• Nenhum resultado encontrado

CURRÍCULO FORMAL E CURRÍCULO OCULTO: PRODUZINDO

2 REVENDO INFORMAÇÕES: ESCOLA, CURRÍCULO E

2.4. CURRÍCULO FORMAL E CURRÍCULO OCULTO: PRODUZINDO

Para delinear as ações, políticas e conhecimentos difundidos na escola, tem-se o currículo como referência. Segundo Sacristán (2000), currículo, tal como o entendemos hoje, é um conceito de uso relativamente recente, pois as práticas escolares não são apenas conduzidas pelo desenho curricular formalmente elaborado e implantado, mas, principalmente pelas relações em que se envolvem os sujeitos escolares dentro e fora da escola.

Neste sentido, Silva (2011) traduz a concepção de Foucault sobre o sujeito da sociedade pós-moderna, que, necessariamente, precisa estar em uma instituição de ensino, a qual, por meio das relações de poder que circulam no desenvolvimento curricular, forma e transforma as pessoas, com o objetivo de atender às necessidades impostas pelo projeto social da classe dominante. Para tanto, já não são necessários os castigos, a repressão e o disciplinamento externos, porém dispositivos de autodisciplinamento regulados por normas, regras e mecanismos de controle. Segundo o autor, “a produção desse sujeito autogovernável é precisamente o objetivo da ação de instituições como a educação (o currículo) [...]” (SILVA, 2011, p. 186).

Santomé (2011) destaca as culturas silenciadas no currículo, pois grande parte das escolas, com seus professores, acreditam ou preferem acreditar que tem em sala de aula alunos que aprendem uniformemente, no mesmo ritmo, que têm os mesmos interesses e as mesmas origens familiares e sociais. Esse autor também dá indícios dos objetivos da ação educativa que perpassa o currículo e que se manifestam, de maneira formal, nos conteúdos do ensino.

A ação educativa pretende, portanto, além de desenvolver capacidades para a tomada de decisões, propiciar aos alunos e às alunas e ao próprio professorado uma reconstrução reflexiva e crítica da realidade, tomando como ponto de partida as teorias, conceitos, procedimentos e costumes que existem nessa comunidade e aos quais se deve facilitar o aceso. Nesse trabalho de formação de pessoas críticas, ativas e solidárias, e de ajuda na reconstrução da realidade, é imprescindível prestar uma atenção prioritária aos conteúdos culturais..., às estratégias de ensino e aprendizagem e avaliação [...] (SANTOMÉ, 2011, p.156).

Na mesma perspectiva, entendo que devem ser consideradas as representações, a cultura e as práticas sociais das pessoas com deficiência. Quanto aos conteúdos apresentados e difundidos através do currículo, é inegável sua importância na construção do conhecimento, aos quais as pessoas com deficiência têm direito de acesso, porém, para que haja aprendizagem significativa é importante que os mesmos sejam relacionados com os significados e saberes desses alunos e, para tanto, a ação pedagógica requer outros meios, além do livro didático, produzindo, desse modo, um saber contextualizado e coerente com as possibilidades de cada sujeito. Estes fatores farão visíveis “as vozes ausentes e/ou deformadas na maioria dos currículos” (SANTOMÉ, 2011, p. 157) ou suprimidas pelas culturas hegemônicas.

No entanto, o professor, apesar de ser um profissional autônomo, exerce a função em uma instituição que possui estrutura, organização, alunos, conteúdos pré-selecionados, livros didáticos disponibilizados pelo governo federal e, em muitas situações, avaliações, datas e frequência de avaliações preestabelecidas. É nesta estrutura que o professor aprende a sobreviver, na qual a liberdade de ação está reduzida à sua atividade em sala de aula.

O professor, em suma, não seleciona as condições nas quais realiza o seu trabalho e, nessa medida, tampouco pode escolher muitas vezes como desenvolvê-lo; embora, para ele, sempre caberá imaginar a situação e definir para si o problema e atuar de diversas formas possíveis dentro de certas margens, considerando que os determinantes possíveis quase nunca são totalmente ineroxaráveis nem sem possibilidade de moldamento (SACRISTÁN, 2000, p.167).

