência responsável pela criação da campanha. O profissional argumenta que a simplicidade e naturalidade foram a tônica na construção das cenas de afeto entre os casais homossexuais. E destaca o fato de que os casais gays têm "o mesmo peso" que os casais heterossexuais. De caráter mais subjetivo, os textos do B9 deixam claro um enquadramento entusiasmadamente favorável à representatividade LGBT na publicidade: "Sem alarde ou tratamento diferenciado, O Boticário estreou uma linda campanha de Dia dos Namorados no domingo, durante o intervalo do Fantástico, na TV Globo" (LAFLOUFA, 2015). Porém, o entusiasmo de seus editores apresenta-se como a provável causa de uma análise menos crítica da peça publicitária, ressaltando apenas o caráter de suposta naturalidade e espontaneidade na representação homoafetiva: "O bacana é que a campanha trata tudo com muita naturalidade e delicadeza, como deve ser" (LAFLOUFA, 2015). Uma leitura possivelmente ingênua, como indicado em nossa análise poética (ver seção 2).