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SOB O DOMÍNIO E O ALÉM MAIS DO PRINCÍPIO DA REALIDADE

Noite, para que eu não durma. Água, para que eu não beba. Ontem, para que eu não lembre. Fresta, para que eu não veja. Nada, para que eu não seja. Fruta, para que eu não coma. Pão, para que eu não morda. Halo, para que eu não veja. Cores, para que eu não veja. Rosa, para que eu não queira. Linha, para que eu não teça.

Nuno Ramos (2002, p.53)

A trajetória intelectual de Marcuse inicia-se por uma consistente formação filosófica na Alemanha dos anos 20 do século passado em Berlim e Friburgo, e por ter sido aluno de Heidegger e Husserl. Seu pensamento filosófico-político legou-nos uma vasta produção cuja singularidade contempla uma apreensão que vai além do explicativo e do teórico sobre a realidade social. No início dos anos 30 integra, a convite de Horkheimer, o quadro de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Essa sua vinculação contribuiu para o aprofundamento da Teoria Crítica, núcleo principal das investigações que ali se produziram, fortemente influenciado pela afirmação da práxis política e que, a despeito da coerência de fundamento, teve na sua própria história importantes divergências teóricas entre seus membros. Para melhor compreender essa história é necessário destacar uma de suas especificidades na abordagem de um número importante de temas, principalmente quanto ao:

[...] movimento freudo-marxista dos anos 20 e 30. Essas primeiras tentativas de aproximar o pensamento de Freud e Marx tiveram como pano de fundo dois marcos históricos – a revolução bolchevista, em 1917, e a chegada de Hitler ao poder, em 1933. Esses dois fatos condicionaram a forma e as características da recepção de Freud pelos e Marxistas. Os dois episódios têm em comum a valorização do fator subjetivo da história. (ROUANET, 1998, p. 13).

Essa explicação também se sustenta pelo fato de a psicanálise ter construído, de modo inovador, um sistema explicativo do funcionamento psíquico que denotava oferecer os instrumentos para a compreensão da ideologia burguesa que havia impregnado a consciência proletária: “Seria porque derivava sua força de persuasão de mecanismos afetivos, irredutíveis à argumentação racional, mas acessíveis, em sua estrutura profunda, às categorias explicativas da psicanálise?” (ROUANET, 1998, p. 14).

Entre outras abordagens de seus estudos e pesquisas, Marcuse destacou-se por examinar as relações entre arte e transformação social, vistas sob uma perspectiva de unidade de opostos em que a arte, ao obedecer a uma necessidade que lhe é originária, potencializaria a liberação do homem.

Reagindo à identificação plana e distorcida da obra de Marcuse com a contracultura e para demonstrar tal equívoco, Maar apud Borges (2002, p.11) faz uma a periodização de sua obra, a qual Borges (2002, p. 13) organiza para fins didáticos em três fases consideradas emblemáticas de seu pensamento, e nas quais se alinham os artigos e os livros mais marcantes de cada período.

O primeiro período, de 1928 a 1933, denominado de fenomenológico, reúne os seguintes textos: Contribuições a uma fenomenologia do materialismo histórico (1928), Sobre a filosofia concreta (1929), A ontologia de Hegel e os fundamentos de uma teoria da historicidade (1932), Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico (1932) e Fundamentos filosóficos do conceito econômico- científico de trabalho (1933).

Os textos da segunda fase, demarcada pelo período fankfurtiano inicial de Marcuse entre os anos de 1934 e 1955, são: O combate ao liberalismo na concepção totalitária do Estado (1934), Sobre o conceito de essência (1936), Estudos sobre autoridade e família (1936), Filosofia e teoria crítica (1937), Sobre o caráter afirmativo da cultura (1937), Para a crítica do hedonismo (1938), Uma introdução à filosofia de Hegel (1939), Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1941), Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social (1941) e O Existencialismo (1948).

O terceiro período estaria, para o pesquisador brasileiro, centrado na Teoria Crítica da Sociedade: Eros e Civilização: uma crítica ao pensamento de Freud (1955), Obsolescência da Psicanálise (1963), A ideologia da sociedade industrial (1964), Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber (1964), Ética e revolução (1964), Comentários para uma redefinição de cultura (1965), O fim da utopia (1967), Contra-revolução e revolta (1972) e A dimensão estética (1977).

