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4 RESSONÂNCIAS DA POLÍTICA

4.3 EMANCIPAÇÃO E ARTE

A indagação com que terminamos o item anterior pode ser brevemente delineada para orientar a argumentação desta quadra final do capítulo. A ontologia a que se referem Negri e Hardt (2004) como uma alternativa constituinte foi propelida

por Foucault, segundo os autores, como uma antologia histórica de nós mesmos, ou uma genealogia da constituição do ser social que interroga a si mesmo enquanto sujeito moral da ação. A construção dos nomes da realidade seria o espaço cognitivo no interior do qual o sujeito desenvolve a passagem do desejo de viver à cooperação, como união da força viva do ser: “como se o mundo fosse desfeito e refeito tendo como fundamento uma série de pensamentos, ações e intuições baseadas na singularidade individual e coletiva, que as organiza no seu desejo e na sua força”. (p. 60).

Retomemos Rancière (2009) para um diálogo com outros autores, iniciando pelo seu conceito de partilha do sensível, compreendido como um sistema de evidências sensíveis que simultaneamente revela um comum partilhado e partes exclusivas. Na gênese do conceito encontra-se um fundamento da política aristotélica quanto às definições sobre a quem cabe governar e aos que governados serão. Mas, para nosso comentarista, há um critério antecedente: quem determina aqueles que devem tomar parte, o lugar e o que está em jogo. A partir de uma digressão histórica vamos compreendendo, com o seu raciocínio, que a política se ocupa do que é visível e daquilo que se pode dizer sobre o que é visto, e de quem tem competência para ver e qualidade para falar, das propriedades do espaço e das possibilidades do tempo.

Essa operação expressa a definição de ser ou não visível em um espaço comum, dotado de uma palavra comum, e do que entra em jogo quando se toma a política como forma da experiência. Isso se dá pois, na base dessa política, para Rancière, encontra-se uma estética. E aqui estaria como questão o que chamou de práticas estéticas, mais precisamente, formas de visibilidade das práticas da arte, ou a experiência do ato estético que enseja novos modos de sentir e induz novas formas da subjetividade política.

Em um ensaio sobre a arqueologia da potência em Agamben, Castro (2008), ao analisar o desenvolvimento do pensamento do filósofo italiano em suas obras, faz uma reflexão sobre a experiência da arte em O homem sem conteúdo. Conforme o comentarista, o filósofo parte de uma reflexão da Genealogia da moral de Nietzsche, que opõe a experiência de uma arte para artistas à concepção kantiana que define a beleza a partir da perspectiva do espectador, como o que procura um prazer desinteressado. Ao contrário, na experiência de uma arte para o artista, interessada

e perigosa, procura demonstrar como o destino da arte na cultura ocidental e, mais precisamente, o estatuto da obra de arte na época da estética assinala ao homem o seu lugar na história. Não se trata, contudo, apenas de uma mudança de perspectiva a respeito da obra de arte, mas fundamentalmente de uma modificação do próprio estatuto da obra de arte e de toda a criação do homem. De duas perspectivas que se abrem para essa interpretação na obra de Agamben trazidas por Castro (2008), a segunda nos interessa especialmente. Sob essa visão, a questão passa da arte para o criar humano em geral e os eixos da exposição são os conceitos de poíesis e práxis, de potência e de ato, de melancolia e história. Como demonstra Castro, para fazer o desdobramento entre espectadores e artistas, o filósofo recorre ao par

retórico e terrorista de Jean Paulhan (1949)36. Assim como para os retóricos, para o

espectador a obra de arte é vista como um conjunto de elementos sem vida, e para o artista na figura deste terrorista, a arte é uma realidade vivente. Desse modo, o ingresso da obra de arte na dimensão da estética alcança seu lugar precisamente quando adentra com a poíesis e à práxis:

A partir desta perspectiva a arte poética transforma em voluntário tudo o que é involuntário, é concebida como uma práxis superior em que o homem mediante o uso de seus órgãos se torna onipresente, assim como um

messias da natureza. Enquanto concerne a Nietzsche, assinala nosso autor,

a arte é o que nomina a vontade de potência. (Castro, 2008, p. 23). (Tradução nossa).

Mas o artista só tem em si a poíesis na medida em que ele é o que ele é no vigorar do ser. A obra de arte opera na medida em que contém em si a poíesis, o vigorar da phýsis37 enquanto medidação, medida, linguagem: “a phýsis, o surgir e elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poíesis. A phýsis é até a máxima

poíesis. Pois o vigente da phýsis tem em si mesmo o eclodir da produção”.

