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4 RESSONÂNCIAS DA POLÍTICA

4.2 SUPERAÇÃO E UTOPIA

Vamos retomar brevemente o contraponto à pulsão de morte e suas decorrências no domínio social, pela ressonância libidinal de Eros a emular os laços sociais, e, por conseguinte, potencialmente políticos. Na concepção freudiana, sob a égide da sexualidade e das tendências à autoconservação, as vicissitudes das pulsões de vida respondem por quase a totalidade da vida psíquica, ou seja, operam

na preservação do indivíduo, assim como para as formações de conjunto e a expansão para a diversidade. Ocorre, como consequência do dualismo da teoria, que a economia pulsional não se caracteriza pela adaptação às mudanças ininterruptas de permanente insatisfação e não são regidas por finalidades superiores inatingíveis: “Conservação e destruição de si, coesão e desagregação do múltiplo, formam assim dois pares de correlatos que desenham a dialética de Eros e Thanatos”. (MEZAN, 1985, p.450).

Trata-se então de vislumbrar uma alternativa para a superação do estado presente das coisas, e vamos buscá-la inicialmente em companhia do sujeito freudiano, para o qual toda civilização é a luta contra o caos, contra a força dos inimigos da cultura, “a animalidade, a natureza, que são figuras do destino, isto é, a tempestade sem razão, som e fúria que nada significam”, como descrito dramaticamente por Enriquez (1996, p. 90).

A noção de caos remete a um mundo sem referências em que tudo se torna possível, o pior possível em um horizonte intransponível, a nos inspirar o medo ancestral no mesmo solo onde se fundam nossas organizações e as instituições.

Nesse reino, qualquer proteção será bem vinda. Esse cenário aterrorizante é o mesmo que faz nascerem os dogmas e as crenças que ensejam um grau elevado de ilusão para que o homem se sinta protegido por uma imagem investida da capacidade de onipotência ou para se defender de sua própria impotência. Diante de tal vulnerabilidade, nosso comentador acentua que: “De todas as ilusões, a religiosa é a mais inexplicável e a mais tenaz, visto ser a única que se funda sobre o amor por um objeto ausente e invisível, mas cuja luminosidade, portanto, não pode se embaçar.” (p. 89).

No entanto, Freud tem para sua teoria social que a religião é um estágio que serviu para revestir a interdição cultural, para bloquear o todos contra todos e o retorno ao estado de natureza, permitindo ainda mais do que isso, que certas interdições abrangessem, pela via do caráter sagrado, outras leis e instituições. Essa constatação não implica para a análise freudiana desconsiderar as consequências nefastas dessa influência, uma vez que podem acarretar distorções no campo social, que devem ser superadas.

A rigidez dos dogmas tende a sacralizar as interdições apoiando-se em reminiscências históricas, tornando-as fontes de resistência às mudanças e às

transformações: “a doutrina religiosa nos conta a verdade histórica – submetida embora, é verdade, a certa modificação e disfarce.” (FREUD, 1974 apud ENRIQUEZ, 1996, p. 91).

Uma volta a mais neste raciocínio e não imaginamos superar a derivação conflituosa do sujeito da psicanálise ou destituir-lhe a gênese definidora, uma vez que “o sujeito do inconsciente é uma produção simbólica e desejante que se delineia entre os polos da pulsão e da cultura” (BIRMAN, 2009, p. 10). Nesse virar e revirar de camadas, o palimpsesto insiste em revelar a miríade de possibilidades que nos repõe sempre diante do que já sabíamos: a poderosa força bifronte do sujeito freudiano.

De outro ensaio de Marcuse, Contra-revolução e revolta, (1973), as proposições para a emancipação humana e uma transformação radical da sociedade têm como pré-condição a ascensão da sensibilidade compreendida como “o meio em que a mudança social se converte em uma necessidade individual, a mediação entre a prática política de transformar o mundo e o impulso de libertação pessoal” (p.63).

Suas hipóteses retomam a natureza como uma força intrínseca de liberdade e libertação, uma vez que homem e natureza devem superar a opressão da racionalidade capitalista, noção que se refere “(1) à natureza humana – os impulsos e sentidos fundamentais do homem como alicerces de sua racionalidade e experiência; e (2) à natureza externa – o meio existencial do homem, a luta com a natureza em que ele forma a sua sociedade.” (p. 63).

Aqui está em questão o fato de a natureza constituir-se como parte e objeto da história e sua libertação não significaria um retorno a um estágio primordial, porém um deslocamento para realizações civilizacionais sem o abuso destrutivo da ciência e da tecnologia.

