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A CULTURA ESCRITA E A CULTURA ESCOLAR NA ALEMANHA: AS ORIGENS DO DISCURSO SOBRE A ESCOLA

4.024/1961, duração mínima de quatro anos O ensino secundário no Brasil ganhou

3 METODOLOGIA E PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA

4 REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA, A CULTURA ESCRITA E A CULTURA ESCOLAR EM BLUMENAU: O INÍCIO

4.2 A CULTURA ESCRITA E A CULTURA ESCOLAR NA ALEMANHA: AS ORIGENS DO DISCURSO SOBRE A ESCOLA

E O ENSINO DE LÍNGUAS NA COLÔNIA DE BLUMENAU

Conforme Deeke (1995[1917]), de acordo com os dados constantes no Relatório do Presidente da Província de Santa Catarina, datado de 1º. de março de 1853, em 1852, quando o Dr. Blumenau adotou o sistema de pequenas colônias, havia, em Blumenau, 153 imigrantes ingressos.

No Quarto Relatório da Colônia de Blumenau, referente ao ano de 1853, Dr. Blumenau faz referência a duas questões que nos despertam particular interesse: as limitações impostas pelo fato de os imigrantes alemães não dominarem a língua portuguesa e o desejo de ter, em breve, na colônia, um professor (colono naturalizado) habilitado a dar aulas em uma escola pública98, uma vez que, a despeito de existirem alguns moradores na região previamente à chegada dos primeiros colonos trazidos por Dr. Blumenau, não existiam, então, núcleos escolares. Transcrevemos, a seguir, três trechos desse relatório que nos interessam em particular99.

Tomando a colônia maiores proporções, pretendo reservar em cada légua quadrada mais ou menos terras para lugar e arraial público, para igreja e escola e para lotes pequenos.

Êstes últimos serviriam para oficiais de ofícios, que não pudessem muito trabalhar na lavoura e para famílias indigentes [...]

98

O primeiro professor a atuar em Blumenau foi Ferdinand Ostermann, colono naturalizado, que chegou a Blumenau em 1852 (KORMANN, 1994). Dr Blumenau faz referência a ele no relatório elaborado em 4 de janeiro de 1853 e também em relatórios posteriores. Segundo carta publicada no jornal “Der Kolonist”, de dez/1853 (nº 50, p. 198), em que Ferdinand Ostermann se dirige aos seus parentes na Alemanha, ele era professor de Álgebra, formado em Nordhausen (Dados que constam do Acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva, em Blumenau). 99

Esse relatório, assim como outros redigidos por Dr. Blumenau durante os primeiros anos na colônia, foram depois reunidos e publicados na revista Blumenau em Cadernos, cujo primeiro volume é de 1957, e que representa a fonte dos relatórios que aqui mencionamos.

(BLUMENAU, 1853 - Revista Blumenau em Cadernos, vol. 1, p. 103-104).100

Em efeito, a não haver intérpretes probos e assalariados pelo estado e bastante inteligentes para bem entenderem o espírito de ambas as línguas, é quase impossível que as autoridades do país possam formar decisões justas em questões dos colonos recém chegados, os colonos estabelecidos já há muito tempo no país mesmo abusam dos seus conhecimentos da língua, dos costumes, das leis e ainda das tortuosidades destas de uma maneira às vezes inteiramente criminosa contra o recém chegado, imperito e cheio de confiança com os seus antigos patrícios [...]. (BLUMENAU, 1853 - Revista Blumenau em Cadernos, vol. 1, p. 105).

O culto evangélico foi celebrado de vez em quando e nas grandes festas pelo professor formado, que se acha entre os colonos; os três colonos católicos celebraram o seu na capela, duas léguas abaixo da colônia. O dito professor ocupando-se já há tempo com o estudo da língua nacional, todavia não achava lugar apropriado para aprender a mesma na sua pureza e não a linguagem corrompida dos Itajaianos, como porém se procurava tal lugar, e já entende bastante a língua, espero que em poucos meses esteja no caso de poder fazer o exame competente e então servir na colônia como professor público. (BLUMENAU, 1853 - Revista Blumenau em Cadernos, vol. 1, p. 107, grifos nossos).

100

Nesse relatório, Dr. Blumenau esclarece que, em janeiro de 1853, quando o relatório foi redigido, havia na colônia 86 pessoas e 16 estavam a caminho, portanto, em seguida seriam 102 moradores em Blumenau.

