• Nenhum resultado encontrado

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA"

Copied!
113
0
0

Texto

(1)

LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA

RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO: PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA

São Paulo

(2)

LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA

RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO: PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA

Tese apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial de obtenção do título de Doutor em Psicologia Social sob orientação da Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa.

(3)

RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO: PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA

Banca Examinadora

_____________________________________________________

_____________________________________________________

_____________________________________________________

(4)
(5)

Reconheço agradecido a importância que muitos professores e professoras da PUC tiveram para o meu desenvolvimento intelectual. E agradeço-lhes, ainda mais, pelo convívio sempre amigável e prazeroso dos encontros em sala de aula, nos núcleos e nas divagações do café. Iniciei este percurso de doutoramento no segundo semestre de 2009 quando apresentei uma ideia de projeto de tese para o professor Salvador Sandoval, a quem agradeço pelo incentivo e o acolhimento no Núcleo de Psicologia Política naquela oportunidade. Entretanto, no desenvolver do projeto deparei-me com questões da psicanálise e percebi a necessidade de uma reorientação teórica. Aproximei-me do Núcleo de Psicanálise e Política e procurei a orientação da professora Miriam que, com apreço, aceitou a demanda. Suas orientações precisas e os temas discutidos no NPP me propiciaram ampla abertura para as questões políticas da subjetividade. A arte, uma questão ainda latente no projeto, embora nuclear na minha história de vida, surpreendeu pela atualidade e pela beleza dos vínculos que mantêm com a psicanálise e que no núcleo vicejava. Logo, agradeço com alegria e afeição a oportunidade de ter recebido a orientação acadêmica da psicanalista Miriam Debieux Rosa, desfrutando de um estimulante convívio intelectual e, mais ainda, por compartilhar de sua amizade.

Sou grato ao amigo e professor Odair Sass pelo reencontro na PUC e pela boa vontade de orientar-me na qualificação e ainda aos questionamentos que certamente me fará na banca.

Agradeço à professora Inês Loureiro por ter me incentivado durante a qualificação e pela presença na banca de defesa.

Agradeço ao professor Oscar Cesarotto pela disponibilidade e simpatia com as quais recebeu meu convite para a banca.

(6)

recebeu e me orientou em Buenos Aires e, depois, por ter aceitado participar da banca examinadora, desde o exame de qualificação e, na fase conclusiva, dispondo-se vir a São Paulo.

Agradeço ao apoio institucional da FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento Administrativo, para que eu pudesse dedicar parte do período de trabalho aos estudos que ora concluo.

(7)

O mosaico da fragilidade humana se revela na obra O Mal-estar da Civilização de Freud pela precária e finita existência, pelas agruras e ameaças advindas da natureza e a ambiguidade das relações com o outro. Dessa injunção, o sujeito freudiano, subsumido e insurgente no campo da cultura, perturbado pelo ruído das pulsões e os tons sombrios da opressão do princípio de realidade, é confrontado indefinidamente com o desejo e as exigências da realidade externa. O tema é desenvolvido a partir de noções da psicanálise presentes na obra acima referida em articulação e diálogo com campos da filosofia social, problematizado por dois registros simbólicos da expressão humana, a política e a estética. A questão principal localiza-se nos vínculos entre civilização e cultura que determinam um complexo e sufocante sistema de necessidades para o sujeito, de modo a vislumbrar as faces do mal-estar contemporâneo. A hipótese central é que a despeito da complexidade que engendra o mal-estar e a ampla força adaptativa que o impulsiona, sua configuração social não é impermeável ao telos dialético da história e suas propriedades: coerção e revolta; subjugação e emancipação. A partir da hipótese, duas perspectivações: as possibilidades de superação da auto-reprodução da política que determina sobrepesos ao princípio de realidade; e o alcance da subversão da experiência, qualidade inerente à arte e a função estética, como trilha emancipatória. O percurso reflexivo e analítico da tese pautou-se pela clareza de que os processos de subjetivação não estão desvinculados da produção histórica, em outras palavras, é o processo histórico real que constitui o sujeito no estado presente das coisas.

(8)

The mosaic of human frailty is revealed in Freud‟s Civilization and its discontents

through the precarious and finite existence, the hardships and threats arising from Nature and the ambiguous relations with the other. Given this injunction, the Freudian subject, subsumed and insurgent in the cultural field, disturbed by the noise of the drives and the dark tones of the oppression of the reality principle, is endlessly confronted with the desire and the demands of external reality. The theme is developed from notions of psychoanalysis present in the work above in liaison and dialogue with the fields of social philosophy, questioned by two symbolic registers of human expression, politics and aesthetics. The main question lies in the bonds between civilization and culture that determine a complex and oppressive system of needs for the subject in order to glimpse the faces of the contemporary malaise. The central hypothesis is that despite the complexity that engenders unease and the wide adaptive force that impels it, its social configuration is not impervious to the dialectical telos of history and its properties: coercion and rebellion, subjugation and emancipation. From the hypothesis, two perspectivations arise: the possibilities of overcoming the self-reproduction of the politics that overweighs the reality principle, and the scope of the subversion of experience, a quality inherent in art and the aesthetic function, as an emancipatory path. The reflective and analytical course of this thesis was based on the clarity that subjectivation processes are not separated from their historical production; or in other words, it is the real historical process that constitutes the subject in the present state of things.

(9)

Figura 1 - Tela 1 - Eros ... 19

Figura 2 - Tela 2 -Transgressão ... 40

Figura 3 - Tela 3 - Fuga ... 58

Figura 4 - Tela 4 - Revolução ... 89

(10)

INTRODUÇÃO ... 11

1 O MAL ESTAR DO SUJEITO NA MODERNIDADE ... 20

2 SOB O DOMÍNIO E O ALÉM MAIS DO PRINCÍPIO DA REALIDADE....41

3 RESSONÂNCIAS DA CULTURA: ARTE E ESTÉTICA ... 59

4 RESSONÂNCIAS DA POLÍTICA ... 90

4.1 CULTURA E CIVILIZAÇÃO ... 91

4.2 SUPERAÇÃO E UTOPIA ... 95

4.3 EMANCIPAÇÃO E ARTE ... 101

CONCLUSÔES ... 107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 109

(11)

INTRODUÇÃO

O mosaico da fragilidade humana, tal como se apresenta na obra O Mal-estar da Civilização1, de Freud, é composto pela precária e finita existência, pelas agruras e ameaças advindas da natureza e pelo paroxismo das relações com o outro. Trata-se de uma conjugação reveladora do desamparo e das perturbações que sofre o sujeito no campo da cultura, que para o autor inclui as relações sociais, políticas e econômicas.

Esse é o âmbito no qual enunciamos o problema da nossa tese, pois depreendemos que aqui se encontra o torvelinho da sociabilidade, uma vez que a vida psíquica é pressionada simultaneamente pela dinâmica pulsional e as aspirações sociais promovidas por uma larga difusão de requisitos civilizatórios.

Essa delimitação que chamamos de âmbito permite que o tema da tese possa manter-se localizado sem necessariamente prescindir da amplitude teórica que nos acompanhou durante a trajetória desta pesquisa. Ao invés da circunscrição do foco, preferimos a imagem de um vale e suas encostas a delinear um horizonte. De um dos lados das inclinações que conformam essa topografia encontram-se as noções da psicanálise às voltas com as questões da cultura e da civilização. De outro lado, a inclinação é marcada por conceitos da política e da estética. Trabalhamos nossas reflexões como peças reconstituídas da imagem, mais precisamente, com o espelhamento das encostas do vale sobre o rio. Para os enunciados e as proposições dos comentaristas cabe como representação o fluxo e as substâncias que a água do rio conduz. Com estes acréscimos, embora o texto venha a ser impregnado por apropriações e torções conceituais, não obstante, segue um curso. Complementarmente, cabe dizer que nossa ambição intelectual para esta tese tem por objetivo a extensividade, de modo a ampliar inter-relações conceituais, sem perder a dimensão do tema definido.

