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A base teórica deste estudo está situada no campo do Currículo e da História das Disciplinas Escolares, principalmente ancorada nas discussões estabelecidas por Goodson (1995; 1997; 2001; 2013), Lopes e Macedo (2011), Chervel (1990) e Forquin (1992; 1993). Para abordar de forma específica a história da disciplina escolar História Natural / Biologia no Brasil, serão utilizadas as referências de Selles e Ferreira (2005; 2009), Torres (2011), Santos (2013) e Spiguel (2013).

A questão principal que tem tradicionalmente norteado as teorias do currículo é saber qual o conhecimento deve ser ensinado (SILVA, 2016). Esse conhecimento é compreendido por alguns como a sequência de conteúdos selecionados e divididos em campos do saber, devendo a escola simplificá-lo. Mas, há aqueles que o entendem como um processo crítico de reconstrução dos saberes, ocorrendo principalmente na escola a sua produção de tal construção (MACEDO; LOPES, 2002).

Concordando com a segunda posição, Lopes e Macedo (2011) afirmaram que é por intermédio das teorias críticas do currículo que o conhecimento deixa de ser considerado uma informação neutra, discutindo não somente o que selecionar, mas questionando os modos como o conhecimento hegemônico foi produzido e por que determinados conteúdos são selecionados e outros não, refletindo sobre as relações de poder implicadas na seleção e legitimação do mesmo. Contrapondo as teorias sobre o currículo denominadas de neutra, "as teorias críticas sobre o currículo, em contraste, começam por colocar em questão precisamente os pressupostos dos presentes arranjos sociais e educacionais" (SILVA, 2016, p. 30).

Assumindo a perspectiva das teorias críticas, Goodson (1995) compreende o currículo como um objeto cultural e político a partir do qual grupos hegemônicos, internos e externos à escola, disputam e legitimam ideias e valores. Nesse caso, o currículo não pode ser entendido como algo neutro, mas uma criação coletiva dos atores presentes no espaço escolar em um determinado tempo. Consequentemente,

―O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas [...]‖ (MOREIRA; SILVA, 2011, p. 14).

As disciplinas escolares situadas nos currículos são concebidas como "construções pedagógicas a serem definidas em função das finalidades sociais" (LOPES; MACEDO, 2011, p. 109). Nessa perspectiva, as pesquisas sobre disciplinas escolares compõem um dos campos da História da Educação que busca produzir conhecimentos sobre a constituição das disciplinas ao longo do tempo e o seu modo de realização no processo de escolarização, identificando mudanças de conteúdos de ensino e os fatores de seleção cultural (CASSAB, 2010; ANJOS, 2013). No Brasil, tem sido crescente o número de pesquisas que tentam responder como determinados conhecimentos se tornaram escolares, procurando destacar o porquê da escola ensinar o que ensina (SOUZA JÚNIOR; GALVÃO, 2005).

De acordo com Chervel (1990), a disciplina como sinônimo de matéria escolar é posterior à Primeira Guerra Mundial, estando constituída por um ensino de exposição, exercícios, práticas de motivação e de um conjunto de avaliações, tudo associado com as suas finalidades. Segundo o autor, as finalidades adotadas pela escola organizam suas disciplinas e se relacionam com políticas públicas para a educação, planos curriculares, planos de estudo e, principalmente, com as transformações de toda a instituição escolar.

Para Goodson (1995, p. 120), as disciplinas escolares não são "entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições.‖ Para esse autor, as disciplinas escolares não são uma simplificação das disciplinas científicas, mas construções sócio-históricas resultantes de embates e disputas entre grupos sociais nos processos de seleção de conteúdos, métodos e objetivos de ensino. Esse pesquisador defende que ―as próprias disciplinas escolares são aspectos de um movimento mundial, que moderniza os currículos escolares em torno de temas disciplinares‖ e que são disputadas por subgrupos que se desenvolveram fortemente em períodos de conflito sobre o currículo (GOODSON, 1997, p. 44).

