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CULTURA ESCOLAR, CULTURA ESCRITA E OS ESTUDOS DE LETRAMENTO: INTERAÇÃO, PRÁTICA CULTURAL E

4.024/1961, duração mínima de quatro anos O ensino secundário no Brasil ganhou

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 CULTURA ESCOLAR, CULTURA ESCRITA E OS ESTUDOS DE LETRAMENTO: INTERAÇÃO, PRÁTICA CULTURAL E

IDEOLOGIA

Quando articulamos as considerações de Bakhtin acerca da noção de sujeito, interação, discurso, enunciado e gênero do discurso à realidade escolar, muitas questões nos vêm à mente, algumas das quais já apontamos ao longo das seções anteriores, porém há alguns aspectos nos quais não nos aprofundamos e que merecem, acreditamos, atenção mais detida. Em outros termos, refletir sobre a arquitetônica do sujeito, da interação e da linguagem em Bakhtin faz-nos pensar sobre um conjunto de questões que perpassam o universo escolar e as práticas de uso da língua/linguagem que passamos a delinear ao longo dos próximos parágrafos.

Em nenhuma das situações de interação das quais em alguma medida ou de alguma forma participamos há espaço para a neutralidade; em todas elas, o sujeito é convocado a posicionar-se perante o mundo, o objeto do discurso e o outro a quem se dirige. Isso não se efetiva de forma diferente na esfera escolar. Nessa esfera, assim como em qualquer outra esfera da criação ideológica, não temos álibi para não nos posicionarmos, portanto, no espaço da sala de aula, assim como em todos os outros espaços constituídos no âmbito dessa esfera, nossos atos são atos sócio-histórica e axiologicamente constituídos, que refratam e refletem posicionamentos ideológicos dos sujeitos que aí transitam.

Porém, esses atos não se configuram no vazio, nem se restringem ao que ocorre dentro dos limites mais ou menos definidos dessa esfera, até porque as diferentes esferas da atividade humana se tangenciam, interpenetram-se, dialogam entre si. Igualmente, os sujeitos que transitam na esfera escolar constituem-se exatamente no âmbito desses entrelugares, onde o horizonte apreciativo que baliza suas ações vai aos poucos, ao longo de interações diversas, configurando-se, em um eterno

devir. Dessa forma, os discursos que se entrecruzam na esfera escolar e as práticas que aí se efetivam refratam sempre, em algum grau, a realidade além do espaço da escola, os saberes, as crenças, os valores e as verdades que caracterizam esses sujeitos e que orientam seus atos, demandas e escolhas.

Ou seja, não há como pensar a escola apartando-a do cronotopo em que se assenta, da historicidade que a assinala, da microcultura em que se insere e da macrocultura com a qual dialoga continuamente. Não há como pensar a escola sem pensar as práticas de uso da linguagem que estão presentes na sociedade, as crenças e verdades a elas imbricadas e a maneira como essa mesma sociedade a elas atribui valor. Isso significa dizer que pensar a educação e, mais especificamente, o ensino e aprendizagem de línguas, por uma perspectiva que se alinhe à arquitetônica bakhtiniana, impõe o exercício de pensar a cultura escolar, a sua relação com a cultura escrita (uma vez que a escola e as práticas escolares, historicamente se assentaram sobre ela) e aquilo que Street (2006) usa chamar letramento

ideológico, sobre o qual falaremos mais adiante.

Em um texto seminal a respeito da cultura escolar, publicado pela Revista Brasileira de História da Educação, Dominique Julia (2001, p. 10, grifos do autor) a descreve como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas [...].”, finalidades essas que podem ter cunho religioso, sociopolítico ou simplesmente de socialização. Pensamos que a essas finalidades vinculam-se questões ideológicas presentes na ideologia oficial e na ideologia do cotidiano, as quais chegam à escola e provém dela, em um diálogo constante e ininterrupto que vai, aos poucos, em cada tempo-espaço específico, criando essas normas e práticas que caracterizam a cultura escolar e a diferenciam de outras culturas que a tangenciam e que a ela estão imbricadas.

