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CAPÍTULO I: O HUMANO, AS TROCAS E AS DÁDIVAS

3 A dádiva na modernidade

3.2 Dádiva nos negócios e no amor

Como vivemos em um mundo desencantado, sob a égide da deusa razão, que age em função do capitalismo utilitarista, tudo o que passa pelos nossos sentidos, ou seja, o que vemos, ouvimos, tocamos, inalamos ou degustamos, em vez de possibilitar a busca de significado existencial, passa a ter um apelo raso e comercial, voltado para as necessidades do capitalismo utilitarista e neoliberal.

21. “Pecado” para McKenzie (1983:705) vem do grego hamartia , verbo que significa errar o alvo. Isso não significa meramente um erro intelectual de

Parece que todos estão querendo vender tudo a todos. Criou-se uma imensa rede de negócios, tendo como objetivo muito mais o lucro, o acúmulo material e a vantagem comercial do que o bem-estar. Com isso, o amor pela natureza e pela vida vai ficando esmaecido. A conseqüência desta situação resulta no fato de que a busca de significado está deixando de ser vertical, rumo à transcendência, passando a ser horizontal, rumo à monetarização da vida. Nosso maior desejo, que deveria ser a busca de significado existencial e a entrega ao amor, passou a ser desejo de consumo.

A resultante deste momento monetarizante do significado existencial está na ocorrência de que, cada vez mais, as pessoas param de contemplar a mãe natureza, interior ou exterior, justificando que o tempo não pode ser “desperdiçado” com nada que não vise ao lucro monetário, ao consumo e ao acúmulo. Parece que o esvaziamento, a kenósis, assusta a humanidade contemporânea. Esta deve ser uma das razões para a epidemia de obesidade que atualmente vem assolando o mundo. Deixamos de vivenciar o ócio e, com isso, transformamos nossa vida em um negócio. A dádiva perdeu o encanto, os vínculos estão enfraquecidos, não conseguimos mais ver o próximo e muito menos a nós mesmos. Estamos cientes de que estas afirmações parecem pouco científicas, carregadas de subjetividade e emocionalidade. Porém, no que tange à questão do ócio, Paul Lafargue (1991:26), já em 1883, em seu clássico texto intitulado: O direito à preguiça, escreve: “Diz-

se que a nossa época é o século do trabalho; é, com efeito, o século da dor, da miséria e da corrupção”. Ele incita as pessoas a preguiçar em tudo, exceto no

amor e na própria preguiça, lembrando-nos dos lírios do campo, no sermão da montanha, em que Cristo lembra que eles não trabalham e não fiam, apesar de estar vestidos esplendorosamente. Nesta mesma perspectiva, temos Blaise Pascal (1623- 1662) em seu texto sobre o “divertimento”, quando conclui que: “os homens têm

razão para não ficarem quietos: pressentem que neste estado ficariam em tête- à-tête com a evidência de seu nada” (In Lebrun, 1983:17). Atualmente, também

temos Domenico de Masi (2000), que acabou “patenteando” a expressão ócio

criativo em seu livro do mesmo nome que está sendo vendido nas livrarias para

milhares de pessoas que perderam a capacidade de brincar, ter humor, relaxar, preguiçar, enfim, se contatar com o nada, com o si-mesmo e com toda a dimensão criativa da humanidade. O ócio, por sua vez, nos remete aos princípios da meditação, quando se arrisca tudo com o objetivo de se chegar ao nada. Porém, no âmago deste nada, existe o princípio da luz unitiva e do amor.

No que diz respeito às interferências subjetivas e emocionais, que acabam impregnando meu texto, gostaria de ressaltar que a objetividade científica depende da subjetividade do cientista, principalmente quando o objeto de pesquisa inclui o pesquisador. Jung (1983, Vol. XVII:§161) conclui: “não existe conhecimento

acerca do psíquico, mas no psíquico”, o que nos permite extrapolar para todas as

ciências humanas e sociais, pois não podemos deixar de ver o ser humano no seu estado natural, biológico, como no seu estado modificado pela cultura, social e espiritual, abrangendo, desta forma, o biológico, o social e o espiritual, que está presente e influencia tanto os pesquisadores como os pesquisados, pois todos são seres biopsicossociais, inseridos em um sistema igualmente influenciado pelo biopsicossocial, ratificando que negócios, dádiva, amor, dinheiro, mercado, sagrado, todos objetos desta tese, também são produtos do processo adaptativo da evolução humana.