Os conceitos da psicanálise expostos no Mal-estar... e as análises que Marcuse realiza sobre o problema da civilização a partir do enunciado freudiano trazem proposições autorais do filósofo. Isso significa que noções fundamentais da psicanálise passaram por uma torção, ou seja, uma modificação, sem se afastarem

de alguns fundamentos, como por exemplo, o do inconsciente, das pulsões e suas vicissitudes e dos princípios de prazer e realidade.

É um texto elaborado trinta anos depois do ensaio freudiano que, como não poderia deixar de ser, traz o peso e as transformações perspectivadas da sociedade industrial da segunda metade do século 20. Evidentemente, os aspectos trabalhados por Marcuse são muitos e não poderíamos dispensar a mesma atenção a todos eles.

Tampouco poderíamos deixar de observar com atenção uma nova introdução que Marcuse fez, uma década após a publicação de Eros e Civilização, no prefácio da edição desse ano, a qual denomina Prefácio Político, 1966.

O texto ecoa como um alerta à crescente complexidade do sistema de dominação e os possíveis rebatimentos sobre os pressupostos de emancipação por ele desenvolvidos nessa mesma obra. Encontramos aqui um tom mais sombrio quanto às possibilidades de realização humana diante da expansão do modelo de sociedade industrial, a qual particularmente referia-se como “sociedade afluente” e suas consequências.

Dentre as reflexões que empreende, o autor acentua o fato de que aplicara um princípio otimista, ou mesmo equivocado, em suas análises, ao considerar a questão da riqueza social como uma condição favorável para se empreender uma luta conjunta das pulsões vitais contra os provisores da morte. Seu ponto de partida anterior foi a hipótese de que, com as realizações culturais, teríamos, de certa forma, alcançado um patamar favorável para levar adiante a reversão dos binômios produtividade e destruição e liberdade e repressão:

Negligenciei ou minimizei o fato desse fundamento lógico “obsoleto” ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social. As próprias forças que tornaram a sociedade capaz de amenizar a luta pela existência serviram para reprimir nos indivíduos a necessidade de tal libertação. (MARCUSE, 2009, p. 13).

Na introdução original de 1955 o autor faz uma extensa digressão sobre a hermenêutica da psicanálise pela via de suas próprias noções e termos, reconhecidos no texto freudiano como sócio-históricos, e posiciona-se dentro desses limites para indagar:

A relação entre liberdade e repressão, produtividade e destruição, dominação e progresso, constituirá realmente o princípio de civilização? Ou essa inter-relação resultará unicamente de uma organização histórica especifica da existência humana?. (p. 28).

Esse posicionamento inicial interroga de forma crítica e direta o revisionismo neofreudiano daquele período, sobretudo o deslocamento operado nas obras de Erich Fromm, Karen Horney e Harry Stack Sullivan, nas quais a profundidade do conflito entre o indivíduo e sociedade, ou seja, a estrutura pulsional e o domínio do consciente estariam próximos de um nivelamento pré-freudiano. O ponto de inflexão teórica comum a esse grupo revisionista está demonstrado, segundo Thompson (1976 apud MARCUSE, 2009, p. 213), quando se opera o deslocamento “do passado para o presente, do nível biológico para o cultural, da constituição do indivíduo para o seu meio.”.

Embora mantenha certa distância do que chamou de disciplina técnica da psicanálise, Marcuse põe sua ênfase interpretativa a serviço das implicações filosóficas e sociológicas do texto de Freud, lido, portanto, como uma construção teórico-filosófica que pretende compreender o âmago da constante e enigmática perturbação social. No entanto, não deixa de centrar-se nos conceitos psicanalíticos, principalmente em relação à repressão imposta pela sociedade ao homem e por determinar importantes diferenças, como veremos adiante no texto. Para o autor, sua estratégia de análise prevê um caminho que contorna os argumentos terapêuticos para centrar-se em uma construção teórica que propicia uma leitura sobre uma determinada perturbação geral. Propõe em seguida algumas explicações sobre o emprego de certos termos:

Civilização é usada permutavelmente como cultura – tal como em O mal-

estar da civilização, de Freud. Repressão e repressivo são empregados na

acepção não-técnica para designar os processos conscientes e inconscientes, externos e internos, de restrição, coerção e supressão. “Instinto”, de acordo com a noção freudiana de Trieb, refere-se aos “impulsos” primários do organismo humano que estão sujeitos a modificação histórica; encontram representação tanto somática como mental. (MARCUSE, 2009, p. 30).