Como também afirma Julia (2001, p.11), não se podem analisar essas normas e práticas sem “o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os

demais professores”. Vamos além, não podemos analisá-las sem refletir sobre os sujeitos que transitam nesse espaço, sejam eles alunos, administradores, pais etc., e sobre aqueles que sobre ele (esse espaço) incidem de uma ou outra maneira. Nesse contexto, “[...] para além dos limites da escola, pode-se buscar identificar, em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhecimentos e de habilidades senão por intermédio de processos formais de escolarização [...]”, o que Julia (2001, p. 11) nomeia de schooled

society.

Ainda, para Julia (2001), não se pode pensar a cultura escolar sem se refletir a respeito das relações que ela mantém com o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas, sejam elas, a cultura religiosa, a cultura política ou a cultura popular. Vamos mais adiante, acreditamos que não podemos pensar cultura escolar sem pensarmos no contínuo da grande temporalidade sobre o qual ela se constitui, portanto, não podemos apartá-la da sócio-historicidade que a assinala e constitui cada uma dessas culturas com a qual ela dialoga.

Júlia (2001, p. 12) insurge-se contra a falácia da “potência absoluta dos projetos pedagógicos”. Ainda que documentos oficiais de ensino e projetos pedagógicos tenham influência no universo escolar, a complexidade da cultura escolar é muito mais ampla – a escola não se constrói apartada da sociedade, nem é por ela determinada integralmente -, podemos pensar aqui em uma relação dialética e dialógica característica de todos os domínios da criação ideológica.

Pessanha, Daniel e Menegazzo (2004) realçam essa dimensão dialética e dialógica da constituição da cultura escolar quando vinculam essa cultura a “conhecimentos [a serem ensinados], valores e comportamentos [a serem inculcados] que, embora tenham assumido uma expressão peculiar na escola, e, principalmente, em cada disciplina escolar, são produtos e processos relacionados com as lutas e os embates da sociedade que os produziu e foi também produzida nessa e por essa escola.” (PESSANHA; DANIEL; MENEGAZZO, 2004, p. 58).

Pessanha, Daniel e Menegazzo realçam a especificidade que caracteriza a “vida interna” da escola, a qual reelabora ou ressignifica normas, valores e práticas sociais de modo a

constituírem uma cultura escolar que de modo algum se opõe ou se desvincula da sociedade que a produziu e foi por ela produzida.

Conforme Boto (2003), a emergência da cultura escolar moderna como projeto político e pedagógico ocorre no início da Idade Moderna (portanto entre os século XV e XVI), quando os primeiros colégios são instituídos, conduzindo a “inaudita institucionalização de uma específica temporalidade e de uma particular forma de lidar com as disposições espaciais, pensadas para a formação de novas gerações.” (BOTO, 2003, p. 380). Esse é também o recorte temporal a partir do qual Júlia vai pensar a cultura escolar.

O tempo e o espaço na escola ganham configurações específicas: o tempo de ir à escola, tempo da aula, o tempo do recreio, o bimestre, o trimestre, o semestre, o tempo das provas e o tempo para realizar cada prova, o tempo do professor e o tempo do aluno, o tempo para concluir cada nível de ensino; o espaço da sala de aula, da biblioteca, do pátio, o “fundão” da sala, o “banco dos burros” e o “espaço da penitência”, os laboratórios, a secretaria, a sala dos professores, o ginásio, o refeitório; todos tempos e espaços criados a partir de convenções e “consensos” que aos poucos se instituíram no espaço escolar e que nesse espaço ganharam valores determinados – uma cultura escolar – que não se efetiva alijada da sociedade e do diálogo com outras esferas ideológicas, tal como já mencionado.

Para Boto (2003, p. 387) a cultura escolar integra:

A lição e o exercício da sala de aula: a exposição do professor sobre a matéria. Abarca também, por seu turno, os bilhetinhos que as meninas enviam umas às outras, abordando – tantas vezes – assuntos absolutamente alheios ao que se passa na aula. Cultura escolar é a divisão das matérias; mas é também o horário de recreio: intervalo pleno em significados que escapam, em geral, de qualquer registro. Cultura escolar é, como já se verificou, uma dada distribuição do espaço e do tempos escolares: mas compõe-se também dos espaços e dos tempos de inscrição das

transgressões. Cultura escolar é as carteiras enfileiradas: mas é o piscar de olhos de quem olha para trás (Azanha, 1992). É a prova e sua “correção”; mas é o “colar” e o “dar cola”. É a ordenação de comportamento prescritos pelos adultos; mas é, sobretudo, a apropriação diferenciada que novas e sempre novas gerações farão com aquilo que se pretende fazer delas.