Do primeiro trecho aqui citado, depreende-se a preocupação de Dr. Blumenau com a instalação de igrejas e escolas a cada seis quilômetros, ambas instituições voltadas, como ele aponta em outro relatório, datado de 1856, à “instrução” da juventude.

No segundo trecho citado, uma outra grande preocupação de Dr. Blumenau pode ser depreendida: a necessidade de os colonos recém chegados da Alemanha dominarem a língua portuguesa. Isso porque, segundo Dr. Blumenau, não haveria, na região, pessoas capazes de servirem de intérpretes. Aqui fica clara a valoração que Dr. Blumenau empresta à população local (não apenas aos brasileiros, mas também aos colonos que emigraram anteriormente), seja no que se refere à retidão de caráter desses sujeitos, seja no que tange à capacidade de se expressarem em ambas as línguas, alemão e português, de maneira proficiente, utilizando a variante padrão da língua. Em relação à incapacidade de se expressarem em ambas as línguas, fica implícito que essa é uma questão associada aos brasileiros natos, já que, como ele aponta mais adiante - os colonos estabelecidos já há muito tempo no país

mesmo abusam dos seus conhecimentos da língua, dos costumes, das leis e ainda das tortuosidades destas.

Essas observações do Dr. Blumenau (além de nos permitirem depreender a maneira como ele avaliava os brasileiros natos e os alemães já instalados na região) parecem ratificar a premência de que os novos colonos aprendessem a língua portuguesa e de que as crianças tivessem acesso a esse aprendizado na escola. Aprender a língua portuguesa era, portanto, uma questão vital para a sobrevivência do projeto colonizador do Dr. Blumenau e dos próprios colonos, pois se constituía como um instrumento de empoderamento dos colonos, na medida em que lhes possibilitava a compreensão das leis, o estabelecimento de relações comerciais, o diálogo com as esferas do poder público etc.. Ainda que essas interações envolvam também ou até preponderantemente a oralidade, entendemos que nelas frequentemente a escrita está pressuposta, assim, o acesso à língua, tanto em sua modalidade oral e escrita, permitiria a eles o envolvimento em práticas de letramento (STREET, 2003a) valorizadas no universo macrocultural e típicas das esferas de poder; fato que garantiria a

esses sujeitos igualdade de condições nos âmbitos jurídico e comercial.

No terceiro trecho citado anteriormente, uma nova questão chama a nossa atenção: para que pudesse exercer o cargo de professor público, o professor que residia na colônia deveria prestar exame comprobatório de seus conhecimentos de língua portuguesa no Brasil. Para tanto, como fica claro no excerto, era preciso que esse professor tivesse mais contato com a língua portuguesa, principalmente no que se refere à sua modalidade oral, porém, era preocupação de Dr. Blumenau que esse professor tivesse contato com a língua em sua variante padrão e não com uma variante regional, nesse caso, a variante presente em Itajaí, a qual, segundo ele, representava um exemplo de “linguagem corrompida”. Lembramos que, na época (e durante todo o século XIX e ainda quase todo o século XX), não apenas na Alemanha, mas também na Europa, de forma geral, e no Brasil (como evidenciaremos no próximo capítulo), prezava-se pela adoção, na escola, tanto na oralidade quanto na escrita, da variante padrão. Lembramos, ainda, que a eleição dessa variante tem raízes profundamente ideológicas, vinculadas ao trabalho da ideologia oficial, e se relaciona à ação das forças centrípetas da língua (BAKHTIN, 1998 [1975]).

Todas as questões aqui levantadas, a partir dessa leitura inicial dos excertos, fizeram-nos remeter a alguns pontos que entendemos cruciais para este trabalho e que nos auxiliaram a definir a maneira como a pesquisa se organizaria e como nós a desenvolveríamos.

Uma primeira questão que observamos foi a importância dada à escola já nos primeiros anos da instalação da colônia. O que levava Dr. Blumenau e os primeiros colonos a atribuírem tanto valor à implantação de uma escola pública em um momento em que a colônia dava ainda seus primeiros passos? É certo que a aprendizagem da língua portuguesa era uma demanda premente, mas havia mais do que isso. Lembramos que vemos o mundo a partir dos valores e crenças que

constituem o nosso horizonte axiológico

(VOLOSHINOV/BAKHTIN, 2004 [1929]), e é esse horizonte que guia as nossas escolhas, os nossos atos e que serve de baliza a nosso discurso. Lembramos que a orientação do discurso para o objeto e para o discurso do outro é cronotópica (BAKHTIN, 1998

[1975]), portanto, o nosso primeiro movimento foi no sentido de compreender o contexto do qual aqueles sujeitos, entre eles o próprio Dr. Blumenau, haviam partido e a maneira como lá havia se configurado uma cultura escolar no sentido que Julia (2001) e Boto (2003) atribuem ao termo.