A apropriação e a degradação da natureza pela lógica industrial exploratória reduziram o meio vital da humanidade, no sentido ecológico e, sobretudo, existencial. O desamparo ancestral do sujeito freudiano diante da natureza nessa ode não se encaixaria, a nosso ver, no entanto, à aproximação das dimensões de humanidade, vista como motriz do sujeito desejante, o que pode levar à catexe erótica, propiciando o reencontro do homem com si mesmo e o reconhecimento da natureza como sujeito legítimo de convivência em um universo humano comum.

Essa libertação faria desabrocharem forças vivificantes na natureza rebaixando as demandas artificiais engendradas por desempenhos competitivos intermináveis do sistema dominante, e assim dar-se-ia uma recuperação das qualidades estéticas de ordem sensual instituindo uma liberdade renovada.

O próprio autor frankfurteano reconhece o desdém com que o espírito capitalista rejeita ou ridiculariza tal concepção, imputando à ideia o domínio da utopia ou da imaginação poética. No entanto, assistimos durante anos crescerem as lutas que focalizam o vínculo da ecologia com a superação de modelos destrutivos da natureza, embora o elo de emancipação humana não se revele ainda promissor. De todo o modo, sua visão foi antecipatória:

A luta contra isso é uma luta política; é óbvio em que medida a violação da natureza é inseparável da economia do capitalismo. Ao mesmo tempo, porém, a função política da ecologia é facilmente neutralizada e serve ao embelezamento do Establishment. Apesar disso, a poluição física praticada pelo sistema deve ser combatida desde já – tal como a poluição mental. (MARCUSE, 1973, p. 65).

O fundamental, no entanto, continua a ser a ruptura com a experiência embotada do mundo e a superação da sensibilidade mutilada e contida pela racionalidade. Alçar uma sensibilidade radical significa tornar os sentidos receptivos e capazes de operar as suas próprias sínteses, que não se esgotam com as puras formas da intuição, do espaço e tempo, como uma inexorável ordenação kantiana apriorística dos dados do sentido. Em períodos importantes do texto Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marcuse observa que o potencial subversivo da sensibilidade acompanha os temas centrais da libertação: “Marx fala da completa emancipação de todos os sentidos e qualidades humanos”. (2011, p. 67).

A superação da sociedade capitalista requer a sensibilidade como meio de reconstrução radical dos novos modos de vida e, nesse sentido, torna-se uma força na luta política pela libertação. Em outras palavras, isso significa que a emancipação individual dos sentidos encontra-se no fundamento da libertação universal. A sociedade livre conecta-se com necessidades pulsionais:

Como é isso possível? Como pode a humanidade, a solidariedade humana como universal concreto (e não como valor abstrato), como força real, como práxis, ter origem na sensibilidade individual? Como pode a liberdade objetiva originar-se nas mais subjetivas faculdades do homem? (MARCUSE, 1973, p. 75).

O embate se põe com a dialética do universal e do particular a indagar sobre as possibilidades de a sensibilidade humana gerar um princípio universal, e a questão leva o ensaísta Marcuse (1973) à filosofia idealista alemã em busca da origem do conceito intelectual marxista: “Para Kant: um sensorium universal (as puras formas da intuição) constitui a estrutura unificada da experiência dos sentidos, validando assim as categorias universais do entendimento.” (p.75). Mas ainda faltam romper as qualidades transcendentais kantianas e a passagem seguinte encontra em outro filósofo dessa tradição alemã:

Para Hegel: a reflexão sobre o modo e o conteúdo do meu sentido imediato certamente revela o Nós no Eu da intuição e da percepção. Quando a consciência ainda irrefletida atingiu o ponto onde se torna cônscia de si mesma e de sua relação com os seus objetos, onde é experimentada como um mundo trans-sensível situado além da aparência sensória das coisas, ela descobre que nós estamos além da cortina de aparência. E esse nós desdobra-se como realidade social na luta entre o Amo e o Servo para

reconhecimento mútuo. (p.75).

Essa passagem esclareceria o ponto que leva do esforço kantiano para reconciliar homem e natureza, liberdade e necessidade, universal e particular para a resposta materialista que, depurada da concepção transcendental, faz ingressar homem e história na teoria e na estrutura do conhecimento, soltos da pureza do a priori, a constituir a materialização da ideia de liberdade.

Marcuse, em uma passagem anterior, havia retomado a Terceira Crítica da obra de Kant para uma interpretação em que reconhece um potencial emancipador, que estaria por ser mais bem compreendido, razão pela qual nos pareceu importante trazê-la para o texto. . Para o autor subjaz a essa ideia um índice que sinaliza o belo na arte e na natureza e sua qualidade de “natureza como sujeito sem teleologia, sem plano nem intenção: esta noção condiz bem com a intencionalidade sem propósito de Kant” (1973, p.70).

