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CAPÍTULO I: O HUMANO, AS TROCAS E AS DÁDIVAS

3 A dádiva na modernidade

3.1 Dádiva, saúde e bem-estar

Saúde e bem-estar são aspirações humanas que geram muita discussão em função da falta de entendimento entre as várias escolas que estudam o ser humano. O avanço do conhecimento produziu uma visão fragmentada do homem. Esse “avanço científico” separou e compartimentalizou a dimensão espiritual da psíquica, a dimensão psíquica da cerebral e a dimensão cerebral da biológica e da fisiológica. Conseqüentemente, todo o conjunto biopsíquico e espiritual também ficou separado das dimensões familiar, profissional, social, planetária e cósmica. Este é o resultado de um pensamento dualista materialista que, além de dividir tudo

em opostos, valoriza só o que pode ser percebido fisicamente e, logicamente, despreza todas as dimensões imateriais colocando-as apenas como epifenômenos dos aspectos materiais. Mesmo assim, até os materialistas mais fanáticos reconhecem que a mente engloba e domina o corpo físico, assim como o corpo físico engloba e domina o cérebro porém, ilógica e paradoxalmente, continuam afirmando que a mente é um epifenômeno cerebral, restando a intrigante questão: como pode a parte ou o produto englobar e dominar o todo ou o produtor?

Com isso, torna-se importante ressaltar nossa opinião de que a dimensão espiritual é inteiramente transcendente e imanente, o que possibilita a afirmação de que a consciência antes de ser uma filogênese, passível de estudos epistemológicos, ela é uma ontogênese, por essa razão que um mal pensar pode produzir um mal sentir e um mal agir até desembocar em doenças biopsicossociais. Esta situação está bem representada nesta passagem que é atribuída a Buda e que circula livremente pela Internet, apesar de não sabermos ao certo de quem é a autoria:

“Uma vez perguntaram a Buda: O que mais o surpreende na humanidade? E ele respondeu: Os homens que perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido”.

No paradigma dualista-materialista, a abordagem quantitativa se tornou a grande representante da matéria. Tudo deve estar de acordo com as normas ideais, dentro de padrões estatísticos carregados de médias previsíveis, ponderáveis e ordinárias. Toda natureza imaterial, incluindo a psique, foi desprezada ou idealizada em amostras previsíveis de normalidade. Esse processo normotético destrói qualquer possibilidade de criatividade ou originalidade peculiar. Infelizmente, o resultado desta atitude foi o da patologização do diferente. Esse procedimento patologizante criou uma exigência de adaptação da psique às normas advindas da racionalização dualista materialista, gerando neuroses e sintomas psicossomáticos.

Ora, se a realidade última são os objetos, coisas materiais que podem ser quantificadas, a dimensão psíquica e espiritual vai sendo desprezada provocando uma infinidade de doenças. O acúmulo material não supre a carência psíquica e

espiritual. Até porque, nas esferas anímica e espiritual, a troca é o grande objetivo. Dar, receber e retribuir é o que dá sentido à vida. Sem essa troca tudo fica árido e não acontece a evolução. Porém, devido à má distribuição da renda e ao aumento assustador da fome e da subnutrição no planeta, as trocas deixam de acontecer livremente em função da busca desesperada de acúmulo para tentar aplacar a angústia existencial. Esta desgraçada realidade é a grande determinante do sofrimento mórbido e do consumo, devido à ascensão do maior agente causador da maioria das doenças antes de as pessoas atingirem a idade avançada: a pobreza.

O termo “pobreza” pode ser associado a miséria, penúria, necessidade ou fatalidade. Na mitologia grega, Anánke e Penía são usadas para representar as várias faces das carências divinas e humanas. Apesar de a pobreza ser reconhecida pela condição de renda insuficiente para a evolução adequada de um ser humano, levando-o a uma condição de indigência por não ter acesso às necessidades essenciais, não podemos deixar de contemplar as carências afetivas, éticas e humanitárias também como fatores determinantes desta classificação.

É uma pena não encontrarmos nos atestados de óbito da sociedade capitalista a pobreza como causa das maiorias das mortes de indivíduos ainda jovens. Vale ressaltar que a pobreza não traz apenas conseqüências diretas como a desnutrição ou o retardamento mental. A pobreza, além de interferir nos aspectos fisiológicos e bioquímicos, também atua significativamente na capacidade mental, emocional e até espiritual que, por sua vez, tem a capacidade de interferir no homem como um todo, e em todo sistema familiar, profissional e social. Esta é a triste realidade da sociedade capitalista. Precisamos compreender que tudo está conectado a tudo e que não existe um único aspecto da vida, seja ele físico, mental, emocional, anímico ou espiritual, que não esteja integrado a tudo.