Quando os imigrantes alemães partiram para o Brasil, trouxeram consigo valores e crenças que já os constituíam na Alemanha, e foram esses valores e crenças, imbricados no horizonte apreciativo desses imigrantes, que nortearam as suas escolhas e seus desejos ao chegarem na colônia. Todavia, ao aqui chegarem, encontraram um contexto bastante diverso daquele de onde partiram. No que diz respeito especificamente ao contexto educacional, a Alemanha constituía, nessa época, berço de políticas educacionais que viriam a balizar a instrução escolar na Europa no século XIX e que se inscrevem na historicidade da cultura escolar alemã.

Russel (1899), em um livro dedicado à análise da constituição do ensino secundário na Alemanha, especialmente na Prússia, região de onde se originam os primeiros grupos de imigrantes que vieram para Blumenau, evidencia que as primeiras escolas alemães surgiram já no século VIII, quando missionários cristãos estabeleceram, a partir do oeste da Alemanha, escolas e monastérios que pudessem contribuir para a conversão dos pagãos ao cristianismo. Segundo o autor, nessa época, tanto os nobres quanto os camponeses tinham pouco ou nenhum contato com a escrita, e foi isso, conforme o autor, que contribuiu para o sucesso na introdução da língua latina pelos padres e missionários da Igreja Católica. A instituição escolar, naquele cronotopo específico, serviu para atender esta demanda: propiciar o ensino e aprendizagem do latim, alargar o domínio da Igreja Católica a partir da conversão dos alemães ao cristianismo e de seus costumes “semibárbaros101” aos costumes cristãos, e,

101

Como esclarece Thiago Juarez Ribeiro da Silva (2011), o termo bárbaro ou germano teve sua origem na pretensão greco-romana de classificação dos povos segundo parâmetros que incluíam a língua, a religião, os costumes e o governo. O autor realça que essa teria sido a tarefa abraçada pelo senador e historiador romano Tácito em sua obra Germânia. O termo franco era então, nesse contexto, tomado como uma “categoria etnográfica genérica” para nomear os povos do baixo Reno que se opunham ao catolicismo, designando esse povos como ferozes. A historiografia, entendendo que essas descrições eram preconceituosas, procurou agrupar todos os

por fim, propiciar a formação de novos missionários e clérigos que fortalecessem essa empreitada.

Conforme Russel (1899), em meados do século VIII, já havia na Alemanha102 uma série de monastérios, conventos e escolas confessionais capazes de darem suporte à implantação e manutenção da fé católica. Segundo o autor, os meninos, a partir dos cinco ou sete anos, cresciam dentro dos conventos, onde se aprendia, antes de tudo, o latim e o canto, com base em um currículo composto pelo Trivium – gramática, retórica e dialética; e pelo Quadrivium – aritmética, geometria, astronomia e música. De acordo com Russel (1899, p.5, tradução nossa), “Sobre estas sete artes liberais, tal como sobre sete pilares inexpugnáveis, a superestrutura, teologia, era construída.”103

. Lembramos que nem todos, certamente, eram alcançados pela escola e que seus objetivos estavam, sobretudo, voltados à formação sacerdotal.

Ainda no final do século VIII, o imperador Carlos Magno, corado imperador do Grande Império do Ocidente (do qual faziam parte, entre outras regiões, parte da França e da Alemanha), almejando a construção de um Império em harmonia com a Igreja Católica, percebeu a importância que a escola teria na formação de elites letradas que auxiliassem na construção e consolidação desse império de maneira a não repetir o insucesso da empreitada romana, no passado. Para tanto, era necessário reformar as escolas, as quais ele acreditava terem se desviado de suas funções em virtude da influência dos reis merovíngios104 (RUSSEL, 1899). Com esse objetivo, o imperador convida Alcuíno de York, monge anglo-saxão, o qual toma a frente da

diferentes grupos étnicos descritos por Tácito como um único grupo chamado germanos, o que constituiu “Uma unidade artificial, construída historicamente” tanto quanto o termo bárbaro havia constituído.