Para a reinterpretação dos princípios analíticos freudianos que corresponde em grande medida à distinção entre os processos inconscientes e conscientes, o autor recorre à imagem de um sujeito cuja existência se daria em duas diferentes

dimensões mentais, com processos independentes e permeados por constantes conflitos. As tensões, com consequências traumáticas expõem o embate entre pulsões que buscam prazer irrestrito e o princípio de realidade.

As evidências da reprodução expansiva do sistema sobre a quase totalidade das dimensões da vida faz transparecer a complexidade que está posta para a superação da sofisticação repressiva gestada desde muito por uma determinada forma de administração científica das necessidades pulsionais – fator vital da reprodução do sistema:

[...] a mercadoria que tem que ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é destorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente. (MARCUSE,2009, p.14).

Ao adentrar o corpo do texto, Marcuse chama a atenção para o fato de que a abordagem freudiana comporta uma irremovível dualidade conflituosa, dialética, enunciada na tese segundo a qual a história social do homem é a história da sua repressão. A face oposta dos presumíveis bens culturais se revelaria nas barras da coerção da vontade humana pré-condição para uma construção social e sua preservação duradoura.

Essa transformação da regência dos princípios sobre a vida, que sobrepõe o princípio de realidade à satisfação pulsional, toca profundamente a natureza humana quando o indivíduo renuncia ao prazer momentâneo, incerto e ilimitado, pela postergação ou substituição da finalidade pulsional. Para o autor, estas são modificações expressas na teoria psicanalítica como vicissitudes da pulsão, noção presente nos conceitos de sublimação, identificação, projeção, repressão e introjeção.

Cabe retomar, de nossa parte, que nos textos freudianos com amplitude social tais como Atos obsessivos e práticas religiosas (1907) e Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), que antecedem O mal-estar..., as vicissitudes já estavam presentes como mecanismos de modificação dos impulsos sexuais através da sublimação em ações não-sexuais e culturais.

Essa modificação ou variação de objetivos, ou mesmo a inibição de anseios por que passam os instintos primários sob a influência da realidade externa, é parte da origem e da permanente tensão do mundo sócio-histórico:

Filogeneticamente, ocorre primeiro na horda primordial, quando o pai primordial monopoliza o poder e o prazer, e impõe a renúncia por parte dos filhos. Ontogeneticamente, ocorre durante o período inicial da infância, e a submissão ao princípio da realidade é imposto pelos pais e outros educadores. (MARCUSE, 2009, p. 36).

Nessa dinâmica biológica e social, que Marcuse (2009, p.41) identifica como o centro da metapsicologia freudiana, onde as hipóteses decisivas avançaram no conhecimento com permanente dificuldade durante vários estágios da concepção da teoria psicanalítica das pulsões, encontra-se o aparato mental, espesso e pleno de opostos: “do inconsciente e das estruturas conscientes; dos processos primários e secundários; das forças herdadas constitucionalmente determinadas, e das adquiridas; da realidade psicossomática e da externa”.

A partir de 1920, como pudemos ver nas etapas percorridas, a teoria freudiana das pulsões faz uma reordenação de fundo que impacta toda a teoria psicanalítica, fato a que Marcuse também atribui grande importância. Sua crítica retoma os estágios desde o curto período intermediário em que a concepção dualista teria sucumbido à hipótese de uma forma libidinal onipresente, chamada narcisista.

Todavia, essas modificações preservavam a libido como lugar predominante na estrutura pulsional, de acordo com a concepção de que os processos mentais primários seriam governados pelo princípio do prazer e sob tal regência lhe caberia sustentar a vida, o que corresponderia à pulsão de vida. No entanto, nessa reformulação última de Freud, surge como acontecimento dominante a tendência regressiva em toda a vida instintual.

