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4 RESSONÂNCIAS DA POLÍTICA

4.1 CULTURA E CIVILIZAÇÃO

Ao incluir no campo da cultura as relações sociais, políticas e econômicas, Freud justapõe elementos de civilização e cultura, justificando seu entendimento como distinção geral da superioridade do homem em relação às outras formas de vida. Essa superação levada a efeito pela espécie humana implica, no entanto, exigências e sacrifícios ao indivíduo que se traduzem em renúncia pulsional e interdições ancestrais de natureza cultural e mítica que remetem ao assassinato, ao canibalismo e ao incesto. Através das suas bases fundantes, a civilização renova e inclui outras interdições e imposições que progressivamente são internalizadas pelo sujeito e somadas a uma coação análoga ao superego que Freud chamará de superego coletivo no Mal-estar... Ao suportar os sacrifícios exigidos pela ordem cultural, a expressão pulsional do sujeito, na busca incessante por satisfação, repõe permanentemente a tensão. A civilização, entretanto, não se faz apenas pelas renúncias e interdições necessárias a sua sobrevivência, mas funciona também por satisfações de natureza narcísica despertadas em seus membros por ideais próprios e coletivamente almejados: “A civilização tenta, por intermédio do reforço narcísico (logo, por identificação com o grupo portador de ideais e capaz de criação artística), reconciliar os homens com os sacrifício de suas pulsões.” (ENRIQUEZ, 1996, p. 84).

O texto freudiano não obsta a possibilidade do olhar político para as formações do princípio de prazer e do princípio de realidade e as colisões operadas por este conflito. Nesse âmbito, chamado pelo autor de civilização, encontram-se os nexos para a passagem à política, uma vez que a defesa como função essencial que ela nos oferece contra a natureza pode ser compreendida em quatro realidades, que de acordo com Enriquez são:

as forças da natureza (os elementos impetuosos, as doenças), o destino (o que se expressa “no penoso enigma da morte), a relação espontânea (relação predatória e de estupro) que existe nos homens em estado de mera natureza, e a fraqueza humana (que liga-se a seu estado de angustia infantil). (p. 84)

O sujeito freudiano, com esse grau de vulnerabilidade e dependência diante da natureza para afastar-se do desprazer e auferir algum prazer, encontraria na civilização uma perspectiva de vida comum e proteção coletiva, ampliadas às

necessidades superiores e à conformação de organizações e instituições sociais. Se o desamparo do sujeito funda a civilização, a edificação e o desdobramento da cultura couberam a um sujeito social e político.

Entrementes, Freud, em O mal-estar.., não mantém essa possibilidade de conciliação entre renúncia e promessas de bem-estar coletivo, uma vez que bordeja a tragédia ao introduzir a hipótese especulativa da pulsão de morte no domínio da cultura e da civilização. Muitas interpretações e leituras têm reiterado a dramaticidade da obra como declaração pessimista sobre a história humana e, de fato, a certa altura, Freud vislumbra a possibilidade destrutiva da espécie no bojo do processo civilizatório. Entretanto, o mesmo texto convive com a constatação de que a vida em comum dos homens adquiriu um duplo fundamento: por um lado, a obrigação do trabalho diante das necessidades exteriores e, de outro, o poderio do amor, de tal sorte que a cultura tem em Eros e Ananké seus patronos. Mas a sobrevivência ainda não está segura se considerarmos a preservação e as manifestações da pulsão de morte nos movimentos pulsionais.

Uma breve reconstituição dos fenômenos de sua manifestação a partir da interpretação de Mezan (1985) poderá nos reconduzir às possibilidades da política no processo civilizatório. Sua linha de raciocínio inicia-se por afastar a ideia de que a expressão de pessimismo do autor pudesse ter sido preponderante para a convocação de Thanatos. A dedução de sua permanência como pulsão diferencial deu-se a partir de uma qualidade específica assente na tendência regressiva e nos fenômenos de repetição que a conduzem a um além do princípio do prazer. É na origem da vida e na esfera biológica, e não no nível propriamente psíquico, que Freud vai localizar a fonte primária da tensão e a tendência ao alívio como aspiração regressiva:

[...] uma pulsão seria uma tendência, própria do organismo vivo, de reconstituição de um estado anterior, o qual, sob pressão de forças externas perturbadoras, o ser animado teve que abandonar; uma espécie de elasticidade orgânica, ou se se quiser, a manifestação da inércia na vida orgânica”. (FREUD, 1920 apud MEZAN, 1985, p. 442).

Esse salto para o plano orgânico significou uma amplitude dessa questão para todas as formas de vida, e o caráter inorgânico a moveu para um nível ainda mais arcaico, pois se toda pulsão almeja a quietude, a perturbação do silêncio

inorgânico seria a própria vida. No entanto, o dualismo freudiano se mantém e Eros surge para cumprir a função de conservação da vida. Mas sua força não supera a tendência à repetição e o que faz categoricamente é assegurar um ciclo vital e, com isso, ambas as pulsões compõem complexas atividades de assimilação e desassimilação orgânica.

Esse princípio de atração e repulsão segue modificando-se a cada nível, das partículas orgânicas à atividade psíquica até à emergência da consciência humana, agregando pares sexuais, grupos sociais e multidões a evocar o venturoso processo civilizatório: “apesar da linguagem finalista empregada por Freud, Eros e Thanatos correspondem à ordem das causas eficientes” (p. 444).