Percebe-se, desse modo, que há uma “identidade” no projeto pedagógico da escola, a qual perpassa o entendimento dos docentes acerca do ensino, das metodologias e dos fins da educação, como ficou claro nas entrevistas realizadas nas escolas. A complexidade do currículo não permite discutir apenas um aspecto ou ainda dividi-lo em partes, sem considerar o todo, pois ele é um projeto educativo em que a escola determina o que considera necessário e relevante para o saber dos alunos e tem uma função social, bem como é resultado de uma construção cultural pelo qual inevitavelmente há disputas pelo poder.

[...] complexidade dos currículos modernos do ensino obrigatório é reflexo da multiplicidade de fins aos quais a escolarização se refere. Isso é um fato consubstancial à própria existência da instituição escolar; consequentemente, a análise do currículo é uma condição para conhecer e analisar o que é a escola como instituição cultural e de socialização em termos reais e concretos (SACRISTÁN, 2000, p.17).

Nessa perspectiva, na qual a concepção de identidade fixa e imutável foi superada e novas identidades, até então reprimidas, rebelam-se e buscam estar representadas ou participar da construção de sua própria representação, o currículo é o espaço de lutas, onde novos significados podem ser atribuídos ou omitidos.

Não é preciso dizer que a educação institucionalizada e o currículo - oficial ou não – estão por sua vez no centro do processo de formação de identidade. O currículo, como espaço de significação está estreitamente vinculado ao processo de formação de identidades sociais. É aqui, entre outros locais, em meio a processos de representação, de inclusão e de exclusão, de relações de poder, enfim, que, em parte, se definem, se constroem as identidades sociais que dividem o mundo social (SILVA, 2001, p.27).

Apple (2002) questiona o papel/função da escola, que deveria ser um instrumento de acesso aos bens e à democracia. Aponta a existência de um currículo explícito e chama a atenção para outro, oculto, que nas escolas exerce “a reprodução de uma ordem social estratificada que continua sendo notavelmente iníqua em termos de classe, gênero e raça” (APPLE, 2002, p.26) e enfatiza que, através dele, permanecem as relações de poder existentes e a exploração dos grupos que não têm acesso ao saber.

Todavia, as escolas também são espaços de contestação. Inúmeros alunos não aceitam ou buscam burlar as regras, as condutas e os saberes formulados na escola. Para Apple (2002, p.84), se as escolas são instituições reprodutivas, são também resultado de uma “interação dinâmica entre a educação e a economia”, pois os alunos trazem saberes e conhecimentos que ultrapassam os muros da escola e estão presentes no dia-a-dia da sociedade, ou seja, para além das intencionalidades explícitas no currículo formal, no âmbito das práticas sociais circula, também, um currículo que se manifesta no interior da escola por meio das

relações intersubjetivas. Nessas interações ocorrem a produção dos saberes, as atitudes e os valores, que constituem o currículo real.

Conforme afirmei anteriormente, as questões presentes no currículo são complexas. Não podemos cair na armadilha de explicá-las como se fosse uma fórmula, na qual cada mecanismo tem a sua função especifica. Os alunos, que passam pelas instituições de ensino, não são moldados ou formatados, simplesmente, como matéria prima em estado bruto, pois trazem consigo a bagagem de vivências que buscam adaptar, ou não, ao que lhes é imposto.

Qualquer um que tenha ensinado em escolas de classe trabalhadora, ou escolas localizadas nas periferias, sabe que não é assim que as coisas se passam. O que é mais provável que ocorra é a reinterpretação por parte do estudante, ou na melhor das hipóteses, somente uma aceitação parcial, e muitas vezes a rejeição pura e simples dos significados intencionais e não intencionais da escola (APPLE, 2002, p.31).

As escolas - campo empírico desta pesquisa - possuem currículos que, obrigatoriamente, observam imposições/restrições de suas mantenedoras. No entanto, as orientações oficiais são também, reinterpretadas, por todos que compõem a escola, em especial professores, gestores e funcionários, que tornam o currículo efetivo através de suas ações dirigidas aos alunos. São estes “que acabam por lhe dar o significado real” (SACRISTÁN, 2000, p.21).