A tese marcuseana sustenta ser da maior importância o fato de Freud ter repetidas vezes enfatizado que à natureza comum das pulsões precediam suas diferenças operativas. Esse dado mais uma vez reforça a ideia de que foi inesperado constatar a existência de um despercebido atributo universal das pulsões, qual seja, uma compulsão de retroação ou uma espécie de inércia constitutiva da vida orgânica. Para Freud (1950 apud MARCUSE, 2009, p.43), as dúvidas ainda persistiam vinte anos depois como consequências dinâmicas do impacto da realidade externa sobre o organismo:

O princípio de prazer, portanto, é uma tendência atuando a serviço de uma função cuja tarefa é libertar inteiramente o aparelho mental de excitação ou manter constante a quantidade de excitação nele existente ou, ainda, mantê-la tão baixa quanto possível. Não podemos ainda decidir-nos, com completa certeza, em favor de qualquer dessas alternativas.

Com essa estrutura primária, a pulsão de morte surge como análoga a Eros e, em disputa permanente, estabelece a denominada dinâmica primordial. Marcuse contrapõe a essa configuração a questão da natureza comum conservadora, ou seja, regressiva, das pulsões, que opera em oposição à concepção dualista e desse modo repõe o estado de incerteza na metapsicologia freudiana. Em seguida propõe uma orientação dizendo ser imperativo buscar a fonte comum dos dois instintos básicos, e observa que Fenichel (1935) apud Marcuse (2009) identificou um avanço nessa direção quando Freud percebeu a possibilidade da presença de uma “energia deslocável, que em si mesma é neutra, mas capaz de aliar-se quer a um impulso erótico, quer a um destrutivo” (apud Marcuse, 2009, p. 46), ou seja, com a pulsão de vida ou de morte. Mas assevera, ao continuar na mesma linha de raciocínio, nunca “a morte fora tão coerentemente admitida na essência da vida; mas também a morte jamais se aproximara tanto de Eros”. (MARCUSE, 2009, p. 46).

Ao prosseguir com as especulações sobre a importância de reconhecer como antítese desses instintos básicos a diferenciação de uma raiz originalmente comum, deduz que, assim sendo, os fenômenos agrupados como pulsão de morte poderiam expressar um princípio para todas as demais pulsões que, no curso de seu desenvolvimento, por influências externas, poderiam passar por modificações. O argumento é que a compulsão de regressão na vida orgânica busca uma imobilidade integral e, se o princípio do Nirvana está na base do princípio do prazer, a necessidade destrutiva se apresenta sob outro contexto, em que a pulsão de morte move-se para alcançar alívio de tensão, ou seja, empreende uma fuga inconsciente forçada pelos agravos do sofrimento e não em função do apelo ou da compulsão ao aniquilamento. Sob essa perspectiva, a pulsão de morte mantém a eterna luta contra o sofrimento e a repressão, “é destrutividade, mas não pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de tensão. E [...] parece ser afetado pelas transformações históricas que influem nessa luta.” (Freud, apud MARCUSE, 2009, p. 46).

Para compreender a teoria freudiana sob essa perspectiva histórica, Marcuse repõe no texto as noções de estrutura mental de id, ego e superego a partir de sua interpretação. A primeira camada, o id, a mais remota e fundamental, é domínio do

inconsciente, o lugar das pulsões primárias que responde ao princípio do prazer e por satisfação das necessidades pulsionais. Indiferente à autopreservação e a contradições, ignora o tempo e os valores, ou seja, está isento das formas e princípios que constituem o indivíduo consciente e social.