102 Quando nos referimos aqui à Alemanha, queremos fazer referência a grupos étnicos e espaços culturais e geográficos que viriam a caracterizar o Estado alemão ou parte dele durante a Idade Média e Moderna. Lembramos que no século VIII a Alemanha fazia parte de um grande império, o Sacro Império Romano Germânico (grande Império do Ocidente), que teve configurações diversas e que, além da Alemanha, envolveu uma grande parte da Europa, preponderantemente da França. 103 Original em inglês: “Upon these sevem liberal arts, as on seven impregnable pillars, the superstructure, theology, was built.”.

104

Os reis merovíngios governaram o império franco da metade do século V à metade do século VII.

reforma educacional que então se concretiza por todo o império. Como afirma Russel (1899), a base dessa reforma se assentava sobre a revalorização da cultura escrita: para que o império se mantivesse unido, era importante haver uma fé única e forte e essa fé só poderia ser conquistada pela compreensão dos textos das Sagradas Escrituras. Nesse sentido, caberia aos padres não apenas o desejo de aprender, mas também o de ensinar. O bom clérigo seria aquele que fosse “religioso no coração, sábio no discurso, puro nos atos, eloquente na fala.” (RUSSEL, 1899, p. 7, tradução nossa)105. Essa vai ser a tônica da educação católica durante séculos, inclusive no Brasil, quando, no século XVI, os jesuítas se ocupam da educação e da conversão dos “gentios”.

Além de fortalecer a fé cristã, a reforma de Carlos Magno tinha também como objetivo possibilitar a formação de uma elite letrada que pudesse auxiliar na administração do império e que, portanto, soubesse não apenas ler, mas também escrever, de maneira a assumir funções administrativas. Como aponta Anne- Marie Chartier (2011), ainda que se referindo a momentos mais presentes da história, leitura e escrita entraram na escola com funções diversas e para atender públicos diversos. Nesse caso específico, percebemos que, entre outros objetivos, a escola serviu à instituição das instâncias de administração do império, portanto, à materialização da ideologia oficial em textos das esferas então mais formalizadas, nas quais a cultura escrita era mais valorada e o registro escrito tornava-se aos poucos indispensável.

Ainda que a disciplina seguida nos internatos, onde se objetivava formar novos clérigos, fosse mais rígida do que nos externatos, Russel (1899) aponta que os conteúdos e os métodos de ensino eram mais ou menos os mesmos. Os alunos ingressavam na escola por volta dos sete anos e deveriam, antes de tudo, decorar os Salmos Latinos, enquanto aprendiam a ler, a escrever e aprendiam um pouco de aritmética. Os alunos eram incentivados a fazer uso do latim dentro e fora da escola, tanto na fala quanto na escrita. Como aponta Voloshinov/Bakhtin (1993 [1929]), em cada época, há ideias que assumem relevância no que tange a contextos e temáticas específicas e se marcam nos

105 Original em inglês: “religious in heart, learned in discourse, pure in act, eloquent in speech.”.

discursos de uma determinada esfera ou grupo social. O ensino e aprendizagem do latim foi uma dessas ideias que se marcou no discurso da escola e sobre a escola e na configuração dos currículos escolares desde a antiguidade. Nesse cronotopo específico, ressaltamos a proximidade que o Império de Carlos Magno tinha em relação à Igreja Católica e o fato de que esse império foi constituído, inclusive, por uma grande parte da Itália. Ora, o latim era a língua da Igreja, portanto, nesse contexto, deveria ser também a língua da administração pública e da escola.

Para tanto, os autores romanos, principalmente os poetas, eram cuidadosamente estudados, “não tanto pelo que eles disseram, mas pela maneira de dizê-lo.” (RUSSEL, 1899, p. 9, tradução nossa)106. Essa era a tarefa da gramática e da retórica, uma vez que a dialética só teria mais importância no estudos superiores (RUSSEL, 1899).