O tema localiza-se no campo dos enunciados freudianos presente na obra elegida, assim como nas referências conexas de outras produções suas,

1 O texto "Mal-estar...

” que trabalhamos compõe as Obras Completas de Freud, obra publicada pela

(12)

considerando como questão relevante dois registros simbólicos da organização social humana, a política e a estética.

O primeiro registro, preliminarmente entendido como princípios e regras históricas de ação e convivência humana, ou seja, a ordenação política da vida social, cujas características principais na sociedade contemporânea, conforme

identificadas por Marcuse, são a dominação e a invisibilidade de suas estruturas: “o

poder se eclipsa e converte-se em racionalidade administrativa” (ROUANET, 1998, p. 201).

Do segundo registro, a dimensão estética para percorrer sua amplitude, pareceu-nos fundamental compreender as categorias kantianas definidoras da

imaginação estética: “intencionalidade sem intento” e “legitimidade sem lei”,

articuladas por noções interpretativas da arte e da filosofia por Marcuse (2007, p.160) e, em seguida, ampliar o fluxo teórico, tal como concebemos o método, às noções de estética como identificação e pensamento das artes presentes nos textos

de Rancière (2012, p. 11) “de pensar os estudos estéticos de Freud como marcas de

uma inscrição do pensamento analítico da interpretação no horizonte do

pensamento estético”. Partindo destas proposições, procuramos aquilatar as funções da estética e suas operações “entre prazer, sensualidade, beleza, verdade,

arte e liberdade – uma associação revelada na história filosófica do termo estético”.

(Marcuse, 2009, p.156).

A questão central do nosso texto localiza-se nos vínculos entrelaçados da civilização e da cultura que determinam um complexo e sufocante sistema de necessidades para o sujeito.

(13)

A hipótese nuclear com a qual trabalhamos é a de que a despeito da complexidade que engendra o mal-estar e toda a ampla capacidade adaptativa e de autorregulação que o impulsiona, sua configuração social não é impermeável ao

telos2 dialético da história e suas propriedades: coerção e revolta; subjugação e emancipação.

A partir dessa hipótese, alinhamos duas perspectivações como perguntas exploratórias para a reflexão acerca do tema:

1. Quais seriam os caminhos para a superação do mecanismo gestional-produtivo que captura a ação humana e marca a política na atualidade com a insígnia da autorreprodução?

2. Ao percorrer a hipótese de subversão da experiência como qualidade inerente à arte, em oposição ao princípio de realidade, como reconhecer e valorizar a função estética nos encaminhamentos políticos de superação e emancipação?

Em atenção à epistemologia, localizamos os termos “política” e “estética”

como dimensões distintas para retomá-los nos capítulos ulteriores a partir de noções e conceitos clássicos, assim como de escritas interpretativas derivadas, visando aproximações que nos permitam fazer nexos de compreensão entre o mal-estar contemporâneo e as possibilidades e os horizontes de sua superação.

Esse “olhar o contemporâneo” nos impôs a necessidade de um

posicionamento inicial sobre temporalidade, sem o qual não poderíamos reconhecer com clareza de onde falamos, ou seja, onde estamos na história. De modo a abrir esta questão, ascendemos ao filósofo italiano Giorgio Agamben, que deixa o claro-escuro do tempo cronológico para almejar à noção histórica de contemporaneidade, na forma de uma claridade dilatada:

[...] o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico é [...] algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo

que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um “muito cedo” que

é, também, um “muito tarde”, de um “já” que é, também, um “ainda não”. “E,

(14)

do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz, que sem nunca

poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós” (Agamben,

2009, p. 65-66).

Este posicionamento não nos alivia de inflecções, pois o tempo histórico sempre surpreende.

A problemática do sujeito, assim como a compreendemos, é indissociável do campo social e nossa démarche considera fundante a história antropológica freudiana marcada por registros conflituosos entre as pulsões e as contingências da civilização. Portanto, mantivemos presente a noção do conflito do sujeito no campo social sem subtrair de sua singularidade a capacidade de transgredir e romper com as verdades e os sistemas instituídos.

O caminho teórico para refletir sobre a sinuosidade da política na atualidade inicia-se por analisar o conceito de sociedade unidimensional marcuseano e desdobra-se por outras acepções clássicas e da filosofia atual.

O lugar da crítica à democracia é movediço, podendo ensejar ambiguidades e distorções de compreensão, pois afinal, quê? Criticar a democracia? O melhor termo será a superação. Ver através da figura consensual-democrática de governo que a domina e afeta, edificada sobre o minimalismo da participação individual expresso por meio do voto universal. Observar a relativização das instâncias organizadas de participação e demanda social no jogo do poder. Compreender que essa ordenação compromete o valor da democracia por esvaziá-la de conteúdo e do conflito legítimo que a constitui, tornando-a um simulacro. Basta ouvir o seu discurso político propagandístico que justifica o pragmatismo do possível com os números da lógica econômica excludente, diante da miséria material e espiritual crescentes.

Sob outra perspectiva, encontram-se os traços constitutivos da subjetividade do sujeito dentre os quais procuramos distinguir a presença de sinais indicativos de potenciais campos de emancipação. Referindo-se à condição do mal-estar do sujeito contemporâneo, o psicanalista brasileiro Joel Birman (2009), autor de um ensaio sobre o mal-estar na atualidade, cunhou a expressão gestão do desamparo, com um sentido que nos pareceu desafiador. Diz respeito à emergência de outro conceito de sublimação que, ao superar as contradições do conceito inicial, abre novo caminho, refere-se o autor a noção reinterpretada por Freud: “o processo de sublimação

(15)

erotismo e o trabalho de criação se tornariam possíveis” (FREUD, 1932 apud

BIRMAN, 2009, p.131).

A ideia baseia-se na sublimação não mais como um ato de espiritualização ascendente de razão civilizatória, mas como experiência de lateralização e, sob essa compreensão, ao não se desprender de seu registro corpóreo o sujeito mantém suas ligações com outros sujeitos nos laços sociais, sem a oposição erotismo e sublimação, em implicação estreita com o registro ético e político. Estas seriam as bases para a superação do desamparo.

Cabe a nós ressaltar que foi durante a preparação do projeto, com a orientação de Miriam Debieux Rosa, que optamos por iniciar o desenvolvimento deste trabalho examinando as aporias presentes em duas obras emblemáticas do século XX: O Mal Estar na Civilização (1929/1930) de Sigmund Freud, e Eros e Civilização (2009) de Herbert Marcuse, que dialoga criticamente com as noções freudianas sobre as possibilidades de uma ordem não-repressiva na qual a tensão entre Eros e Thanatos se dissolveria na unidade de uma configuração regida por um novo princípio de realidade. Com esta opção procuramos também consubstanciar um fluxo comunicante com ensaístas da atualidade que repõem e reescrevem as questões centrais apresentadas por Freud e Marcuse, com novas perspectivas a convocar outros e novos conceitos.

Compreendemos que a aproximação e a leitura simultânea de obras afins aportam ao pesquisador, além de conhecimento e revelações, nem sempre esperados pelo autor, outras pistas para a compreensão da díade humanidade e sociedade. „‟

Toda investigação teórica ou aplicada necessita de aporte metodológico para a compreensão dos conceitos e observação da realidade, algo como um ajuste de lentes que precede as etapas de reflexão e interpretação. Respondemos a essa necessidade com a escolha e a mentalização de um dos princípios do sistema filosófico deleuziano que se faz de relações entre elementos heterogêneos:

(16)

Assim como fizemos uma mediação com a interpretação de Agamben sobre o contemporâneo, diante das muitas possibilidades para a acepção histórica de modernidade, optamos por fazer referência a Hegel e comentadores de sua obra, que reconhece a modernidade a partir dos eflúvios da Reforma, do Iluminismo e da Revolução Francesa.