(HEIDEGGER, 2002, p. 16).

36 Proibindo-se entrar no jardim das Letras com as flores da Retórica, os terroristas enfrentam, sobretudo, o gênero. Querem novelas não novelescas, teatro não teatral, poesia não poética. Fugindo do conhecido aspiram ao novo e iluminam o monstro contra os mantenedores da retórica. Triunfa o terror das letras, mas a literatura se exaure. Como alternativa, proíbe-se entrar sem flores no jardim da Literatura (nota nossa. Fonte: <http://www.arenalibros.com/Ficha_Flores_Paulhan.htm>).

37 Physis é um conceito fundamental do pensamento pré-socrático, contendo a noção do saber de um ente em sua mais ampla e profunda totalidade. Em sua expressão original, physis designa o processo de surgir e desenvolver-se num constante e permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força motriz de tal movimento. É considerada assim a expressão daquilo que é primário, fundamental e persistente, opondo-se ao que é secundário, derivado e transitório (nota nossa a partir de <http://filosofiamg.blogspot.com.br/2012/05/os-pre-socraticos-e-physis.html>).

As imbricações da arte como produção estética da vida ressurgem persistentemente, como se pode ver no discurso modernista da revolução pictorial como consigna da superfície bidimensional. Aqui, segundo Rancière, a revogação da ilusão perspectivista da terceira dimensão devolveria à pintura seu domínio próprio. No entanto, isso teria sido apenas um deslocamento do problema, uma vez que a superfície não é simplesmente uma composição geométrica de linhas. A questão que se põe verdadeira para o filósofo francês é a forma de partilha do sensível. Nessa lógica, o plano não se opõe ao profundo compreendido no sentido tridimensional, põe-se ao vivo que não se encontra na palavra muda dos signos pintados. A terceira dimensão pela pintura foi uma resposta a essa partilha, sendo a profundidade óptica relacionada ao privilégio de participar da história:

[...] no Renascimento, da valorização da pintura, da afirmação de sua capacidade de captar um ato de palavra vivo, o momento decisivo de uma ação e de uma significação. A poética clássica da representação quis, contra o rebaixamento platônico da mimesis, dotar o plano da palavra ou do quadro de uma vida (...). Ela instaurou entre palavra e pintura, entre dizível e visível uma relação de correspondência à distância, dando à imitação seu espaço específico. (RANCIÈRE, 2009, p. 21-22).

Sob essa perspectiva, nosso autor vê os dilemas da pintura dessa fase e suas questões políticas como partes integrantes de uma visão crítica mais ampla do homem, isto é, como habitante de novos edifícios cercado por objetos diferentes cuja planaridade38 faz referências ou mesmo mantém interfaces com a página e o cartaz. Sua pureza anti-representativa inscreve-se agora no contexto da arte pura versus arte aplicada, o que lhe conferiria uma nova significação política.

As interfaces criadas entre os diferentes suportes nos laços entre tipografia e ilustração, o teatro, o grafismo e o poema, que fazem do artista o inventor de uma nova vida e não “a febre revolucionária ambiente que faz de Malevich, ao mesmo tempo, o autor do Quadrado preto sobre fundo branco e o arauto revolucionário das novas formas de vida” (RANCIÈRE, 2009, p. 23).

Essa interface política revoga a dupla política inerente à lógica representativa que, por um lado, separava o mundo das imitações da arte do mundo dos interesses vitais, ou seja, das questões sociais. Com isso, o plano da superfície dos signos:

38

No original, “platitude”, que, em francês, não designa apenas a superfície bidimensional, mas remete também a uma ideia de banalidade ou de indistinção, estabelecendo aqui uma relação entre igualdade dos sujeitos e a indistinção das artes (nota do tradutor).

“essa forma de partilha igualitária do sensível estigmatizada por Platão, intervém ao mesmo tempo como princípio de revolução formal de uma arte e princípio de re- partição política da experiência comum”. (p.24).

Neste nível encontra-se, para Rancière, a importância do recorte sensível do comum da comunidade e suas formas de visibilidade, e da disposição que introduz a relação estética-política, uma vez que se torna possível pensar a partir daqui o que imaginamos como intervenções políticas dos artistas, sejam estes os deciframentos literários da sociedade ou os modos contemporâneos da performance, a poética simbolista do sonho ou a supressão construtivista da arte. É possível pôr em questão inúmeras histórias imaginárias da modernidade artística e dos intermináveis debates sobre a autonomia da arte ou sua submissão política.