Há dois pontos aqui que desejamos realçar e que acreditamos terem colaborado para a instituição de um papel relevante para a escola na sociedade alemã. Segundo Russel (1899), uma epístola de 802, dizia o seguinte “todos devem enviar seus filhos para estudar as letras, e a criança deve permanecer na escola com toda a diligência até que ela possa se tornar bem instruída em aprender.” (WEST, s/d apud RUSSEL, 1899, p. 9, tradução nossa)107. O que observamos nessa citação são os gérmens da escolarização obrigatória, que se concretizaria séculos mais tarde. Ainda, Russel afirma que uma das características mais notáveis da reforma de Carlos Magno e Alcuíno foi o desenvolvimento de um sistema de ensino público que atingia todas as classes sociais: os nobres, o clero e os camponeses. Lembramos que esse sistema de ensino público iria constituir também, séculos adiante, uma das bases da reforma protestante.

Em um e no outro caso, o que nos parece claro é a maneira como a esfera religiosa e a esfera escolar se atrelavam e por vezes até se confundiam, principalmente nos momentos de

106 Original em inglês: “not for what they said so much as for their way of saying it.”. 107 Original em inglês: “everyone should send his son to study letters, and that the child should reamain at school with all diligence until he should become well instructed in learning.”.

crise e de mudanças, em que uma nova ordem social deveria surgir em substituição a uma antiga. Como aponta Maybin (2007), letramentos são móveis e respondem à permeabilidade entre diferentes instituições e às práticas de uso da língua/linguagem que lhes são características. Se ler é importante para a afirmação da fé católica ou protestante, novas práticas sociais surgem, novas práticas de letramento se configuram e instituem letramentos dominantes, que irão repercutir na escola e, depois, de volta na sociedade. Esse processo é próprio da dialética social, do diálogo entre ideologia do cotidiano e ideologia oficial e entre as diferentes esferas ideológicas (VOLOSHINOV/BAKHTIN, 2007 [1927]).

Com o declínio do império de Carlos Magno, todo o sistema de ensino se reconfigurou à medida que a própria sociedade se reconfigurava e a divisão de classes se intensificava no período feudal. Nessa época, o domínio da leitura e da escrita preocupava pouco aos nobres, que se interessavam mais no aprendizado da equitação, da natação, do tiro com arco, da esgrima, da caça e da composição (lembramos que muitas composições trovadorescas foram compostas por nobres), cujo domínio representava índice de poder. Russel (1899) aponta que o Feudalismo opunha-se claramente às escolas, associadas à cultura escrita e à religião; nesse contexto, foi apenas quando se verificou o declínio do sistema feudal, que elas (as escolas) voltaram a ter importância significativa no contexto social.

A ascensão da burguesia nas cidades alemães criou uma nova demanda por escolas e pela escolarização, mais ainda, instituiu um novo papel para a cultura escrita e para a escola, pois importava agora formar cidadãos - para atender aos objetivos dos Estados Nacionais que começavam a se constituir – e, dentre esses, comerciantes. As escolas que então foram surgindo nas cidades para atender à burguesia crescente, ainda que tivessem inspirações laicas, permaneceram em muitos casos vinculadas à Igreja, a quem cabia, inclusive, autorizar ou não a sua implantação.

Sua organização, seus conteúdos e métodos de instrução pouco diferiam das escolas antigas. Elas eram, portanto, escolas latinas (ou seja, em que prevalecia o ensino do latim) tanto quanto o eram as escolas religiosas. Com o tempo, nelas foi se

atribuindo menos espaço ao latim e mais espaço ao vernáculo108, que, à medida que ia ganhando vigor na sociedade, com o estabelecimento e fortalecimento dos Estados Nacionais, tornou- se essencial nas interações vinculadas ao comércio.

A criação, expansão e ascensão das escolas laicas parece estar vinculada a uma reestruturação da própria esfera escolar e da cultura escolar como um todo a partir de uma modificação que se efetivava na sociedade. As novas práticas sociais que surgiam na sociedade, a partir da ascensão da burguesia como classe social, implicavam novas demandas para a escola, as quais resultaram em uma reestruturação na esfera escolar e na própria cultura escolar. Como já mencionado acima, são modificações que resultaram da relação entre as infraestruturas e superestruturas, entre a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial (VOLOSHINOV/BAKHTIN, 2007 [1927]; 2004 [1929]), a partir mesmo, neste caso, da definição de um espaço maior para o idioma vernáculo na escola. O ensino do vernáculo, nesse contexto, estava atrelado agora à ideologia oficial, a língua das interações cotidianas e as práticas burguesas relacionadas ao comércio, ressignificadas, passaram a fazer parte do cotidiano