Entretanto, não se trata apenas de uma caracterização determinada por eventos históricos, pois importava ao filósofo estabelecer todo o sistema das condições de vida, e assim descortinar o princípio daquele novo tempo numa figura filosófica: a subjetividade3.

A modernidade caracterizada pela filosofia hegeliana está alicerçada na cisão entre o transitório e o eterno. Nela, a inteligência desperta para o finito, e busca uma conciliação com o presente no sentido de que o mundo passa a ser julgado segundo seus próprios critérios, adotando a razão como árbitro. Desse modo, a subjetividade torna-se o princípio e a autoconsciência, que concebe a religião, a ciência, a arte e o poder como entidades apartadas do homem, concebidas apenas na sua forma de pensamento filosoficamente puro, ou seja, abstrato cujo movimento alcança o saber absoluto4.

Nessa etapa da Modernidade, diferentemente do que fora observado durante a Antiguidade e a Idade Média com o escravismo e o feudalismo, Marx, nos ensaios que reuniu sobre o título de Manuscritos econômico-filosóficos em 1844, dialoga com a dialética e a filosofia de Hegel a partir da economia política e reconhecendo nessa forma organizativa da sociedade, a alienação do homem como o problema central. Fruto da imediata relação entre trabalho e produção:

3 Segundo Musse (2012, p.4), Habermas distingue no termo subjetividade, empregado por Hegel,

quatro conotações: “[...] (a) individualismo: no mundo moderno as individualidades [...] infinitamente particulares podem fazer valer suas pretensões; (b) direito à crítica: o princípio do mundo moderno exige que aquilo que cada um deve reconhecer lhe apareça como algo justificado; (c) autonomia da ação: é próprio dos tempos modernos querer estar de acordo com aquilo que fazemos; (d) finalmente, a própria filosofia idealista: Hegel considera como o produto dos tempos modernos que a filosofia

atinja o saber de si da ideia”.

4"Essa última figura do espírito o espírito que, ao mesmo tempo, dá ao seu conteúdo perfeito e verdadeiro a forma do Si, e por isso tanto realiza seu conceito quanto permanece em seu conceito nessa realização – é o saber absoluto. O saber absoluto é o espírito que se sabe em figura de

espírito, ou seja: é o saber conceituante. A verdade é o conteúdo que na religião é ainda desigual na

sua certeza, mas tem também a figura da certeza de si mesma: ou seja, é no ser-aí quer dizer, para o

espírito que sabe, na forma do saber de si mesmo. A verdade é o conteúdo que na religião é ainda

desigual à sua certeza. Ora, essa igualdade consiste em que o conteúdo recebeu a figura do Si. Por isso, o que é a essência mesma, a saber, o conceito, se converteu no elemento do ser-aí, ou na

forma da objetividade para a consciência. O espírito, manifestando-se à consciência nesse elemento,

(17)

Já que o trabalho alienado aliena a natureza do homem, aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo, a sua atividade fundamental, aliena do mesmo

modo o homem a respeito da espécie; transforma a vida genérica em meio

da vida individual; depois, muda esta última na sua abstração em objetivo da primeira, portanto, na sua forma abstrata e alienada. [...] A vida revela-se

simplesmente como meio de vida (MARX, 2011, p. 116).

Ao refletirmos a respeito das consequências dessa alienação, vemos os conceitos de reificação e fetichismo concebidos como operações em que a força de trabalho impregna o objeto de modo que este passaria a determinar a ação de seu produtor.

Algo como se os objetos se portassem como sujeitos enquanto os antigos sujeitos, os trabalhadores tornar-se-iam seres objetificados. Assim compreendidos, tem-se uma relação social estabelecida entre os homens como forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, simplesmente porque encobre as características sociais do próprio trabalho, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho.

Voltando ao diálogo com o Hegel da Fenomenologia, o grande mérito desta, reconhecido por Marx, é a dialética da negatividade, mas essa operação como veremos chega a um impasse:

[...] a dialética da negatividade, enquanto princípio motor e criador – reside

em primeiro lugar, no fato de Hegel conceber a autocriação do homem como processo, a objetivação como perda do objeto, como alienação e como abolição da alienação: e no fato de ainda apreender a natureza do trabalho e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque homem real),

como resultado do seu próprio trabalho. A orientação real, ativa, do homem

para si mesmo enquanto ser genérico ou a fixação por si próprio como ser genérico real, quer dizer, como ser humano, só é possível à medida que ele

realiza todos os seus poderes específicos – o que, por sua vez, só é

possível através da ação coletiva dos homens e como resultado da história

– e trata estes poderes como objetos. Mas isto só é viável na forma de alienação. (MARX, 2011, p.178).

(18)

tempo depende das experiências concretas dos homens, mais especificamente, depende da maneira pela qual articulam em cada presente a dimensão do passado,

sua “experiência” acumulada, e a dimensão do futuro, suas “expectativas”,

esperanças e prognósticos5.

Com base nestas sínteses sobre as chaves da modernidade, o passo seguinte será o reconhecimento das noções freudianas e o tom interrogativo que aplicam às operações de renúncia de prazer urdidas diante da organização da vida social e política, os desdobramentos e as consequências para o sujeito.

O nosso apreço pela abordagem aberta reflete, além de tudo, um dado biográfico recorrente, o de criar livremente colagens em um ateliê de arte transgredindo campos estéticos e perímetros de conhecimento, com um olhar no horizonte e sobre a palma da mão o astrolábio6. E por que não trazer para este

trabalho acadêmico a compreensão da colagem agora como analogia dos domínios dadaístas sugerida por Deleuze7 como um estilo extemporâneo de pensamento na filosofia?

Vamos crer que sim, que pode ser um além-método, uma postura sem esforço a disposição dos vínculos da nossa experiência com a criação artística, e a partir dessa articulação esperemos que se torne mais compreensível a presença das imagens na abertura dos capítulos.

5 "Espaço de experiência” (Erfahrungsraum) e “horizonte de expectativa” (Erwartungshorizont) são duas das categorias que Koselleck emprega como condições de possibilidade da história; elas

“remetem a um dado antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia

sequer ser imaginada” (KOSELLECK 1999, p. 308).

6 Instrumento náutico antigo, em forma esférica ou de círculo graduado, com haste móvel, usado para observar e determinar a altura do Sol e das estrelas e medir a latitude e a longitude do lugar onde se encontra o observador. Usado pelos gregos desde 200 a.C. Pela sua força emblemática, o Astrolábio passou a nomear a partir de 1984 meu ateliê de artes visuais em São Paulo (nota nossa).

7 Machado (2009, p.30) comenta esta alusão à colagem como procedimento na filosofia deleuzeana:

“Falar de colagem a respeito do pensamento filosófico significa dizer que o texto considerado é

muitas vezes extraído do seu contexto, ou melhor, que os conceitos – considerados como objetos de

um encontro, como um aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem – são utilizados como

instrumentos, como técnicas, como operadores, independentemente das inter-relações conceituais

(19)

Figura 1 - Tela 1 - Eros

(20)

1 O MAL ESTAR DO SUJEITO NA MODERNIDADE

Fazer nascer a obra, oblitera o esquecimento primal.

Gritar-criar é um ato de antinascimento, então de antimorte. Chegar a fazer gritar a obra, é tê-la criado contra a morte que grita nela.

