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Fortalecimento do discurso eugênico e a limitada compreensão sobre a

4.2 OS CONTEÚDOS DE HISTÓRIA NATURAL/ BIOLOGIA DOS LIVROS

4.2.3 Fortalecimento do discurso eugênico e a limitada compreensão sobre a

O currículo mínimo estabelecido pela Reforma Simões Filho (1951) determinou uma disciplina História Natural composta pelos ramos da Botânica, Mineralogia e Geologia (2ª série), Zoologia, Biologia e Higiene (3ª série).267 A disciplina escolar História Natural continuou fortalecendo o discurso eugênico por meio da Higiene, ampliou as características acadêmicas da Botânica e da Zoologia, e propôs uma Mineralogia e Geologia muito descritivas, com uma compreensão limitada sobre a História da Terra. Já os conteúdos definidos para a Biologia eram bem amplos e funcionavam como inserções comuns nos principais ramos da disciplina escolar, conforme visto em "História Natural: terceira série" (OLIVEIRA, 1955):

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Com essa nova organização disciplinar, Valdemar se manteve no mercado de livros didáticos com "História Natural: segunda série" (1953) e "História Natural: terceira série" (1955), apresentando obras exclusivamente para o curso colegial e instituindo os conteúdos a partir da Portaria nº 1.045 de 14 de dezembro de 1951.

Os mais importantes ramos da Biologia são:

A Botânica ou Fitologia, estudo dos vegetais, a Zoologia, estudo dos animais e a Antropologia, estudo particular do homem.

Cada uma destas encara o objeto do seu estudo sob diferentes aspectos, de onde o seu desdobramento em tantas outras ciências: a Anatomia e a Fisiologia, a Embriologia, a Citologia e a Histologia. E ainda, correlativamente, a Taxonomia, a Biogeografia, a Paleontologia, etc. (OLIVEIRA, 1955, p. 215).

A partir do texto acima, fica a impressão de que Valdemar de Oliveira havia desconsiderado a Higiene como um importante componente da disciplina. Mas esse conteúdo era tão relevante para a manutenção da sua disciplina que, a partir do seu texto escolar, orientava os professores com possíveis estratégias didáticas, como utilizar folhetos e palestras:

Assim, a higiene deveria equiparar-se, nos cursos primários e secundários, ao português, alternado-se frequentemente as aulas teóricas com as aulas práticas, promovendo-se a distribuição de folhetos de propaganda, realizando-se palestras com projeções luminosas, enfim, procurando por todos os meios criar, entre os alunos, um verdadeiro sentimento de responsabilidade sanitária - responsabilidade que se poderia dizer individual e coletiva, por interessar não somente à conservação da higiene pessoal como à defesa da comunidade social (OLIVEIRA, 1955, p. 318).

No final da citação, o autor destacou a sua preocupação com a conservação da higiene pessoal e com a defesa da comunidade social. Com esse pensamento, ele oficialmente apresenta as questões de Higiene a partir de uma referência eugênica: "Já antes do casamento, cuida do seu futuro, seguindo-lhe, depois a evolução no ventre materno: é a eugenia ou higiene da espécie" (OLIVEIRA, 1955, p. 314).

Na década de 1950, sob a orientação do pensamento de Francis Galton, o pensamento eugênico que defendia o exame pré-nupcial ainda circulava no Brasil por meio dos artigos publicados por Renato Kehl (CARVALHO; SOUZA, 2017) e por outros autores em jornais de Pernambuco.268 Esse movimento eugênico que aconteceu na América Latina estava sob influência do pensamento

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Na década de 1950, em Pernambuco, a Eugenia ainda era tema de artigo em jornal de grande circulação, tratando do exame médico pré-nupcial: "A Eugenia e sua importância no meio social" (Diário de Pernambuco, 21 de janeiro de 1951, p. 4).

neolamarckista,269 instituído sob a crença da herança dos caracteres adquiridos e apoiados pelos movimentos sanitaristas, educacionais e higiênicos (STEPAN, 2005).

O neolamarckismo prevalecia, particularmente, nos círculos médicos. A continuada confiança dos médicos dessas décadas nas idéias lamarckianas cientificamente refinadas não reflete estupidez ou ignorância, mas a aparente impossibilidade de tratarem certos problemas da patologia humana (STEPAN, 2004, p. 346).

Valdemar revelou traços do pensamento neolamarckista quando fez referência às "Leis da Vida" no livro didático "História Natural: terceira série" (1955), admitindo a herança de "atributos morais e intelectuais" e comportando-se de forma contraditória às informações introduzidas nos capítulos sobre Genética e Hereditariedade:

Lei da Herança - Os caracteres específicos se transmitem de ascendente para descendente. Atributos físicos e, no que respeita particularmente à espécie humana, atributos morais e intelectuais, passam, assim, de uns a outros seres vivos, integrando, em seu conjunto, o patrimônio hereditário (OLIVEIRA, 1955, p. 220).

