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CAPÍTULO I: O HUMANO, AS TROCAS E AS DÁDIVAS

2.1 O enigma do dom na contemporaneidade

Este item pretende discutir de que forma o dom/dádiva se apresenta na sociedade contemporânea e, para isso, começaremos com a seguinte citação: “A vida nos foi dada e nós a merecemos dando-a”. Com esta frase de Tagore (1861 – 1941), que recebeu o prêmio Nobel de literatura, podemos começar essa reflexão sobre o dom na contemporaneidade. Com Godelier (2001:7, 9), ao perguntar: “Porque o dom existe em todo lugar, embora não seja o

mesmo em toda parte?”, concluímos que o dom é uma necessidade humana e

que: “A demanda de dom fez apelo à oferta, e depois se pôs a organizá-

la”. Com isso, surgem as várias organizações de caridade, públicas, privadas

ou entidades não-governamentais, as quais no Brasil recebem o nome de “organizações não-governamentais” (ONG). As ONGs possibilitam que as pessoas partilhem suas posses e conquistas com outras pessoas mais necessitadas fora do esquema político ou mercadológico.

O fenômeno da criação de entidades distribuidoras de dom é mundial e pode ser constatado por meio das infindáveis associações anônimas que não param de ser constituídas. Associações anônimas ou organizações não- governamentais, sem fins lucrativos, que se mobilizam para ajudar as pessoas necessitadas a resolver, ou aprender a lidar com praticamente todo tipo de problema e de dificuldade que a existência humana enfrenta, seja por doença, dependência, carência alimentar, dificuldade econômica ou até distúrbio comportamental. Como Godelier (2001: 9) constata:

“Deu-se o aparecimento de inúmeras organizações ‘caritativas’, desde os ‘restaurantes do coração’ até as solicitações nos supermercados, em que se pede ao doador em potencial, generoso, solidário, que partilhe não diretamente o seu dinheiro, mas aquilo que comprou com este dinheiro e que destinava a seu próprio consumo”.

Este acontecimento vem em decorrência do processo de laicilização da sociedade, fazendo com que os atos caritativos deixem de ser atribuições teologais, de adeptos religiosos, e passem a ser atitudes solidárias e benevolentes diretas

entre os seres humanos. Com isso, cremos que, em função do aumento da exclusão e da injustiça social, essas atitudes beneficentes, de seres humanos para seres humanos, estão aumentando, principalmente porque o Estado não está dando conta das várias demandas advindas do crescente número de marginalizados, vítimas dos conflitos de interesses, utilitaristas e mercantis, entre os homens. Esta situação de desequilíbrio social, com enormes diferenças entre a distribuição de renda e o acesso aos serviços básicos de saúde e bem-estar, freqüentemente gera mal-estar entre as pessoas.

Godelier (2001: 12) continua sua reflexão sobre o dom frente a esta situação de exclusão:

“A todos a mídia expõe o espetáculo de todas as exclusões, a dos indivíduos e a das nações devastadas pela miséria, pela pobreza, pela guerra civil. Em suma, não é mais apenas o sofrimento dos próximos, é todo o sofrimento do mundo que solicita nossas dádivas, nossa generosidade. (...) O dom tornou- se um ato que liga sujeitos abstratos, um doador que ama a humanidade e um donatário que encarna por alguns meses, o tempo de uma campanha de donativos, a miséria do mundo”.

Essa é a lógica do nascimento de uma economia solidária que está intimamente ligada à problemática da exclusão social. Ficando evidenciado, portanto, o colapso dos mecanismos de regulação econômica e política da sociedade. O crescimento desta economia solidária denuncia a incapacidade do Estado, da tradição iluminista, de manter os direitos universais de todo homem sem nenhum tipo de exclusão ou preconceito. Porém, como o mercado é dinâmico, por expressar a natureza evolutiva da maioria humana, naturalmente foram surgindo novas formas de regulação da sociedade, até chegar a este modelo de economia solidária, que está cada vez mais presente e crescente na cultura contemporânea. No entanto, esta economia solidária ainda está baseada em trocas horizontais, que têm o objetivo de abrandar o mal-estar das pessoas frente ao desequilíbrio social e a incapacidade do Estado de criar ou de manter mecanismos de previdência para a maioria excluída.

humano contemporâneo de seus aspectos sociocêntricos, espirituais e solidários, estimulando apenas a atitude antropocêntrica egoística. Por isso é que se criou toda sorte de trocas horizontais, num livre intercâmbio de tudo por todos, desdobradas por todo o planeta, numa enorme rede mercantil utilitarista. A conseqüência dessa circulação horizontal foi o afastamento das trocas verticais, provocando a destruição gradativa do planeta e o aumento das desigualdades. Com isso, uma minoria, cada vez mais reduzida, tudo tem e pode, enquanto a grande massa nada tem e nada pode. Esta situação, além de aumentar os sentimentos de angústia, produz um crescente enfraquecimento dos vínculos e uma situação em que o acúmulo de bens não é suficiente para libertar as pessoas dos vínculos sociais ou proporcionar vínculos afetivos com a natureza ou com seus semelhantes, pois o que circula no mercado são produtos desprovidos de sentimentos.

Este panorama de trocas horizontais e de ausência de vínculos vai produzindo o mal-estar social gerador de depressões. Godbout (1999: 186) nos possibilita refletir sobre o homem contemporâneo, pois: “o homem moderno,

graças aos bens que acumule ou esbanje, é livre de qualquer vínculo. Mas é obrigado a produzir cada vez mais, em outras palavras, a criar excedente permanentemente. Ou então ele não é moderno”.

Essa “pressão” para produzir o excedente é que conduziu a sociedade contemporânea para a cultura utilitarista. Pois, com o aumento de oferta de produtos, no intuito de gerar mais circulação de mercadorias e, conseqüentemente, mais lucro e acúmulo de bens, criou a necessidade de suscitar necessidades para o desnecessário, evidente no consumo do supérfluo e do descartável. Ou seja, de gerar utilidade e aspiração, quase que imperativa, para o excesso de produtos e serviços produzidos e ofertados. Esse ardil, acentuado pelo capitalismo, apenas sombreou a dádiva, mas a sua presença continua firme, pois ela é um arquétipo que garante os vínculos que, por sua vez, possibilitam a preservação e a evolução da humanidade. Com isso, podemos constatar que o aparecimento da economia solidária e a crescente demanda de trocas verticais, apesar de toda pressão utilitarista pelas trocas horizontais, servem para manifestar a busca do homem contemporâneo pela

conexão com o sagrado, numa possível tentativa de reencantar o dom que foi corrompido temporariamente pela hipertrofia das trocas horizontais e pelo distanciamento do sagrado consciente.

Levando todos estes fatores em conta, fica notório que uma das causas mais importantes para os problemas e perigos enfrentados pela humanidade está fundamentada na hipertrofia dos aspectos materiais, do racionalismo, incluindo- se o crescimento tecnológico desenfreado e o egocentrismo, gerando um enorme desequilíbrio frente aos aspectos espirituais e sociais. A conseqüência deste desequilíbrio é o desencantamento do dom e, como seqüela, o afastamento consciente do sagrado, tema que analisaremos a seguir.