René Passeron (2001, p.12)

Nossa intenção é ler o texto freudiano8 sob uma perspectiva ajustada aos objetivos a que nos propusemos, ou seja, buscar a compreensão e o sentido atribuídos pelo autor naquele contexto histórico para o embate entre as pulsões e as exigências da civilização que estariam na gênese do mal estar na modernidade. Embora possa parecer evidente, não podemos deixar de enfatizar que temos como ponto de referência uma problemática da ordem da subjetividade e de seus impasses sócio-históricos, o que não significa impor ao texto freudiano considerações sociológicas, mas sintonizar o próprio cerne sociológico do discurso psicanalítico sem desfigurá-lo, pois compartilhamos com Rouanet (1998) a seguinte interpretação:

[...] as pulsões não têm qualquer existência independente de sua expressão cultural. O que não significa dissolver a virulência do desejo num sociologismo difuso, mas deixar explícita sua radicalidade, numa cultura que não pode aceitar todas as interpretações [...] – mas somente aquelas que sejam compatíveis com a normatividade estabelecida. (p. 327).

Este capítulo objetiva apor às análises apreendidas da escrita freudiana as modalidades de subjetivação presentes no campo do mal-estar contemporâneo.

O Mal-estar na Civilização (Das Unbehagen der Kultur) é tido por psicanalistas e pesquisadores das ciências sociais como um dos importantes trabalhos de Freud no campo da cultura. Escrito e publicado em 1929, em um contexto político e social marcado pelas atrocidades da 1ª Guerra Mundial, a primeira edição rapidamente se esgotou, tendo sua tradução para o inglês sido lançada em Londres em 1930 sob o título Civilization and its Discontents. Abalado

8 A edição traduzida do alemão na qual nos baseamos para esse trabalho traz uma observação

quanto à tradução para o português dos termos técnicos empregados: “[...] os leitores e psicanalistas

que empregam termos diferentes, conforme suas abordagens e percepções da psicanálise devem sentir-se à vontade para conservar suas opções. [...] apenas precisarão substituir mentalmente

“instinto” por “pulsão”, “instintual” por ”pulsional” [...]". Por essa razão e por orientação de abordagem,

(21)

pelas perseguições em geral, agressões e desaparecimento de familiares e amigos, além de gravemente enfermo, Freud deixa Viena em 1938 seguindo para Londres onde morreu em 1939, ano da eclosão da Segunda Guerra Mundial9.

A opção pelo termo civilização em muitas traduções do “Mal Estar...” faz-nos indagar sobre o sentido que Freud quis imprimir quando utilizou o termo Kultur.

Em O futuro de uma ilusão, Freud comenta que não se preocuparia com essa distinção, sublinhando que seu uso desse termo referia-se ao conhecimento acumulado pelo homem a fim de controlar as forças da natureza e com isso extrair suas riquezas para a satisfação das necessidades. O autor também tinha em conta a importância dos princípios e regulamentos necessários para ajustar as relações de convivência de uns com outros e a distribuição da riqueza disponível.

Todavia, há uma distinção clássica entre os termos civilização e cultura, em que se atribui ao primeiro termo a organização da vida material, sobretudo a produção de bens e de recursos que possam sustentar as condições de subsistência e desenvolvimento da espécie humana.

O termo cultura, por sua vez, compreende as expressões do espírito humano, cujas manifestações aspiram ao conhecimento do ser, às revelações da religiosidade, da filosofia e da arte e outras formações. Certamente para Freud não faltaram tais definições e alguma lógica deve ter orientada essa aparente indiferença entre uma e outra:

Freud entende situar-se numa perspectiva em que ambas se articulam entre si, pois em conjunto constituem o índice que diferencia o homem dos animais. Mas o advento da cultura representa o índice de uma ruptura entre o homem e seus ancestrais, da qual é preciso dar conta. Descritivamente,

os “dois aspectos” da civilização – a organização social e o universo das

representações coletivas – apresentam-se como diferentes, mas na verdade

estão intimamente relacionados. (MEZAN, 1985, p. 483).

De acordo com a visão do historiador e psicanalista Peter Gay (1998), autor de uma das mais importantes biografias sobre Freud, é possível ver o texto freudiano como uma leitura política:

9 A crítica erudita busca explicar a obra pelo autor e dessa perspectiva situa a amargura de Freud nos

(22)

A contribuição específica de Freud à reflexão sobre a política consiste na ideia das paixões reprimidas pela cultura. Essa perspectiva dá a O Mal-Estar na Civilização sua força e originalidade: trata-se de uma teoria psicanalítica da política, formulada de maneira sucinta. Freud não era teórico político, assim como não era historiador das religiões ou arqueólogo. Era um psicanalista que aplicava os recursos de seu pensamento às diversas manifestações da natureza humana. Os maiores teóricos políticos, desde Platão e Aristóteles, haviam feito exatamente o mesmo. Mas Freud fundou sua análise da vida social e política numa teoria da natureza humana muito própria. (p.495-496).

Birman (2009), por sua vez, tem como compreensão dessa obra freudiana um enfoque que nos parece analiticamente refinado:

[...] considerei que o que estava em questão neste desenvolvimento teórico era menos a relação de antinomia insuperável entre os polos da pulsão e da civilização em geral, do que o esforço para circunscrever o sujeito na modernidade. Era o estatuto do sujeito no mundo moderno o que o instigava em suas indagações ainda hoje perturbadoras. Dessa maneira, pode-se não apenas inscrever historicamente a obra de Freud no horizonte da modernidade como também encontrar nesta a matéria-prima para a construção do discurso psicanalítico. (p.17).

Uma vez ajustados os pré-requisitos para a leitura do texto freudiano, definimos um conjunto de noções que facultam a articulação entre os processos individuais e sociopolíticos e nos abrem possibilidades para a proposição de questões nos campos da política e da estética. Com este entendimento, as noções de necessidade, desamparo, identificação, sublimação, princípio de prazer e princípio de realidade compõem o conjunto. Complementarmente, trabalhamos outros enunciados10 (JAPIASSU; MARCONDES, 2001) do campo da psicanálise e da filosofia social.

Após suas considerações sobre o “sentimento oceânico11” (FREUD, 2010, p. 15) em resposta à carta de seu amigo Romain Rolland sobre as fontes da religiosidade, o ponto inicial do enunciado de Freud detém-se nos aspectos da

10 ENUNCIADO (lat. enunciatio) 1. Proposição que não afirma nem nega, mas que é apresentada

como hipótese ou definição. [...] 2. Também é considerado um enunciado o conteúdo de uma proposição independentemente da consideração de seu valor de verdade ou do ato de fala (afirmação, negação, ordem etc.) que se realiza.

(23)

constituição do sentimento do Eu12 (p.17) face aos prolongamentos internos e

difusos cuja entidade psíquica, o inconsciente impregnado por pulsões, encontra-se nas primeiras etapas da instauração do princípio de realidade.

Podemos perceber no texto a ênfase que o autor atribui ao conflito incessante do sujeito, demarcado pelo princípio de prazer e pela realidade, frente aos obstáculos do percurso para se alcançar a satisfação, dificuldades estas impostas pela fragilidade e o efêmero do corpo que comporta dor e medo, bem como os limites e as ameaças inexoráveis da natureza e o padecimento das contradições nas relações humanas13 (p.43).

A economia libidinal freudiana é descrita por operações substitutivas e por variações entre os impulsos objetais e os obstáculos culturais, que convertem o princípio do prazer em um modesto princípio de realidade, portanto afetando à plena satisfação “em geral a tarefa de evitar o sofrer impele para o segundo plano a de

conquistar o prazer” (Freud, 2010, p. 31).

Dentre os deslocamentos libidinais que permitiriam, segundo Freud, mitigar o sofrimento pela substituição das metas pulsionais e se livrar da frustração a partir do mundo externo, a sublimação como possibilidade para um determinado tipo de satisfação traz uma abertura ainda por melhor compreender:

A satisfação desse gênero, como a alegria do artista, ao dar corpo a suas fantasias, a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade especial, que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente. (FREUD, 2010, p. 35).