Para aproximarmos a dádiva do amor e dos negócios, vamos, primeiramente, discorrer sobre o amor, aproximando-o do dinamismo da dádiva, para depois passarmos aos negócios. O amor é um termo muito usado para designar vários tipos de relação, desde os mais nobres até a mera concupiscência, do emocional ao sexual, da livre entrega e libertação até a dependência e aprisionamento, dos níveis carnal e físico até as esferas espirituais e sutis. Estas reflexões nos remetem aos antigos gregos para quem o amor passa por um caminho evolutivo, que vai de

pornéia a Eros, de Eros a philia e de philia a Ágape. De acordo com a mitologia

grega e com os fundamentos da psicologia analítica, é um caminho evolutivo no qual cada fase representa um processo de amadurecimento do ser. Na fase de pornéia, o enfoque está voltado para uma relação urobórica (que representa a cobra que morde a própria cauda) de caráter narcísico, egocêntrico, egoísta e endogâmico.

Na fase de Eros, a relação começa a admitir o outro, mas é representada por um apego passional, excludente e dependente, gerando muito mais prisão do que libertação. O enfoque é caracterizado pela sexualidade. Na fase de philia, já acontece uma abertura para o social, percebe-se a inclusão de valores culturais, morais e éticos com características sociocêntricas e até etnocêntricas, mas ainda existe separação e exclusão. A fase de amor Ágape, a nosso ver, assemelha-se à compaixão de várias tradições orientais. O que se percebe é uma atitude mundicêntrica ou holocêntrica sem partidos e sem apegos com compreensão e inclusão de tudo e de todos, pois tudo e todos pertencem à mesma unidade cósmica. Desta forma, quando falamos de amor, precisamos saber a que tipo de amor estamos nos referindo. A título de ampliação, os filósofos escolásticos diferenciavam o amor conpiscentiae, que é egoísta, exclusivista e sexual, do amor

beneficientiae, que é caracterizado pelo altruísmo com atitudes oblativas, sendo o

primeiro muito mais ligado à matéria e ao corpo e o segundo, às dimensões da alma e do espírito.

Notamos que, na presença do amor Ágape, a alma se alegra e fica prenhe de vida, o poder deixa de ser necessário e, por conseqüência, o binômio confiança e traição param de rondar a existência. E como o amor Ágape não é excludente, então, o mercado e as relações de negócios não podem ficar separados deste sentimento. O amor, em todas as suas fases evolutivas, paradoxalmente, inclui todas as necessidades do ser, acompanhadas de todas as suas potencialidades. Por isso, o amor possibilita o surgimento da dimensão criativa, da plenitude de beleza e do maravilhamento pela vida. Entregar-se ao amor é entregar-se ao numinoso e a si mesmo, pois o amor une as dualidades geradoras de angústia presentes nas antinomias, tais como: o individual e o coletivo, o interior e o exterior, o material e o espiritual, o desejo profundo e a hostilidade, a alegria e a dor, a tensão e a satisfação, a felicidade e o sofrimento. Por isso, o amor é a sua própria beleza e o seu próprio fardo.

É preciso vivenciar plenamente uma fase do amor para poder estar satisfeito e se diferenciar, superando a fase anterior para conquistar a fase seguinte. Por isso, o amor, em todas as suas fases evolutivas, é esperança, não no sentido de espera

paciente e passiva com um otimismo ingênuo, pois esta, felizmente, foi a única praga que ficou presa na caixa de Pandora. Não é a convicção do final feliz, mas a certeza de que um sentido, independentemente do desfecho, estará presente. O amor é o que nos dá a força para viver e para experimentá-lo novamente, mesmo quando a vida é penosa e pesarosa, como o agora da maioria das pessoas. O amor principia no íntimo de cada um e é a única chave que nos permitirá estabelecer a relação de amar e de ser amado. Desta forma, apesar do discurso parecer teológico, poderemos amar o próximo, se amamos a nós mesmos. Se não nos amamos, não poderemos dar nem receber, e, então, surgirão relações de poder, com desejos de traição e confiança, que são profanos e oriundos das paixões mesquinhas e neuróticas do ego. As crises só podem ser superadas pelo “santo” remédio do amor, começando do íntimo e para o íntimo de cada Ser, como uma reação em cadeia, expandindo-se por toda a teia do Universo.

Ao percebermos que a dádiva e o amor são interdependentes, começamos a entender que dar, receber e retribuir é a base da natureza humana, rumo à evolução da matéria para a biologia, da biologia para a mente, da mente para a alma e desta para o espírito. Em cada etapa surgem trocas, negócios e resultados, mas, acima de tudo, surgem vínculos que possibilitam o crescimento humano. Nesta premissa é impossível excluirmos ou separarmos dádiva, amor e negócios, pois todos são manifestações humanas que fazem parte, teleologicamente, do processo de evolução e de transcendência.