A faculdade da imaginação deseja escapar de uma experiência comum quando remodelamos essa experiência segundo princípios que se situam acima da razão. Aqui, temos o homem no uso livre da lei da associação que permite uma reelaboração da matéria da natureza, produzindo aquilo que ultrapassa a natureza. Assim, a ideia estética apresenta uma aparência positiva da realidade objetiva, sem que qualquer conceito possa servir de intuição interna.

A ideia estética transcende as barreiras da experiência e, através da imaginação, ousa tornar sensível uma completude que não se encontra na natureza. A faculdade da imaginação, em sua tarefa de criação, põe em movimento a faculdade de ideias intelectuais, ou seja, a razão. São representações que acionam o pensar e o elevam mais do que pode ser apreendido e distinguido.

A imaginação atua subjetivamente ao vivificar as faculdades de conhecimento e, portanto, está presente indiretamente no conhecimento.

O que Kant denomina de ideia estética é um princípio que vivifica o espírito e movimenta as forças do ânimo. A ideia estética é uma representação da faculdade da imaginação sem que qualquer pensamento, ou melhor, conceito, possa ser-lhe adequado. E, mais do que essa reconciliação entre natureza e espírito, o belo kantiano “desperta uma ideia necessária da razão que é, enquanto tal, comum à humanidade” (FERRY, 1994, p.130-131). O juízo de gosto permite que o homem amplie a esfera da subjetividade pura ao visar uma partilha em comunidade da experiência estética.

Outra volta nessas ressonâncias da filosofia política e o sujeito desejante da psicanálise, e sua incalculável potência, não nos parece ausente.

A modernidade não opera com linearidade, o que torna mais compreensível a noção de Agamben do contemporâneo como tempo não cronológico. Solta do tempo, a modernidade é a história da permanente e incompleta transformação. Numa expressão mais concisa, a modernidade, para Negri e Hardt (2004, p.154- 155), pode ser compreendida como uma dialética da resolução transcendental do conflito contínuo, e, nas palavras dos autores:

[...] a modernidade como um estado de crise a ser sublimado transcendentalmente. Temos de nos referir à metafísica moderna da política, pois esse âmbito nos permite compreender nas suas diversas figuras o caráter não concludente da própria definição de modernidade. Na teoria do Estado que se desenvolveu de Maquiavel a Hobbes, de Espinosa a Rousseau e de Hegel a Marx, a modernidade se apresenta exatamente como uma alternativa entre uma linha que, baseando-se na potencia ontológica do trabalho vivo, vê na democracia (entendida em termos absolutos) a única forma política adequada ao processo de socialização produtiva que se desenvolve na história, e uma outra linha que tenta expropriar em um âmbito transcendental a produtividade viva da cooperação humana.

A ideia força da democracia absoluta é a oposição a todo o comando e à soberania que, na visão dos nossos comentadores, seria a estratégia para esse

quadro de crise da modernidade. O argumento parte do reconhecimento de que o Estado atual é uma apologia renovada do poder constituído e da soberania, algo que faz o capitalismo reconhecer o estertor de sua crise sem se importar com os ônus, ou seja, numa tentativa de evitar as consequências do desastre. Essa contingência, por seu lado, liberaria: “a força do trabalho vivo, a produtividade de uma cooperação que encontra na imanência e no imediatismo a força para se desenvolver. Essa é a autonomia das massas, e, contemporaneamente, uma série de subjetividades produtivas e políticas”. (p. 156).

Essa liberação como alternativa democrática produtiva e cooperativa, do ponto de vista de Negri e Hardt, localiza-se em duas explosões que transtornaram o mundo ocidental e desencadearam a reestruturação capitalista: maio de 1968 na França e, vinte e um anos mais tarde, a queda do muro de Berlim. Esses episódios, que precipitaram três quartos de século da história moderna, revelaram a ruptura de duas alternativas ideais, colocando no primeiro plano a emergência de um novo sujeito político, um operador social organizado no trabalho imaterial, que se torna produtivo pela via da cooperação. Sua liberdade é provada na cooperação e na construção contínua da liberdade coletiva:

Maquiavel descreve o movimento da democracia comunal; Espinosa concebia a democracia como um governo absoluto e completamente imanente; Marx, nos seus escritos históricos, mas, sobretudo em

Grundrisse, identificava a nova subjetividade política com a cooperação

intelectual de uma força trabalho erguida à hegemonia. Essa concepção, que atravessou século, nunca foi uma utopia: sempre foi localizada em sujeitos reais e sempre foi derrotada. Hoje, aparece como potencialmente vitoriosa. (p. 157 et seq.).

Dessa possibilidade emancipatória restaria a miséria nas dimensões material e espiritual para a alternativa regressiva. Uma interrogação apoteótica e potente dos ensaístas que nos apraz: “De que serve o comando quando a multidão é organizada ontologicamente?”.

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