12

“A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática [...]; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu [...]. Logo, também o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras

do Eu não são permanentes”.

13 Cabe assinalar que essas restrições são reiteradas em articulações crescentes no texto freudiano,

como, por exemplo, no capítulo III: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e nosso

organismo, ele mesmo parte dessa natureza, será sempre uma construção transitória, limitada em

(24)

Nas reflexões sobre o princípio do prazer, em que o autor reconhece avanços alcançados como frutos de árduas investigações teóricas e observações psicanalíticas, seu fundamento consolida-se como uma constante e irrealizável demanda. Trata-se de uma pulsão que impõe ao sujeito uma condição permanente de mobilização e irrefutável apelo para direções contraditórias entre um conteúdo positivo das metas de prazer e a recusa ao desprazer ─ com remota possibilidade de alcançar pleno êxito em qualquer das vias. “Algo de fundamental, portanto,

processou-se entre 1908 e 1929 para que se produzisse uma transformação radical de perspectivas na leitura freudiana sobre a inscrição do sujeito na civilização.”

(BIRMAN, 2009 p. 129).

Para esse autor, o que estaria em questão nos dois ensaios era a relação entre os registros da pulsão e da civilização. No entanto, no primeiro, o conflito ensejava alguma mediação a ser alcançada entre os polos. No segundo ensaio, a relação conflitual entre esses registros passa a ser compreendida por Freud como

estrutural, isto é, “o conflito jamais seria ultrapassado.” (p.209).

Porém, a forma de encarar o conflito vista por Freud passa a requerer do sujeito uma interminável lida uma vez que este não poderá se deslocar da posição originária de desamparo. Para Birman (2009), a mudança de perspectiva reafirmaria no discurso freudiano a dimensão ética e política sobre o conflito.

No texto freudiano em questão, outras possibilidades para a vida harmoniosa e plena são identificadas nas formas oferecidas pela tradição e pela religião, embora o autor, com algum ceticismo, perceba nesses caminhos mais promessas e renúncias do que propriamente uma realização.

O encadeamento da obra segue por etapas, organizando uma interpretação para a história humana como uma epopeia movida por forças contraditórias, que reafirma uma busca ambivalente:

[...] uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da

palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda. Correspondendo a essa

divisão das metas, a atividade dos homens se desdobra em duas direções,

segundo procure realizar uma ou outra dessas metas – predominantemente

ou exclusivamente. (FREUD, 2010, pág. 30).

(25)

estabelecem com frequência. Seu argumento é o de que nossa miséria tem origem na evolução cultural que nos impôs desafios e limites com modos de viver que não se apresentavam nas condições sociais anteriores. Seu posicionamento interpretativo a esse respeito é de que a própria permanência do estado civilizacional e seus desdobramentos geram acúmulos duradouros de renúncia pulsional, ainda que nos confiram benefícios e proteção contra as ameaças de sofrimento. No entanto, acentua que o propósito da satisfação não é absolutamente abandonado: “Como se vê, é simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida. [...] mas o seu programa está em desacordo com o mundo inteiro, tanto o macrocosmo como o microcosmo” (p. 30).

Nem os avanços da ciência e suas aplicações técnicas com o progresso material extraordinário, nem o controle ou a defesa premeditada em relação às forças naturais escapa a uma avaliação de que a cada superação ou nova descoberta caberiam ao homem e sua sociedade problemas de novo tipo.

Dentro desse percurso social em transformação constante, desde os domínios alcançados pela ciência sobre os elementos básicos da natureza até suas últimas realizações, às quais Freud se refere, incluem-se as possibilidades e os meios disponíveis para as longas viagens, assim como as novas formas de comunicação. Assim, em uma era plena de conhecimento, ciência e arte, o homem tornou-se um ser criador; suas máquinas admiráveis propiciam satisfações inatingíveis em outros tempos, quando mal corporificava suas crenças por meio de construções divinas. Estas considerações evidenciam a aproximação que Freud fez entre civilização e cultura e os laços e impactos dessa saga quando asseverou que os próprios órgãos humanos, motores e sensoriais foram afetados e agora, como um criador, esse ser infla-se de devaneios de um semideus, isto é, “Todo esse

patrimônio ele pode reivindicar como aquisição cultural.” (2010, p. 51-52).

(26)

homem é levado a desenvolver uma atitude estética aplicada à produção dos seus próprios bens e objetos de uso.

Freud faz menção a uma ciência da estética, ainda inconclusa segundo ele, que estaria às voltas com a origem e os meios da expressão artística, mas arremata que per se seria insuficiente para nos defender do sofrimento, embora prodigiosamente compensatória e de peculiar qualidade sensorial.

Para nós, o interessante desse período da escrita freudiana é perceber o valor atribuído à criação e às obras artísticas, referenciadas em muitos dos seus textos e às vezes até como exercício interpretativo específico, como é o caso da tela

Santa Ana a virgem e o menino, cuja interpretação alcança o próprio artista, Leonardo Da Vinci, em busca da função que sua fantasia original teria desempenhado na criação dessa obra. Não se trata de retomar a natureza dessa interpretação, pois ela é polêmica e persiste como questão, mas seria essa a relação mais fecunda entre arte e psicanálise?

Mezan (1985) enfatiza que, em A Interpretação dos Sonhos, cultura e arte são temas significativos e, embora esse fato se dê como a primeira incursão em texto publicado por Freud, não se pode imaginar que se encontra aqui o elo inicial dessa fecunda ligação:

O complexo de Édipo não é ilustrado pela peça de Sófocles; sua elaboração

por Sófocles é um momento decisivo da invenção do conceito por Freud, fornecendo-lhe não apenas um nome para designá-lo, mas um componente absolutamente fundamental de todo o conceito, a saber, a universalidade. Eis porque Freud considera tão importante o estudo psicanalítico das produções culturais. (2010, p.139).

A presença da arte nos textos da psicanálise se mantém como uma constante e podemos atribuir-lhe vários sentidos. Por exemplo, quando são aplicadas suas noções à análise ou à interpretação literária e às obras plásticas, tem-se mais do que o objetivo aparente, qual seja, o de tomar essa produção exclusivamente como objeto de aplicação da capacidade analítica de interpretação das formas culturais:

Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no

insignificante. [...] se Freud interpreta fatos “anódinos”, desprezados por seus colegas positivistas, e pode fazer com que esses “exemplos” sirvam à

(27)

O princípio do prazer e o princípio de realidade são noções constantes nas aproximações e embates entre o processo de evolução individual e cultural, matizadas por contradições entre essas forças e em cada uma delas. A complexidade dessas operações entre as pulsões e a inibição do prazer e a maneira mesma como se expressam e, mais ainda, a dificuldade inerente às próprias noções, remete a questão ao próprio teorema da psicanálise:

Os detalhes do processo pelo qual a repressão transforma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer ainda não são bem compreendidos ou não podem ser claramente expressos, mas certamente todo desprazer neurótico é desse tipo, é prazer que não pode ser sentido como tal. O essencial é, provavelmente, que prazer e desprazer, como sensações conscientes, acham-se ligados ao Eu. (FREUD, 2010b, p.167).