Gioppo (1996) percebeu algo semelhante, a partir da análise do livro didático "Higiene e Puericultura" (1966) escrito por Valdemar de Oliveira, e acusou o autor de ignorar os conhecimentos de genética mendeliana e de concordar com a transmissão hereditária de atributos morais e caracteres adquiridos. A disciplina escolar História Natural proposta para a década de 1950 por Valdemar de Oliveira se apoiava nas referências de hereditariedade estabelecidas por Renato Kehl (OLIVEIRA, 1955, p. 268), o que colocava o autor na posição de defensor da eugenia neolamarckista pautada na esteira da Higiene.

Os conceitos eugênicos que nortearam as escolas e ordenavam os alunos e professores tendiam a definir como deficientes as pessoas negras ou provenientes de meios pobres. Em vez de exclusão, a presença do pensamento eugênico no ambiente escolar resultou numa moderna inclusão marginalizadora (DÁVILA, CARVALHO; CORREA, 2016, p. 231).

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O neolamarckismo, movimento do final do século XIX, caracterizava-se por determinar uma série de fatores da evolução orgânica considerando a ação direta e indireta do meio, a necessidade e mudança de hábitos resultando no desenvolvimento ou na atrofia dos órgão por meio do uso e desuso e a transmissão dos caracteres adquiridos em vida (PACKARD, 1894 apud MARTINS, 2008).

Mesmo existindo a necessidade de se considerar as diferenças entre o movimento sanitarista e eugenista (ROCHA, 2014), Valdemar de Oliveira se envolveu com a questão do exame médico pré-nupcial, exames antropométricos, pelotões de saúde, educação física escolar e, principalmente, utilizou Francis Galton e Renato Kehl como referências científicas para apresentar conteúdos nos seus livros didáticos, tornando-se um agente do pensamento eugênico em Pernambuco. Afirmar que uma pessoa foi eugenista não deve soar como uma condenação, porém, se existem documentos sobre esse tema, torna-se necessário registrar o fato e assumir que determinados intelectuais defenderam e compartilharam essa ideia (DIWAN, 2015; DÁVILA; CARVALHO; CORRÊA, 2016).

Ainda nessa proposta disciplinar que caracterizou a década de 1950, os ramos do conhecimento Botânica, Zoologia, Mineralogia e Geologia já estavam desvinculados daquele perfil utilitário sugerido no final da década de 1930, mas continuavam apresentados de forma exclusivamente classificatória:

Impossível seria estudar todos os minerais sem agrupá-los ordenadamente, isto é, sem classificá-los, como se faz na Zoologia e na Botânica. Diversos tem sido, porém os critérios adotados pelos mineralogistas. Uns levam em conta os caracteres físicos dos minerais, outros a sua origem, outros a sua composição química (OLIVEIRA, 1953, p. 269).

A Botânica e a Zoologia eram apresentadas a partir de uma proposta lineana, com um formato exclusivamente descritivo, procurando ressaltar características que pudessem classificar as espécies. A Mineralogia, que funcionava como um pré- requisito para a Geologia, sofreu uma classificação a partir de critérios químicos (OLIVEIRA, 1953, p. 270), enquadrando esse ramo do conhecimento em parâmetros existentes em uma ciência já consolidada.

Possivelmente, essa perspectiva provocou uma compreensão equivocada da Geologia. Segundo Compiani (1990), a base geológica para a leitura da natureza deve considerar outras especificidades, como o desenvolvimento histórico geológico, por exemplo, trabalhando simultaneamente com o presente e o passado, sob o risco de provocar um entendimento limitado dessa ciência.

Assim, mesmo abordando temas como "Geologia Histórica", "Fósseis" e "Eras Geológicas" no livro "História Natural: para a segunda série" (OLIVEIRA, 1953, p. 347), a forma fragmentada e descritiva do conteúdo não permitiria interpretar os

processos antigos à luz dos acontecimentos atuais, em um fundamento denominado de Atualismo, imprescindível para compreender o componente histórico da Geologia.

Um aspecto restritivo desse processo observado nesse livro ilustra bem a situação, quando a história da Terra foi apresentada em um esquema destacando as Eras de forma dissociada da construção da coluna geológica padrão, com a camada mais antiga no topo da coluna (p. 355).

Nessa proposta curricular, o ramo denominado "Biologia" parecia uma amálgama de temas sem uma construção lógica: Seres vivos, Vitaminas e Hormônios, Reprodução, Genética, Ecologia e Evolução (Livro C2 - Apêndice C). Para esse último bloco, o autor destacou "Noções de espécie", "Lamarckismo e Darwinismo", que, apoiados na taxonomia descritiva e na limitada compreensão dos processos históricos geológicos, como visto acima, não eram suficientes para uma compreensão da Sistemática Evolutiva e da Teoria da Evolução.

Essa proposta indicava uma compreensão desatualizada da Ciência de referência, possivelmente provocando uma instabilidade na disciplina escolar na transição entre as décadas de 1950 e 1960.