Atualmente, sabemos que saúde é muito mais do que o bem-estar biopsicossocial. A ausência de sintomas não garante a qualidade de vida. Um indivíduo apático, no uso literal do termo, é um indivíduo sem phatos, ou seja, sem dor, sem sintomas e, apesar disso, está sofrendo o mal da apatia, da falta de sentido existencial. A esses indivíduos apáticos é dada uma enorme quantidade de antidepressivos que, geralmente, só aliviam a queixa, tornando-os gratificados com

a falta de sentido. Com isso, podemos perceber que, para ser saudável, é preciso mais do que a ausência de sintomas e de dor. Apenas o bem-estar biopsicossocial não é suficiente. Para ser saudável, é necessário ter uma motivação para a vida. Motivação advinda de um sentido existencial ou, como a homeopatia apregoa, da busca do mais alto fim existencial, que a psicologia analítica nomeia de mito do significado ou processo de individuação e Plotino (205-270 a.C.), um dos maiores neoplatônicos, chamava de realização do daimon. Hillman (1997:18) coloca o

daimon como o representante da vocação, do destino e do caráter humano em

busca do significado e da realização:

“Você nasceu com um caráter. Ele lhe é dado; é, como dizem as velhas histórias, um dom que, ao nascer, você recebe dos guardiães. (...) A alma de cada um recebe um daimon único, antes de nascer, que escolhe uma imagem ou um padrão a ser vivido na terra. Esse companheiro da alma, o daimon, nos guia aqui. Na chegada, porém, esquecemos tudo o que aconteceu e achamos que chegamos vazios a este mundo. O daimon lembra o que está em sua imagem e pertence a seu padrão e, portanto o seu daimon é o portador de seu destino. (...) Um chamado pode ser adiado, evitado, intermitentemente não escutado. Pode também tomar conta de você totalmente. Qualquer coisa; com o tempo ele aparece. Exige. O daimon não vai embora”.

Torna-se importante ressaltar que, apesar do daimon, temos o livre-arbítrio para afastá-lo ou negá-lo. Porém, quando o livre-arbítrio se distancia excessivamente do daimon, acreditamos que o indivíduo fica muito mais suscetível às doenças. Desta forma, as doenças podem ser entendidas como uma oportunidade para restabelecer o sentido da vida e reconhecer o chamado. Também podemos aproximar a idéia de pecado20, que pode significar a perda do

alvo, advinda da perspectiva do cristianismo, ou seja, é a expressão da perda do destino ou do sentido existencial, comprometido com um processo evolutivo, na busca de realização da alma, que pode ser entendida como salvação e cura de todos os males. Com isso, ao pensarmos nos sete pecados capitais: avareza, gula,

inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça, chegaremos à conclusão de que todos esses sete pecados desviam os indivíduos das trocas e do daimon. Assim, podemos entendê-los como doenças biopsicossociais com repercussões em todos os níveis e quadrantes da vida. Neste contexto é que surgem os estudos de psicossomática.

A prática da psicossomática é muito antiga. Hipócrates, o pai da medicina, já afirmava em um de seus mais famosos aforismos: “O que te fere é o que te cura”. A medicina tradicional chinesa (MTC), há mais de cinco mil anos, também assume este princípio. Desta forma, não é a psicossomática um conhecimento novo e alternativo. Ao contrário, o novo que fragmentou o ser humano e dessacralizou seu corpo, assumindo uma atitude invasiva, materialista e desumanizada, é a medicina contemporânea que está muito mais ligada ao consumismo capitalista do que às verdadeiras razões e necessidades da existência humana. No ocidente, Freud começou a estudar distúrbios físicos provocados pela psique, as famosas histerias conversivas. Atualmente, vários autores foram além chegando à conclusão da inseparabilidade do trinômio biológico, psicológico e energético, afirmando que qualquer desequilíbrio em uma parte será refletido no todo. Assim, todas as doenças podem ser consideradas psicossomáticas, porque somos seres psicossomáticos inseridos no contexto cultural e social que também é psicossomático, incluindo-se as relações amorosas e comerciais, como veremos a seguir.