Freud sempre demonstrou especial apreço às figuras literárias e artísticas aproximando-as e, de certa forma, consubstanciando-as a partir da experiência clínica e de suas formulações científicas e filosóficas. A passagem a seguir é reveladora desse seu tributo ao conhecimento e a arte:

De todas as partes que gradualmente se desenvolvem na teoria psicanalítica, a teoria dos instintos foi a que tateou mais penosamente o seu caminho. [...] No completo desnorteio inicial, uma frase do poeta-filósofo

Schiller, segundo o qual a fome e o amor sustentam a máquina do mundo,

forneceu-me o ponto de partida. A fome poderia representar os instintos que querem manter o ser individual, enquanto o amor procura pelos objetos; sua função principal, favorecida de toda a maneira pela natureza, é a conservação da espécie. (FREUD, 2010a, p. 84).

Um dos impasses da teoria psicanalítica, situado em torno de 1920, parece ter sido desencadeado por uma mudança de enfoque do reprimido para o que reprime ou, mais precisamente, das pulsões objetais para o Eu. Conforme vamos depreendendo do texto, uma nova elucidação só se tornaria possível com a introdução do conceito de narcisismo e então pari passu é introduzida uma especulação sobre o conceito de pulsão de morte, que poderia pôr em questão o próprio conceito de libido tal como concebido. Neste ponto, o que nos importa é iluminar o que sucede e como Freud, surpreendentemente, parece refletir consigo

(28)

fundamentada, segundo a qual os instintos não podiam ser todos da mesma

espécie”. (FREUD, 2010, p. 85).

A questão é apresentada como uma fundamentação com a qual trabalhou em

Além do Princípio do Prazer (1920) sobre a compulsão de repetição e do caráter conservador das pulsões:

[...] deveria haver, além do instinto para conservar a substância vivente e juntá-las em unidades cada vez maiores14, um outro a ele contrário, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial inorgânico. Ou seja, ao lado de Eros um instinto de morte. Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta ou antagônica dos dois. Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. (p. 85- 86).

Essa dualidade das pulsões introduziu muitas ampliações na força e dinâmica da economia libidinal, tornando ainda mais complexas as pulsões primárias de agressão e destruição, as operações reativas que vêm a desencadear, as vicissitudes, satisfeitas ou retornadas após recalque:

[...] podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente – talvez

nunca – surgem isoladas uma da outra, mas se fundem em proporções

diferentes e muito variadas, tornando-se irreconhecíveis para nosso julgamento. (p. 86)

Pelo estilo como Freud vai apresentando as questões, ora enunciadas de forma direta, outras vezes por analogias, achamos interessante trazer o comentário interarticular para avançarmos mais nessa questão que nos parece também de fundamental importância para a compreensão do desenvolvimento da psicanálise:

Ora, na verdade Freud não demonstrou o que se propusera demonstrar – a

existência de um representante psíquico da pulsão de morte – mas sim a possibilidade de uma aliança entre ela e as pulsões eróticas; o que, porém, longe de dar xeque-mate à sua especulação, abre um leque de possibilidades ainda mais amplas. (MEZAN, 1985, p. 446).

Em alguns períodos do Mal-estar..., Freud deixa transparecer o cuidado como conduz suas investigações, levando em conta o sentido de advertência que faz logo

(29)

na segunda frase dessa obra, qual seja, a de que haveria sempre um risco de subestimarmos a variedade do mundo humano e sua vida psíquica. Muitas vezes percebemos essa cautela em sua escrita, como que para nos aliviar das águas profundas do inconsciente, quando o autor retoma os fios mais aparentes do comum da vida e refere-se a “determinações do destino” ou “escolhas pessoais”, quer dizer,

parece que seu intuito é fazer um afastamento da linguagem técnica e erudita para melhor fazer-se entender.

Em uma dessas situações, ao tratar de uma alternativa para a satisfação, faz um rodeio para nomear o que apenas insinua um método para manter a felicidade e a distância do sofrer, algo ainda não mencionado, mas que seria impossível esquecê-lo – uma forma com combinações muito características para escapar dos volteios do destino e que quase nunca se dá por satisfeita em só evitar desprazer. A satisfação desse afeto tem origem nos processos psíquicos operados pelos deslocamentos de libido sem, no entanto se afastar do mundo exterior, uma vez que se prende aos seus objetos e desfruta de uma relação com eles:

[...] não se dá por satisfeita com evitar o desprazer – uma meta, digamos,

de cansada resignação – mas ignora isto e se apega ao esforço original, apaixonado, por uma realização positiva da felicidade. Talvez ela realmente se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Estou falando, claro, daquela orientação de vida que tem o amor como centro, que espera toda satisfação do amar e ser amado. (FREUD, 2010, p. 38-39)

Soa simples e poético o amor assim introduzido e fala tão perto das nossas experiências. E mais, ainda que chamado de atitude psíquica, é logo potencializado pelo reconhecimento da forma tocante do amor sexual, como diz Freud ser este:

[...] a mais forte experiência de uma sensação de prazer avassaladora, dando-nos assim o modelo para nossa busca da felicidade. Nada mais natural do que insistirmos em procurá-la no mesmo caminho em que a encontramos primeiro. (FREUD, 2010a, p. 39).

Mas, como já sabemos, a psicanálise não opera com ideais e Freud nem sequer faz pausa, pois logo nas linhas seguintes uma grave fragilidade é atribuída

(30)

Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor. Mas com isso não encerramos [...] haverá muito mais a dizer sobre isso. (2010a, p. 39).

No campo psíquico demarcado pelo impulso de prazer e medo ao desprazer, a satisfação irrestrita se apresenta como um fascínio de consequências paradoxais

que não tardaram a emular preceitos a que Freud denominou de “escolas de sabedoria de vida”, de métodos variáveis que, no entanto, mantém a mesma finalidade – evitar o desprazer. Esse percurso da satisfação nos ajuda a compreender a moderação e a cautela como metas negativas, ou seja, substitutivas, uma vez que deixamos a busca dos fortes prazeres numa tentativa de fugir da dor e do desprazer.

Os caminhos derivativos para o alcance da felicidade e as escolhas substitutivas para afastar o sofrimento ou o desprazer são perfilados pelo autor, que nos parece fazê-los com alguma ironia. Isto ocorre, por exemplo, quando este sugere o isolamento voluntário como tarefa individual para evitar o sofrimento que advém do convívio humano e assim proporcionar, pela via da quietude, certa felicidade a esse individuo15. Outros caminhos podem visar o bem-estar da comunidade humana e uma dedicação é fortemente dirigida ao desenvolvimento de técnicas científicas ou à construção de modelos organizativos para proteção contra os ataques da natureza e, desta forma, como uma satisfação altruística, a satisfação encontra-se com a felicidade coletiva.

Outra via relatada é um método tido como mais primário, mas muito eficaz, alcançado por adição de substâncias químicas e, consequente, uma intoxicação capaz de gerar imediatas sensações de prazer. Um exemplo é o consumo de álcool e de entorpecentes, que de maneira geral é valorizado tanto por indivíduos como por muitas culturas. São práticas associadas a um prazer imediatista e a certo afastamento da infelicidade por recuo a si mesmo. Assim como as demais possibilidades, essas também comportariam um grau de nocividade e perigo e, em muitas circunstâncias, não fazem mais do que drenar do crédulo indivíduo grandes quantidades de energia.

15 Aqui Freud refere-se ao domínio das fontes internas de necessidade, como apregoado pela

(31)

A complexa organização da vida psíquica é permeada por muitas influências, razão pela qual não poderíamos esperar que agir diretamente sobre as fontes internas da necessidade pudesse nos livrar do sofrimento. Sob essa perspectiva, o próprio organismo poderia realizar algo semelhante, como antevia Freud e, de sua experiência clínica relata os estados maníacos como uma analogia à embriaguez sem necessidade de adições.