Como lembra Boto, há mesmo um vocabulário específico da cultura escolar, que aparece nos discursos que remetem a essa cultura, e, que, acreditamos, modifica-se com o tempo e no tempo, um vocabulário que se assenta sobre as práticas escolares e sobre a cultura escolar de cada tempo-espaço – nesse sentido, os discursos da escola e sobre a escola são também cronotópicos. A caderneta, o inspetor, a “forma”, o “batalhão da bandeira” são palavras/expressões que remetem a rotinas e práticas situadas em determinado cronotopo e que nele adquirem sentidos e valores determinados.

Como já apontamos anteriormente, não há neutralidade na escola, pois, nela, de alguma forma e em alguma medida, ocupamo-nos em colocar “coisas diante dos olhos das pessoas” (BOTO, 2003). O próprio significado cultural do conhecimento escolar está vinculado, “por parte dos profissionais do ensino, [à] identificação, recordação, domínio, além de, evidentemente, seleções, recortes e escolhas prévias” (BOTO, 2003, p. 394), as quais, acreditamos, não se efetivam ao acaso, muito pelo contrário, são efetivadas por sujeitos situados numa unidade espaço-temporal, responsáveis por escolhas que não podem se eximir de realizar em resposta a demandas diversas que eles identificam ao seu redor.

Ainda conforme Boto (2003, p. 394), “As sociedades possuem – cada uma em particular – suas crenças tácitas, saberes compartilhados, horizontes de expectativas, expressos – em alguma medida – por reconstituições de ordem didática do universo da cultura conhecida por cada específica formação social historicamente dada.”. Como lembram Chervel e Compère (1999), historicamente, a própria escola ocupou na sociedade funções culturais múltiplas que implicaram sua abertura a públicos não escolares. Os autores falam dos antigos colégios

franceses que possuíam certo prestígio social e que abriam suas portas para o público em geral ter acesso ao teatro, à biblioteca, a atividades religiosas e às coleções de medalhas. Lembramos que essa não é para nós uma realidade longínqua, também a história dos nossos colégios, mesmo na atualidade, é marcada pela constituição desse “lugar social”, de um espaço de cultura, com uma representatividade específica dentro da realidade social de cada época. Nesse sentido, “O colégio não se resume, assim, ao ensinamento ministrado aos colegiais, nas aulas, e os regulamentos escolares não se aplicam fora desse quadro estrito.” (CHERVEL; COMPÈRE, 1999). Veremos isso mais adiante quando, analisando nossos dados de pesquisa, apontamos o papel que a escola teve historicamente, principalmente na última década do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX, na sociedade blumenauense. A escola abria então espaço para o teatro, a dança, a música e a poesia alemã, pois lá ocorriam sessões públicas de cinema e palestras, apresentações de ginástica e reuniões de grupos escoteiros. Nesse contexto, a escola constitui-se, então, como um espaço de cultura, ocupando um “lugar social” que efetivamente extrapola a rotina das aulas e regulamentos escolares.

Julia (2001) sublinha a importância de que os estudos sobre cultura escolar voltem-se à análise da história das disciplinas escolares, a qual, segundo ele, abre a “caixa preta” da escola, para tentar compreender – através das práticas de ensino utilizadas e dos grandes objetivos que presidiram a constituição das disciplinas - o que ocorre nesse espaço particular. Pessanha, Daniel e Menegazzo (2004) coadunam com Julia e realçam a importância de se pensar a história das disciplinas escolares sem perder de vista a discussão sobre a cultura que as produziu e que é produto delas.

Ainda que, ao se pensar a escola, possa-se retroagir mais no tempo, Julia (2001) e David Hamilton (2001) justificam pensar o estudo da cultura escolar a partir do século XVI com base aproximadamente nos mesmos argumentos: (1) foi no século XVI que se assistiu à constituição de um espaço escolar à parte, “com um edifício, um mobiliário e um material específicos: o que é verdadeiro para as universidades desde o século XV prolonga-

secundário.”(JULIA, 2001, p. 15); (2) nessa época começa a se instaurar uma mudança, a qual assinala a criação dos cursos em classes separadas que representam uma progressão de nível, modelo esse ao qual, como aponta Julia (2001), a Companhia de Jesus aderiu desde o início; (3) é nessa época que se assiste ao nascimento de “corpos profissionais que se especializaram na educação” (JULIA, 2001, p. 15), os quais podiam ser constituídos por corporações ou congregações religiosas.