Para este estudo, assumo essas concepções de currículo, que o define como matéria significante. Cuja análise possibilita compreender o que acontece no meio escolar, onde sujeitos com papéis tão distintos (professores/alunos) convergem, dialogam, reprogramam a sua forma de pensar e agir. Nessa perspectiva, o currículo é, sem dúvida, “uma visão da cultura que se dá nas escolas, em sua dimensão oculta e manifesta, levando em conta as condições que se manifesta” (SACRISTÁN, 1998a, p.148).

A escola, ao definir os conteúdos e a forma como os professores vão dar continuidade aos saberes, bem como valorizar determinados comportamentos, reprimir outros, exaltar algumas atividades e desprezar outras vai, aos poucos, definindo quais sujeitos são os idealizados para estar naquele ambiente escolar. Porém, não há garantias dos resultados desses investimentos da escola em

relação ao aluno, pois ele tem sua história, uma forma de ver e entender as relações a partir da sua vivência na família, na sociedade.

A especialização dos saberes, as dificuldades de estabelecer diálogos entre as diferentes áreas do saber permitem que o currículo formal compartilhe com o currículo oculto a organização da escola.

Disfunção que induz a que muitas das finalidades do currículo fiquem como meras declarações de intenções – retórica do currículo ou expectativas – que depois ninguém desenvolve, ou que fiquem à mercê das práticas próprias do currículo oculto, cujos efeitos podem ter significados muito contrários às pretensões educativas (SACRISTÁN, 1998b, p. 153).

Embora o currículo não seja organizado unicamente pela escola, pelos professores, pela direção, pois tem que seguir a orientação da mantenedora, das avaliações externas, dos livros didáticos disponibilizados pelo MEC, o seu desenvolvimento cabe àqueles que estão na escola, que estabelecem o contato diário e efetivo com os alunos. É nessa dinâmica do cotidiano escolar que se manifestam as relações e os saberes culturais, impregnando as práticas e produzindo significados, que podem estar distantes do currículo formalmente constituído. Ou seja, é aí que circula um currículo oculto, não formal, mas real pois nele os significados, as aprendizagens, os conceitos e as atitudes traduzem-se em práticas pedagógicas e, também, sociais.

Apple (2002), ao analisar o currículo oculto, discorda dos argumentos que apontam o mesmo como responsável por ensinar os filhos dos empregados a serem futuros trabalhadores, a serem dóceis e pontuais e argumenta que, se o currículo oculto busca moldar os alunos conforme a necessidade do mercado, é bem verdade também que estes não aceitam sem contestar ou buscar formas de sobreviver no mesmo, até concluir o ano ou o nível.

Para Silva (2001, p.10), o currículo é um contexto onde “saber, poder e identidade” estão presentes, em que diferentes grupos sociais disputam espaços de poder. É também um espaço que produz os sujeitos aos quais fala, os indivíduos que interpela. “O currículo estabelece diferenças, constrói hierarquias, produz identidades” (SILVA, 2001, p.12).

O autor conclama para o cuidado com a vulgarização do currículo oculto, mas admite a influência deste na produção de determinados “tipos de personalidade”. Para ele, fazem parte do currículo oculto “aqueles aspectos da experiência educacional, não explicitados no currículo oficial, formal, que têm sido central na teorização curricular crítica” (SILVA, 2001, p.31).

E neste contexto escolar, em que há, evidentemente, um currículo formal pelo qual professores e alunos devem orientar-se, há também o currículo oculto presente nas relações estabelecidas, nos olhares, nas narrativas. Ambos têm como objetivo a constituição de um sujeito idealizado pela sociedade, que conviva com normas e saiba observar as mesmas. Diante dessas observações sobre um currículo que deseja determinada performance e que constituíram representações em relação ao aluno com deficiência, questiono: Como esse sujeito é narrado pela escola? Outras representações são possíveis?

Ao burlar a “caixa preta” da escola pública, informações surpreendentes dão visibilidade às crianças e adolescentes com deficiência ao aproximar o olhar à Classe Especial da Escola A e da Sala de Recursos Multifuncional Tipo I da Escola B.