Outras formas possíveis e mais moderadas dessa “sabedoria da vida” lidam

com uma espécie de controle pulsional, ou seja, com a possibilidade de ajustar instâncias psíquicas, consideradas mais elevadas, ao princípio de realidade, não se abstendo totalmente nessa operação do propósito da satisfação. Seria uma atitude protetora, pois caso a satisfação não se dê, esta não será necessariamente sentida como dor ou frustração insuportável, como aquela das pulsões não inibidas. Mas sempre será outra coisa, conforme nos diz o autor:

A sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem, não domado pelo Eu, é incomparavelmente mais forte do que a obtida ao saciar um instinto domesticado. O caráter irresistível dos impulsos perversos, talvez o fascínio mesmo do que é proibido, tem aqui uma explicação econômica. (FREUD, 2010a, p. 35).

Para Freud, a cada nova possibilidade trazida pela sabedoria da vida e aventada como técnica ou método de bem viver, a invariante é o desejo, o que significa dizer que a circunstância externa pressiona ou seduz, mas será a dimensão psíquica do indivíduo o fator decisivo para mobilizar as forças que ele se atribuirá para empreender modificações.

(32)

Sinto que devo apontar ao menos uma das lacunas da exposição acima. Uma consideração das possibilidades humanas de felicidade deveria levar em conta a relação do narcisismo com a libido objetal. Necessitamos saber o que significa para a economia libidinal depender essencialmente de si mesma. (FREUD, 2010, p. 42).

Mais do que uma inclinação ou mera tendência, a agressividade está na base da constituição do Eu e na sua relação com seus objetos. Ela pode ser sublimada, pode ser recalcada, e não precisa ser exclusivamente atuada, pois o sujeito conta com a mediação simbólica. A agressividade surge sem propósito sexual, ligada a um prazer narcísico excepcionalmente poderoso a pressionar o Eu com seus desejos arcaicos de onipotência.

No final do capítulo VI de O mal-estar na civilização, o autor se mostra generosamente didático ao nos expor essa síntese magistral:

Portanto, em tudo o que segue me atenho ao ponto de vista de que o pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser humano, e retorno ao que afirmei antes, que a civilização tem aí o seu mais poderoso obstáculo. No curso desta investigação, impôs-se nos a ideia de que a cultura é um processo especial que se desenrola na humanidade, e nós continuamos sob o influxo dessa ideia. Acrescentemos que é um processo a serviço de Eros, que pretende juntar indivíduos isolados, famílias, depois etnias, povos e nações numa grande unidade, a da humanidade. Por que isso teria de ocorrer não sabemos; é simplesmente a obra de Eros. Essas multidões humanas devem ser ligadas libidinalmente entre si; a necessidade apenas, as vantagens do trabalho em comum não as manterão juntas. Mas a esse programa da cultura se opõe o instinto natural de agressão dos seres humanos, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um. Esse instinto de agressão é o derivado e representante maior do instinto de morte, que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo. (FREUD, 2010, p. 90).

E o processo civilizatório, indaga Freud, como se defronta com essa agressividade e o que alcança aferir contra ela? E nesse ponto a questão emblematicamente não é vista pelo ângulo externo e sim no âmbito da dinâmica interna, uma vez que a agressividade é reconduzida ao seu ponto de origem, ou seja, internalizada, volta-se contra o próprio Eu. Parte desse Eu a acolhe e põe-se em oposição ao que persiste, reordenando-se nessa recepção como superego, como consciência16·. E, com a mesma força da agressividade original que o Eu

(33)

buscava satisfazer, o Super-eu o pressiona rigorosamente. A essa tensão denominou-se consciência de culpa, manifesta como necessidade de punição: “A

civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu

interior [...]”. (p. 92).

Essa reorganização de forças não é um mecanismo espontâneo, pois em determinado momento a agressividade foi inibida porque algo se interpôs a esse propósito. Mas ao conter o impulso e impedir o ato, o propósito permaneceu equiparado a uma realização, uma vez que enseja culpa e necessidade de punição. Esse confronto e suas consequências para o sujeito e a civilização parecem comportar boa parte da magnificência dos axiomas da psicanálise:

Primeiro, que o “mal-estar na cultura” não deriva tanto da repressão da sexualidade, porém, mais profundamente, da repressão da agressividade;

segundo, que esta se dá por meio da instalação no psiquismo de “barreiras”

destinadas a tolher as manifestações agressivas. Sexualidade e agressividade, aliás, não se apresentam jamais isoladamente; esta é um fator associado àquela, sob a forma das pulsões parciais ou como atividade destinada a assegurar o encontro e a fruição do objeto; igualmente, mesmo na fúria destruidora mais intensa, o componente narcisista inerente à afirmação da força e do poder não pode ser eliminado. É que estamos diante de fenômenos de fusão pulsional; a cultura se revela assim não só como poder de coerção, mas igualmente como espaço de manifestação e de satisfação, dentro dos limites variáveis, das duas pulsões. (MEZAN, 1985, p. 507).

Mas Freud insiste em reconhecer que o sacrifício imposto é mais poderoso do que as possibilidades de satisfação oferecidas pela cultura. Para o Eu, embora uma pulsão satisfeita na sua meta proporcione grande prazer, a contenção que a ela se opõe identifica a realização como algo repreensível. Assim sendo, resta indagar sobre a existência de uma determinação externa, que julga o que é mau ou repreensível, mas não se trataria disso:

É lícito rejeitar uma capacidade original por assim dizer natural, para distinguir entre o bem e o mal. Com frequência o mal não é, em absoluto, uma coisa nociva e perigosa para o Eu, mas, pelo contrário, algo que ele deseja e que lhe dá prazer. (FREUD, 2010a, p. 93).

morais; em alemão, usa-se Bewusstsein no primeiro caso, e Gewissen, no segundo. É possível

(34)

E por que motivo se submeteria tal consciência à culpa e à necessidade de punição indiferentemente do alcance de uma meta ou do simples propósito? A resposta vem do fundo do ser – do desamparo e da dependência do outro,

sentimento que Freud designa como “medo da perda do amor”. Essa perda comporta castigo e exposição aos perigos que lhe impõem os agravos da desproteção desse outro, poderoso e ameaçador. Essa constante ameaça da perda de um bem insustentável, enigmático, a exigir abstenção de desejar e de realizar, furta cores das ambivalências de amor e ódio, prazer e desprazer, bem e mal e, por fim, descortina o inevitável sentimento de culpa. Obra de uma complexa operação que movimenta etiologias e determinações culturais:

Chamamos a esse estado má consciência, mas na realidade ele não merece esse nome, pois nesse estágio a consciência de culpa não passa claramente de medo da perda do amor, medo social. Na criança pequena não pode ser outra coisa, mas em muitos adultos também não há diferença, exceto que o lugar do pai, ou de ambos os pais, é tomado pela grande sociedade humana. (FREUD, 2010, p. 94).

Uma importante mudança ocorre quando a autoridade é internalizada e, assim como as próprias determinações do sujeito, a civilização impõe também graves e importantes exigências, através do mecanismo denominado na psicanálise freudiana de superego da cultura, com equivalências relativas de punições que se

manifestariam mediante “angústia de consciência”. Ademais, sua existência nos

ajudaria a compreender os processos psíquicos, uma vez que são mais acessíveis à consciência quando determinados pela sociedade do que o seriam quando gestados pelo próprio indivíduo. Sim e não, pois curiosamente, nesse estágio a consciência demonstra uma peculiar diferença em relação ao estágio anterior (medo da perda de amor). Trata-se de um paradoxo, pois a medida de grandeza da virtude que determinado indivíduo comporta faz aumentar o grau de desconfiança e severidade de sua consciência. Mas pode-se objetar ou compreender isso como dificuldades inerentes ao ser moral, cuja consciência tem como características o rigor e a vigilância para consigo mesma.

(35)

[...] o pendor constitucional dos homens para a agressão mútua e por isso mesmo nos interessamos especialmente por aquele que é o mais jovem dos

mandamentos do superego cultural que diz: “Ama teu próximo como a ti

mesmo. (FREUD, 2010, p. 118).