Nesta altura do capítulo cabe-nos um alinhamento diante das aporias das hipóteses argumentativas que apresentamos, reconhecendo um campo comum que se manteve a despeito das diferenças interpretativas, que diz respeito à potência da arte e das operações estéticas. E nos alinhamos à ênfase e à intensidade do filósofo quando, por fim, diz:

As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousa sobre a mesma base. (RANCIÉRE, 2011, p.26).

E diremos, enfim, que é apreciável o teor de política e arte no cálice da embriaguez contemporânea.

Figura 5 - Tela 5 - Imprudência

CONCLUSÔES

Procuramos no desenvolvimento de nossa tese seguir a constituição do sujeito freudiano, tendo como ponto de referência as injunções do campo da cultura e da civilização. Havíamos definido como questão o exame dos vínculos e das determinações que engendram o mal-estar contemporâneo, levantando a hipótese de que o sujeito freudiano não escapa ao telos dialético da histórica, conduzindo essa indagação a partir dos registros da política e da estética.

Realizada a tese, gostaríamos de assinalar algumas considerações a respeito das articulações teóricas e das interpretações alçadas em resposta às proposições iniciais.

a) A imbricação entre os termos civilização e cultura arbitrada por Freud cria uma sucessão de impossibilidades analíticas, o que requereu uma permanente acuidade para a reposição dos elementos que as distinguem, como, por exemplo, na distinção conceitual das determinações dos processos históricos e da pregnância ideológica das aspirações sociais, políticas e culturais.

b) No sujeito freudiano, as determinações políticas surgem invariavelmente envoltas por conflitos entre o princípio de prazer e o princípio da realidade e, a partir da aproximação da pulsão de morte, a complexidade torna-se exponencial uma vez que, para o próprio autor, não apenas o conceito não parece ser plenamente convincente, mas também sua presença e formas de manifestações são escorregadias. Para superar esse impasse, os saltos para as noções da filosofia às da estética e da arte, empreendidos no texto inicialmente por Marcuse e derivados para os demais autores a que nos recorremos, foi imprescindível.

c) No nosso entender, as funções da estética trouxeram para o texto uma claridade filosófica e histórica para a compreensão das origens e dos percursos que Freud encontrou para fazer avançar suas pesquisas clínicas ao encontro das representações e dos sentidos do inconsciente.

d) Entendemos que a hipótese central da nossa tese encontrou caminhos confirmatórios por intermédio das ressonâncias da política e da estética ao manter o sujeito freudiano no arco dos processos sociais de subjetivação. Localizamos o horizonte de superação do mal-estar e da emancipação das qualidades humanas as possibilidades abertas pelos processos de produção do trabalho imaterial que podem vir a engendrar formas de valorização social cooperativas.

e) O ensaio filosófico e a política seguem sendo diferentes. A política propõe- se a transformar as condições nas quais estão envolvidos determinados grupos. A filosofia inventa problemas que afetam a todo o mundo e esta criação de problemas filosóficos é um método distinto e uma forma totalmente diferente de julgar, comparativamente ao ativismo político. A filosofia pode criar problemas a partir de situações políticas, mas isso não é suficiente para que se confunda com política. O pensar filosófico, por isso, às vezes resulta misterioso e incompreensível: “o verdadeiro compromisso filosófico – que se move na incomensurabilidade, requer a escolha do pensamento, a encenação das exceções e finalmente cria também distâncias, sobretudo a respeito das formas de poder – este compromisso, não raro resulta estranho”. (BADIOU; ZIZEK, 2011, p. 28). (Tradução nossa)

Finalmente para somar à proposição do valor político que vimos no sujeito freudiano, gostaríamos de terminar estas considerações com as palavras da psicanalista Maria Rita Kehl:

A psicanálise é um dispositivo político, no sentido mais amplo da palavra: libertador, de uma potência extraordinária. O fato de o final de uma análise ser um compromisso do sujeito com seu desejo expõe uma condição que Lacan chama de trágica, mas que dá para chamar de cômica também. Quando o sujeito se depara com a fantasia que sustenta sua neurose, é como se dissesse: „Nossa, era só isso? Eu estava sofrendo há tanto tempo só por causa disso?‟. Tem uma nota cômica, ou irônica, nesse fim da análise. Você ri um pouco das suas pretensões, do seu superego, da sua escravidão voluntária. (KEHL, 2010, p.2).

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