A compreensão dos fenômenos psíquicos a partir dessa reordenação da teoria das pulsões passa a ser objeto de amplos reexames do aparato conceptual da psicanálise desde a evocação de observações e postulações anteriores de Freud aos ensaios que vem a produzir depois. A partir de exemplificações, Mezan nos conduz a situações típicas de conflitos entre as três instâncias do psiquismo, que não seriam redutíveis à presença da pulsão de morte. O comentarista localiza fatos e observações textuais sobre a dificuldade em reconhecer as manifestações de Thanatos e traz a impressão do próprio Freud de que as pulsões de morte seriam mudas e que suas investigações revelam, em todos os impulsos pulsionais, ramificações de Eros.

Entretanto, houve situações, como no caso do sadismo, em que o representante psíquico da pulsão de morte35 pôde ser localizado por uma complexa operação de fusão e defusão imputada a esse fenômeno. Mas, segundo nosso intérprete, a demonstração nesse caso deixa aberta a possibilidade de aliança dessa pulsão com as pulsões eróticas – fato que abre, contudo, um leque mais amplo de possibilidades, inclusive para a compreensão do sadismo como um componente libidinal. De todo o modo, na gênese atribuída ao sadismo, qual seja, no masoquismo originário, estaria o primeiro representante psíquico da pulsão de morte. Mas, ainda assim, nem o sadismo e sequer o masoquismo erógeno, serão suficientes para definir um representante psíquico da pulsão de morte.

35 A hipótese mais admissível é a de que esse sadismo seja realmente uma pulsão de morte, expulsa do ego sob influencia da libido nascente; de modo que só aparece no objeto” (FREUD, 1920, apud MEZAN, 1985, p.446).

Pelo fato de a agressividade ocupar um lugar de relevo na conduta humana como um registro do processo de natureza destrutiva, Freud então se volta a ela como um esforço para encontrar os rastros do novo princípio. Ocorre que a agressividade requer a existência de um objeto para que atue e este, por sua vez, não será inanimado, mas outro indivíduo humano, e exatamente nesse ponto a alteridade surge com uma importância crescente na elaboração teórica freudiana:

Munido dos conceitos de Eros como princípio de coesão, e da pulsão de morte como ferramenta de análise dos componentes destrutivos, ele descobrirá que o homem exerce esta agressividade não apena no âmbito erótico, mas também e, sobretudo, no domínio social, nas relações que estabelece com seus semelhantes e que se revelam no que denomina de

civilização. (MEZAN, 1985, p. 449)

As manifestações mudas ou quase inaudíveis no nível biológico e no campo psíquico da pulsão de morte teriam, por fim, conduzido Freud, que tampouco se importava, a essa altura, com as especulações ascéticas da ciência positiva, a se aproximar ainda mais das manifestações do campo da cultura.

Seguindo o percurso do comentarista, vemos que os limites da hipótese especulativa se revelam como uma barreira no campo biológico. Se a meta de Eros é constituir unidades mais amplas e unidas em oposição ao seu poderoso adversário, na escala biológica o limite da vinculação recíproca está definido pelos limites exíguos do corpo vivo.

No nível anímico, a dificuldade também se impõe ao modelo conceptual, pois o princípio do prazer parece responder às pulsões de morte, uma vez que, ao reduzir as tensões internas, pode reconduzir a direção da vida para o inorgânico, ainda que isso pareça ser ação de Eros de proteção do psiquismo às pressões que se originam no campo externo.

Nós já pudemos constatar que, para Freud no Mal-estar..., cultura e civilização são termos indistintos, que abarcam em sua proposição a soma integral de realizações e normas que distinguem a vida humana e atendem a duas finalidades: a proteção contra a natureza e o ajustamento dos relacionamentos mútuos. Entretanto, em muitas passagens do texto, outras complexidades e especificidades são aproximadas dessa sua noção, como as referências ao progresso material e intelectual e, em particular, aos sistemas religiosos, filosóficos e das artes que dão testemunho da atividade do espírito.

Ao prosseguir nossa linha de argumentação em afirmação ao registro político que julgamos presente nessa obra freudiana, ora expresso pelo ruído das pulsões, outras vezes por tons sombrios da opressão do princípio de realidade, o fato é que os processos, material e de subjetivação, não estão desvinculados da produção histórica; em outras palavras, é o processo histórico real que constitui o sujeito no estado presente das coisas.

A história social da humanidade como processo de engendramento de relações sociais supõe transformações incluindo novas formas de domínio e exploração que, por sua vez, fermentam o antagonismo da recusa e de novas proposições e alternativas de superação. Historicidade essa que nos remete ao problema da continuidade e descontinuidade, da transformação e da permanência das relações sociais:

Quando o capital absorve a sociedade completamente em si mesmo, quando a história moderna do capital chega ao fim, é então que a subjetividade – como motor de transformação do mundo através do trabalho vivo e como índice metafísico da potencia do ser – nos diz em voz alta que a história não acabou. (NEGRI; HARDT, 2004, p. 30).

Gramsci (1987) refere-se à subjetividade a partir dos termos consciência e homem. A consciência individual comporta níveis que se ampliam para autoconsciência que a constitui como consciência coletiva. O sujeito, no interior da própria lógica dominante, pode vir a alcançar uma visão crítica sobre os processos históricos e as relações de poder, de modo a reunir condições para a superação. Nesse sentido, a condição da autoconsciência concretizaria a vontade de um sujeito coletivo, mobilizado na superação real da opressão: “[...] o homem é um processo, precisamente o processo de seus atos” (p.38).

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