As considerações ulteriores sobre esse preceito buscam responder, pareceu-nos com fina ironia, à desproporcionalidade dessa exigência e sua inexequível consigna só possível de ser tangenciada pela satisfação narcísica, quando o indivíduo se considera superior aos outros ou pela força inquestionável do mandamento divino cuja recompensa não se deve esperar neste mundo. Sob essa perspectiva, a ética poderia ser vista como um ponto frágil de defesa da cultura ao sustentar-se na relatividade de bem e mal e exigir respostas adequadas aos desígnios da civilização a um Eu de domínio restrito sobre suas pulsões:

Que poderoso obstáculo à cultura deve ser a agressividade, se a defesa contra ela pode tornar tão infeliz quanto ela mesma! A chamada ética natural nada tem a oferecer aqui, salvo a satisfação narcísica de o indivíduo poder se considerar melhor do que outros. [...] Acho que, enquanto a virtude não compensar já nesta vida, a ética pregará em vão. (p. 119).

Mas poderia haver um ponto de saturação determinado pela exigência de sacrifício e pelos fins do empenho cultural? Para Mezan (1985) parece haver sempre duplicidades e conflito a espreita com desdobramentos de distintas ordens:

Dadas estas condições, o sentimento de culpabilidade também cresce em espiral, e, em virtude do mecanismo que preside à formação das massas, pode vir a encontrar na submissão absoluta ao líder uma válvula de escape, a qual, entretanto, devido às mesmas circunstâncias, pode também atuar em sentido contrário: expiada parcialmente a culpabilidade pelo masoquismo inerente à cega submissão, a agressividade retorna ao primeiro plano e se desencadeia por exemplo contra aqueles que o líder ou

a doutrina que este prega apontam como inimigos. Como não ver no

horizonte de um texto como O Mal-estar na Cultura, a sombra das hostes

nazistas?17” (MEZAN, 1985, p. 511-512).

Deparamo-nos nesse texto freudiano com um profícuo embate entre noções psicanalíticas e conceitos trazidos de troncos importantes da ciência, da experiência sensível, e de surpreendentes indagações e formulações. Estamos diante de uma

17 Em seu artigo Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda, Theodor W. Adorno mostra

(36)

grande obra sustentada por argutas interrogações à saga humana que, Freud reconhece, poderiam advir de críticos de variadas correntes. Quase como uma confissão, declara que se esforçou durante esse trabalho para manter à distância um preconceito entusiasta concernente ao fato de que a civilização é o que temos de mais precioso e nos conduziria indubitavelmente à perfeição.

Birman (2009) assinala que essa formulação enunciada nas páginas do Mal-estar... está fundamentada na segunda teoria das pulsões em Além do Princípio do Prazer, de 1920, e baseia-se particularmente no desamparo do sujeito diante da pulsão de morte, cuja modalidade não supõe representação e inscrição no circuito de satisfação pela mediação de um objeto.

Para esse autor, o desamparo a que se refere Freud expõe a contingência do sujeito no mundo, um ser frágil e mortal, que talvez por isso seja levado a criar artifícios para o tamponamento das suas marcas de vaidade, suposta

autossuficiência e onipotência: “[...] algo da ordem originária, marcando a subjetividade humana para todo o sempre, de maneira indelével e insofismável”

(Birman, 2009, p. 37). Percebida como uma questão axial da psicanálise, para esse autor, Freud afasta-se a partir daqui das possibilidades e da crença iluminista no ideal de felicidade prometido pela ciência.

Bauman (1998) analisou praticamente no limiar deste século as exigências impostas pela civilização aos indivíduos, contrapondo as demandas e os sacrifícios da modernidade com a atualidade, à qual denomina pós-modernidade. Nossa justificativa para trazer suas ideias com ênfase quase no final deste capítulo é que suas argutas observações comportam causalidades históricas, conceitos filosóficos e noções analíticas próprias que apontam valores em transição e imprimem sentido para o mal-estar da atualidade. E, mais importante, as categorias do seu ensaio sociológico mantém implicações com noções psicanalíticas, além do que sua análise articula-se com os elementos de nossa pesquisa. Assim como outros autores, psicanalistas ou filósofos, afirmar sua compreensão sobre o enquadramento da crítica freudiana da cultura se faz necessário:

Só a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da

“cultura” ou da “civilização” e agiu sobre esse autoconhecimento com os

(37)

A conjunção que imbricaria o sujeito ao mal-estar, para este autor teria se deslocado da renúncia à liberdade sem restrições em favor da segurança coletiva, para uma vontade individual de liberdade e prazer que desdenha da própria segurança. Sacrifica-se a segurança pela liberdade:

[...] quando é a vez de a segurança ser sacrificada no templo da liberdade individual, ela furta muito do brilho da antiga vítima. Se obscuros e monótonos dias assombravam os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos a felicidade soçobra. (p.10).

Coerentemente, insistimos na noção do contemporâneo de Agamben (2009) para melhor compreender essa asserção e indagar se é possível pensar esse deslocamento da segurança para a liberdade independentemente das dimensões de passado e presente. E, ainda, não atribuí-los à história, pois as determinações históricas para necessidade e vontade parecem ser complementares, quando se trata de insistir, ainda que criticamente, nas noções da psicanálise:

Assim como um planeta circula em volta do seu astro central, além de rodar em torno do seu próprio eixo, também um ser humano participa do curso evolutivo da humanidade, enquanto segue o seu caminho de vida. Para nossos olhos obtusos, no entanto, o jogo de forças do céu parece fixado numa ordem imutável: na vida orgânica vemos ainda como as forças lutam entre si, e os resultados do conflito mudam constantemente (FREUD, 2010, p. 115).

Quase ao final deste capítulo, é preciso dizer que encontramos no texto freudiano questões para o âmbito da tese com as perspectivas e o horizonte almejados. Trouxemos, conforme anunciado, as contraposições de comentadores de modo a evidenciar os traços e a configuração da subjetividade. Em muitos períodos do texto foi possível encontrar na reflexão freudiana um ser oxidado pela renúncia de suas pulsões em nome do coletivo civilizacional, a vagar pelas possibilidades abertas por Eros, visto pelo autor, ao lado de Ananké, como o patrono da cultura humana.

Imagem

Figura 1 - Tela 1 - Eros
Figura 2 - Tela 2 -Transgressão
Figura 3 - Tela 3 - Fuga
Figura 4 - Tela 4 -Revolução
+2

Referências

Documentos relacionados

O art. 87, da OIT como bem se há de recordar, estatui que os trabalhadores têm o direito de constituir organizações que julgarem convenientes, o que implica na possibilidade

O imperativo presente da voz ativa, apenas na segunda pessoa do singular e do plural, é formado tomando-se para a segunda pessoa do singular o tema puro do verbo,

• a família como aporte simbólico, responsável pela transmissão dos significantes da cultura boliviana, que marca o lugar desejante de cada imigrante nos laços sociais. Na

PUC-Campinas - Pontifícia Universidade Católica de Campinas PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Camilo - SP - Centro Universitário São Camilo São Judas

A pesquisa apresenta a comparação entre as diferentes regulamentações existentes relacionadas a auditoria contábil no mercado de capitais, na abertura de capital, emissão

RESUMO: Este artigo retrata a trajetória do desenvolvimento da estrutura arquivística da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde a sua primeira unidade de refe-

Opcional de quarto ampliado, aqui representado, deve ser escolhido no ato da assinatura do Contrato de Promessa de Compra e Venda, e a disponibilidade de execução do mesmo

Entendemos que o estudo dos conhecimentos mobilizados pelos alunos relacionados ao valor posicional e, em particular, ao número zero no SND seja de fundamental importância para