Considerações finais

A partir dos pressupostos até agora expostos é possível concluir que o ato de dar e receber é condição sine qua non para se alcançar um status que pode ser considerado como a chave para a excelência humana. Sem trocas não é possível a vida em sua plenitude, porque aqueles que se preocupam apenas em dar tornam-se orgulhosos, independentes e isolados, acabando por se afastar da sociedade, ficando incapacitados de criar vínculos de fraternidade e amor. Por outro lado, aqueles que apenas recebem nunca amadurecem, tornam-se extremamente humildes

e crédulos, continuando permanentemente dependentes, podendo chegar até a atitudes de submissão fanática. Desta forma, os extremos, não saber dar, não saber receber, apenas dar, apenas receber, deixam as pessoas imaturas, impossibilitadas de conquistar a plenitude ou a realização existencial e de desenvolver a capacidade de formar vínculos duráveis e saudáveis.

As trocas são instrumentos necessários de todos os pontos de vista. Esta afirmação é aceita no âmbito das artes, das religiões, do mercado financeiro e das ciências, dentre outros. Nenhum ser sobrevive, biologicamente falando, sem a troca de ar, de água ou de produtos orgânicos. E esta premissa também é verdadeira em relação às trocas afetivas, de experiências intelectuais, sociais, familiares, profissionais e religiosas. Na área em que deixamos de trocar, “morremos”, pois a vida, em todos os sentidos, depende das trocas que ocorrem desde o microscópico universo celular até o macroscópico universo cósmico.

A partir dos dados levantados, podemos afirmar que qualquer ato de dar implica, inevitavelmente, a conseqüência de um recebimento. É importante salientarmos que a contrapartida da oferta não precisa vir necessariamente de quem recebeu. Essa é a idéia da rede. Em algum nível, tudo está ligado a tudo e o campo reage a tudo e a todos. Portanto, a saída para o dilema da ausência de mecanismos de troca é a de seguirmos rumo a uma tentativa de humanizar o espírito e espiritualizar o humano, ou seja, trazer a dimensão espiritual para o humano, assim como aproximar o humano da dimensão espiritual, em busca de um equilíbrio harmonioso entre a matéria, o corpo, a mente, a alma e o espírito. O espírito desumanizado é cruel, produz dores sem amores e dessacralização do corpo e da vivência, assim como o humano desespiritualizado, inevitavelmente, sofrerá transtornos psíquicos e/ou somáticos.

Na nossa dimensão espiritual, repousam os desejos que nunca podem ser alcançados, expressando-se por meio de nossas almas errantes e angustiadas. E na dimensão humana estão as necessidades, conquistas possíveis e saciáveis que garantem a sustentação da vida. A alma busca sentido e significado existencial e o corpo busca a possibilidade de expressão destas conquistas. Ao confundirmos ou substituirmos as necessidades pelos desejos, ficamos dependentes, ao mesmo

tempo, do mercado, que nos escraviza no sistema utilitarista monetário de consumo desenfreado, e do medo de romper com o que foi aprendido, mantendo-nos interditados e superficiais, vivendo uma vida sem sentido e significado.

Nós podemos aprender a não querer o que estamos acostumados a querer, porque tudo o que foi aprendido pode ser desaprendido até, quem sabe, podermos aprender a, simplesmente, não querer nada. Pois tudo o que precisamos está acontecendo à nossa volta, na medida das necessidades do corpo físico e dos desejos da alma, apontando-nos sempre o caminho da evolução. Esta é a verdadeira mudança de paradigmas: aprender a desaprender e permitir que a vida flua, livre e incondicionalmente, no fluxo e no ritmo que o campo cósmico nos possibilita e permite, numa contínua ampliação de consciência na direção da conquista de um equilíbrio dinâmico entre corpo e alma, para poderemos abrir mão da ilusão do controle, que serve apenas para criar muito mais conflitos do que segurança, afastando-nos da paz tão ansiada.

No próximo capítulo, abordaremos as implicações do sagrado nas demandas que geram angústia, para nos aprofundarmos no entendimento de como a humanidade foi elaborando as várias questões existenciais que, invariavelmente, tangenciam o sagrado, porque o processo de aquisição da consciência, apesar de ser um ganho evolutivo, produziu, na imanência de todo ser humano, um sentimento de separação da unidade divina. Em decorrência deste sentimento de separação e de falta, vai surgindo um desejo de reunião com o estado de experiência infinita e de totalidade. Na medida em que este desejo de reunificação integral vai ficando inviabilizado, surge a angústia. Desta forma, quanto maior for a angústia maior será a energia investida no sentido de alívio ou de superação deste sentimento tão incômodo. Com isso, a busca do sagrado começa a se manifestar conscientemente na natureza humana, como uma forma de superação da angústia gerada pela sensação de vazio e de falta que praticamente toda existência consciente, finita, parcial e dual vivencia.