Quanto à progressão de nível e à seriação, essas foram instauradas a partir do início do século XVI pelos Frades da Via Comum dos Países Baixos, difundindo-se, posteriormente, na Alemanha e nas escolas da Companhia de Jesus. Todavia, essa organização não foi instituída simultaneamente no ensino primário e secundário. No ensino primário, até meados do século XIX, a maior parte das escolas francesas elementares eram ainda de classe única (RODRIGUES, N.C., 2009). Veremos que essa realidade também era observada no Brasil; nas escolas isoladas, onde um só professor reunia todos os alunos em uma classe única.

Já no que se refere à formação profissional do corpo docente, ela passa a constituir prioridade a partir do século XVIII, quando o Estado passa a assumir o papel antes assumido pela Igreja na esfera escolar e quando surgem, na Europa, as escolas normais (RODRIGUES, N.C., 2009).

Como aponta Bakhtin (1998 [1975]), a diferenciação gradual que ocorre nas esferas ideológicas vincula-se a transformações sociais, ideológicas e sígnicas situadas em cronotopos específicos. Podemos dizer que é nesse momento, no início do século XVI, que se observa, efetivamente, a constituição da esfera escolar como esfera formalizada, vinculada à ideologia dominante, marcada por um discurso de autoridade que lhe é próprio e por práticas sociais bastante peculiares.

Podemos pensar, no entanto, que, em diferentes cronotopos, a constituição dessa cultura escolar se efetiva de forma diversa e parece-nos estar vinculada à maneira como a esfera escolar, como esfera ideológica, individualiza-se e diferencia-se de outras esferas da criação ideológica. Referimo- nos aqui não apenas à criação de um lugar físico diferente, mas, principalmente, “de um novo lugar simbólico, capaz de operar

uma mudança de sensibilidade, linguagem, comportamentos, costumes, e mesmo de projetos e perspectivas sociais [...].” (PESSANHA, DANIEL, MENEGAZZO, 2004, p. 59).

Julia (2001) sublinha a cultura escolar como um lugar de tensões, de resistências e de conflitos e afirma que também constitui uma falácia pensar que documentos e leis educacionais se instituem sem conflito e que, portanto, um estudo que se baseie nesses documentos, possa representar a compreensão definitiva e inequívoca da maneira como a escola e a cultura escolar se configuram a partir de então. O autor ilustra essa afirmação com base na análise do processo de instituição da instrução primária obrigatória na Europa ao longo do século XIX, a qual vinculava-se a projetos políticos que visavam “associar cada cidadão ao destino da nação à qual pertence.” (JULIA, 2001, p. 23 ). Não se tratava apenas de permitir à população acesso à cultura escrita através do aprendizado da escrita e da leitura, mas sim de “forjar uma nova consciência cívica por meio da cultura nacional e por meio da inculcação de saberes associados à noção de „progresso‟.” (JULIA, 2003, p. 23). Nossos dados de pesquisa falam muito desse trabalho da escola no sentido de inculcar o civismo, a cultura e a língua nacional no país o qual se efetiva à medida que à escola consolida o seu “lugar social”. Especificamente no contexto escolar que estudamos, é notável como essa inculcação de valores, crenças e saberes relativos ao “ser brasileiro” (em oposição ao “ser estrangeiro”) se efetiva principalmente no bojo dos dois grandes movimentos de nacionalização do ensino, os quais ocorreram nas três primeiras décadas do século XX. Silva Filho (2013), em sua tese de doutoramento, também mostra como valores relacionados ao nacionalismo, patriotismo, moral e civismo, positivismo e catolicismo se materializam em livros adotados nas escolas de ensino primário, especificamente, nos livros da série didática de leitura Fontes (adotada no ensino primário, em Santa Catarina, na década de 1920).