Goodson (1995) defendeu que as disciplinas escolares possuem origens nas finalidades pedagógicas (associadas à aprendizagem dos estudantes) e utilitárias (ligadas aos interesses cotidianos das pessoas), mas que, ao longo do tempo, vão se constituindo em tradições acadêmicas (para a formação universitária). Selles e

Ferreira (2005) afirmaram que essas tradições oscilam dentro das disciplinas escolares, interagindo de modo não excludente, circulando tanto conteúdos e métodos das ciências de referência (nesse caso a História Natural), como também do cotidiano dos alunos. Dessa forma, conhecimentos científicos passam por sucessivas modificações de ordem político-social e transformam-se em conhecimento escolar.

Segundo Lopes (1999), a organização do conhecimento em disciplinas escolares já modifica o conhecimento científico, reafirmando um processo diferente de constituição. Para Chervel (1990, p. 180), os conteúdos de uma disciplina "são concebidos como uma entidade sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida de toda realidade exterior à escola", não podendo ser confundida com vulgarizações ou simples adaptações das ciências de referência.

Esses conhecimentos escolares podem, assim, ser reconhecidos em livros didáticos por meio de traços morfológicos e estilísticos, conforme proposto por Forquin (1992, p. 34), como: predominância de valores de apresentação, a preocupação da progressividade, a importância atribuída à divisão formal, comentários explicativos, técnicas de condensação, espaço para questões e exercícios, entre outros. Nesse caso, os livros podem ser considerados como importantes veículos de consolidação e difusão de uma disciplina, indicando períodos de estabilidade.

A História das Disciplinas Escolares entende os livros didáticos como prescrições e pensamentos pedagógicos (TAKEUCHI, 2017), com os seus conteúdos, sequência de capítulos e propostas de exercícios estabilizados. O conjunto de livros didáticos de um determinado período que abordam praticamente os mesmos conhecimentos, capítulos, terminologias, conceitos e tipos de exercícios é o que Chervel (1990) denomina de vulgata. Para Chervel, é tarefa do historiador de uma disciplina descrever e analisar a vulgata, pois a constituição de uma disciplina também está permeada por momentos de estabilidade e mudança, seja pela reorganização escolar, alteração do público, método de ensino ou reformas de ensino. Sobre essa última, uma questão importante refere-se aos seus impactos, de modo particular, as implicações em mudança de público, de material didático e de organização curricular (PINTO, 2014).

Algumas pesquisas como aquelas realizadas por Santos (2013; 2017), Santos e Selles (2014a; 2014b), Spiguel (2013) e Torres (2011) utilizaram livros didáticos como fonte documental para responder questões sobre a constituição da disciplina escolar História Natural e também consideraram as trajetórias profissionais de seus autores, cruzando informações com a legislação educacional da época em estudo, observando as permanências e transformações prescritas para as disciplinas escolares com as informações localizadas nos frontispícios, prefácios, sumários e introduções, conforme sugerido por Choppin (2004).

Para Goodson (1995), o currículo prescrito revela sua dimensão oficial a partir de programas de ensino, livros didáticos e materiais que servem como uma diretriz a ser seguida, tendendo a estabilizar e servir de guia para cada disciplina, constituindo-se como o resultado de enfrentamentos e negociações de grupos sociais.

O livro didático, como exemplo, aborda conteúdos selecionados com fins pedagógicos, mas que não está isento de debates e disputas entre os diversos grupos sociais (OLIVEIRA, 2017).

[...] os livros didáticos são o resultado de jogo de forças, para qual concorrem o poder estatal, o mercado editorial, as finalidades sociais da escola, os interesses dos professores e das famílias, grupos de poder defensores de ideologias particularistas etc. Esse entorno político, portanto, não define a partir de uma vontade arbitrária o que deveria ser o conteúdo dos livros didáticos, mas a partir de uma amálgama de forças contraditórias (OLIVEIRA, 2017, p. 13).

Os livros didáticos podem representar as diferentes escolhas de conteúdos elaboradas pela comunidade disciplinar de ensino de Biologia, assumindo as expressões dos currículos, conflitos e histórias dos atores sociais envolvidos na sua constituição (VASCONCELOS; GOMES, 2013).

Segundo Ferreira e Selles (2004), ao longo da História da Educação no Brasil, os livros didáticos têm se apresentado como um importante mecanismo de seleção e de organização dos conteúdos e práticas pedagógicas, produzindo um testemunho visível e público dos diversos embates travados entre os grupos ligados às ciências de referência e grupos acadêmicos e autoridades educacionais.