A outra camada da estrutura mental, assim se refere o autor, tem sua formação gradualmente organizada pela influência do mundo externo, em área do id constituída especificamente por elementos de recepção e proteção contra estímulos, e que viria assim, a constituir-se no ego. Essa configuração é a que topologicamente estaria no limiar do mundo externo, na qual a sua menor e mais superficial parcela tem a percepção e o conhecimento consciente para preservar sua existência, ajustando-se a realidade e modificando-a, de forma a conservar uma imagem apropriada. Da perspectiva do id, tratar-se-ia de uma instância derivativa, ou seja, é aquela responsável pelos processos secundários de alteração e regulação de impulsos, funções de extrema importância, pois fazem a mediação das gratificações pulsionais com a realidade. Os desvios forçados pelo princípio de realidade, ainda que alcancem gratificação, são gratificações modificadas. Sob a permanente exposição entre forças pulsionais primárias e as pressões da realidade, a defesa do ego se dá, portanto, em duas frentes, quando “destrona o princípio de prazer, que exerce indiscutível influência sobre os processos do id, e substitui-o pelo princípio de realidade, que promete maior segurança e êxito” (MARCUSE, 2009, p. 48).

O desenrolar dessa segunda instância empreende a formação de outro componente psicológico, o superego, cuja origem remonta às relações infantis entre os pais e o entorno familiar, organizando-se prematuramente em um núcleo constante de influências culturais e sociais, como um guardião da moralidade, responsável pelas repressões efetuadas pelo ego. As restrições externas, primeiro impostas pelos pais e depois advindas do âmbito social, uma vez introjetadas pelo ego constituem-se na sua consciência.

Desde aí, as transgressões ou o desejo em transgredir os limites impostos suscitam o sentimento de culpa e a necessidade de punição, sobretudo na fase edípica, contaminando toda a vida psicológica. Essa armação repressiva logo se torna inconsciente, assim como grande parte do sentimento de culpa.

Essa modificação do estado de consciência para a inconsciência do sentimento de culpa e da operação repressiva tem importantes consequências para

a civilização. Trata-se de um desdobramento que recrudesce a severidade punitiva ao indivíduo, jovem ou adulto, ao operar de forma automática ou inconsciente, como se o padrão das pulsões se mantivesse fixado no período infantil. Em outras palavras, um sobrepeso repressivo é imposto ao individuo, desconsiderando suas potencialidades racionais da maturidade, individual e social, uma vez que: “o superego impõe não só as exigências da realidade, mas também de uma realidade pretérita” (MARCUSE, 2009, p. 50).

O filósofo retoma a dinâmica do princípio do prazer primordial para assinalar que o id conduz para o presente e o futuro os vestígios de memória de um status quo ante de liberdade, de carências e de necessidade, para um superego de severidade igualmente extemporânea. A argumentação conclui que esse determinismo, superado historicamente, impõe um presente punitivo incompatível com a realidade e o homem civilizados. A ligação entre liberdade e necessidade fica, desta forma, soterrada por uma aceitação da necessidade de não-liberdade ─ a própria memória se submete ao princípio da realidade.

As possibilidades trazidas a seguir por Marcuse encetam uma via de compreensão que supera a intransigência de grupos diversos que desde o princípio da psicanálise até os dias de hoje, seja por incompreensão ou reação, insistem em opor a teoria de Freud sobre as pulsões à organização histórico-social da vida humana. Para ele, a confrontação do ego com o mundo externo em qualquer etapa de sua evolução se dá pela regência de uma realidade histórica e social que influencia as estruturas mentais.

A argumentação contrária a que acima nos referimos, no entanto, insiste em que o conceito freudiano de princípio de realidade impede que essas influências mútuas se dêem ao converter as contingências históricas em necessidades biológicas. A coação dos instintos impelida por esse princípio negaria a forma histórica tornando-o uma realidade estática e inabalável.

De todo modo, a crítica se põe aceitável, embora insuficiente para Marcuse, uma vez que na teoria freudiana a civilização desenvolveu-se como uma dominação filogeneticamente organizada, uma vez que a concebe como sucedâneo do despotismo patriarcal, do parricídio da horda primordial para o arbítrio internalizado do clã fraterno. Sem distorcer a noção de princípio de realidade em questão,

reconhece nos conceitos freudianos uma história e busca lhes revelar o seu próprio conteúdo.

Assim posto, Marcuse anuncia o que chamou de extrapolação das noções e proposições da teoria de Freud e introduz uma duplicação de conceitos que, segundo o autor, revelaria o histórico-social até então implícito:

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