Julia assinala que a obrigatoriedade da frequência à escola primária não se efetivou sem conflito, nem dentro nem fora da escola. “É que, no momento em que uma nova diretriz redefine as finalidades atribuídas ao esforço coletivo, os antigos valores não são, no entanto, eliminados como por milagre, as antigas divisões não são apagadas, novas restrições somam-se

simplesmente às antigas.”(JULIA, 2001, p. 23). Da mesma forma, não se pode supor que as normas e valores presentes na escola sejam determinadas apenas pelos desejos e crenças dos professores que a constituem. Julia (2001) realça, por exemplo, o caso dos professores primários “republicanos” que apoiavam a Revolução Francesa, os quais ensinavam seus alunos a ler utilizando a Declaração dos Direitos do Homem e a Constituição Francesa, mas também, sob a pressão das famílias, ensinavam as preces cristãs e o catecismo.

As reflexões de Julia (2001) e de Chervel e Compère (1999) caminham no sentido de pensar a escola, a cultura escolar e, dentro dela, a complexidade de cada disciplina escolar, como um universo multifacetado, constituído no diálogo com outras esferas da criação ideológica, e como espaço de confronto entre discursos de sujeitos diversos. Isso significa pensar que os próprios saberes agenciados por cada disciplina escolar também têm origens diversas e são determinados, em cada diferente tempo-espaço, por forças várias, as quais têm origem na própria esfera escolar, mas também fora dela.

Coadunamos então com Faria Filho et al (2004) quando esse autor observa que a percepção que Julia e Chervel têm de cultura escolar e da configuração das disciplinas escolares opõe- se ao conceito de transposição didática defendido por Chevallard (2000 [1991]) e que adquiriu notoriedade a partir da década de 1980. De acordo com Chevallard (2000 [1991], p.16, tradução nossa), o conceito de transposição didática diz respeito à “passagem do saber sábio [conhecimento científico] ao saber ensinado [conhecimento ensinado], e igualmente à distância eventual, obrigatória que os separa, dá testemunho desse questionamento necessário, ao mesmo tempo em que se converte em sua primeira ferramenta.”46

. No entanto, como apontam os autores, esse processo é muito mais complexo e envolve saberes outros, que extrapolam a esfera científica e que se tornam mais ou menos presentes na esfera escolar a partir das diferentes configurações que a própria cultura escolar assume em cada cronotopo.

46 Original em espanhol: “[...] al paso del saber sábio al saber enseñado, y por lo tanto a la distancia eventual, obligatoria que los separa, da testimonio de ese cuestionamiento necesario, al tiempo que se convierte en su primera herramienta.”.

Também analisando o conceito de transposição didática, Halté (2008 [1998]) aponta a imprecisão do conceito e o risco que representa ao definir um processo descendente do saber científico para o saber escolar, o qual preconiza, seguindo uma lógica aplicacionista e reducionista. Assim, “Pelo fato de organizar-se a partir de saberes distribuídos academicamente em campos constituídos, ela [a transposição] purifica os objetos de ensino ao preço de uma perda de sentido pelos aprendizes etc.” (HALTÉ, 2008 [1998], p. 138). Por esses motivos, defende uma didática “globalmente praxiológica”, de natureza implicacionista, que tem como protagonistas os dois vértices do triângulo representativo do sistema didático que Chevallard parece desprezar, a saber: o aluno e o professor. A essa didática “globalmente praxiológica”, que se situa no âmbito de um projeto didático e privilegia o sistema didático inteiro, Halté nomeou como elaboração didática.

Não iremos nos aprofundar aqui no conceito de elaboração didática, porém, como sublinha Petitjean (1998), no caso específico do ensino de línguas, objetiva-se a construção de competências linguísticas e é em nome disso que os conhecimentos são trabalhados no espaço da sala de aula. Tais conhecimentos não se restringem a conhecimentos científicos transpostos, pois refratam “os usos sociais efetivos que se faz da língua no contexto das diferentes interações que se efetivam no âmbito das esferas da atividade humana” (SILVEIRA, 2009), ou seja, as “práticas sociais de referência”.

Pensando especificamente a questão do ensino e aprendizagem de línguas (nesta pesquisa, o caso da constituição da disciplina de Língua Portuguesa), cabe-nos refletir sobre uma