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CAPÍTULO I: O HUMANO, AS TROCAS E AS DÁDIVAS

2.2 O sagrado e o dom desencantado

O ser humano contemporâneo está sofrendo a crise da falta de significado existencial em função do desequilíbrio entre seu desenvolvimento exterior, que está cada vez mais poderoso, e interior, que ficou subdesenvolvido por causa do excesso de estímulo para as relações horizontais. A evolução exterior proporcionou o conhecimento materialista e racional que gerou uma escalada de avanços tecnológicos com a produção de utensílios que, nas mãos de quem não se desenvolveu harmoniosa e equilibradamente, podem se tornar meios para a destruição do planeta. O que chamo de desenvolvimento harmonioso e equilibrado é a evolução em todos os níveis e em todos os quadrantes, proposta por Ken Wilber (2003:52), na qual os aspectos horizontais e verticais, interiores e exteriores, conscientes e inconscientes, são contemplados, incluindo o ser biológico, social, psicológico, científico e espiritual que devem crescer na mesma proporção. Com isso, apesar de todo o avanço tecnológico, o homem vem experimentando uma série de “desencantamentos”, principalmente porque nenhum remédio de última geração ou equipamento supermoderno e sofisticado pode aplacar a angústia vital, a falta de significado e de sentido existencial.

Isso faz com que, na vã tentativa de fugir do “chamado” das relações verticais, a humanidade invista muito mais energia, em todas as áreas, na direção

exterior. Esta é a razão da enorme crítica que o estado de ócio recebe, principalmente porque no ócio podemos entrar em contato com a dimensão interior e, provavelmente, esse contato gere muito medo, pois ninguém, que esteja nessa dinâmica exterior, está capacitado para encarar o vazio de sentido e de significado existencial. Somos obrigados a produzir sem parar. Com o excedente criamos mais trabalho no sentido de “inventar” utilidades e destino para ele. Nessa escalada de trabalho pelo trabalho, produção pela produção, a dimensão humana foi se tornando um mero “negócio” palavra advinda do latim, resultado da junção entre

negáre e otíum, sugerindo que a produção está na negação do ócio. A

humanidade, ao negar o ócio, por medo e insegurança frente ao desconhecido mundo interior, transformou a vida em negócio, ficando, cada vez mais, sem o encanto e a plenitude da sua capacidade criativa, desprovida do si mesmo e alienada em seu ego narcísico.

Max Weber (1971:182,183) faz uma análise do desencantamento que nos ajuda a ampliar este tema:

“O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo ‘desencantamento do mundo’. Precisamente os valores últimos e mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais. Não é por acaso que nossa maior arte é íntima, e não monumental, não é por acaso que hoje somente nos círculos menores e mais íntimos, em situações humanas pessoais, em ‘pianíssimo’, é que pulsa alguma coisa que corresponde ao ‘pneuma’ profético, que nos tempos antigos varria as grandes comunidades como um incêndio, fundindo-as numa só unidade. Se procurarmos forçar e ‘inventar’ um estilo monumental na arte, produzem-se monstruosidades tão miseráveis quanto os muitos monumentos dos últimos vinte anos. Se tentarmos construir intelectualmente novas religiões sem uma profecia nova e autêntica, então, num sentido íntimo, resultará alguma coisa semelhante, mas com efeitos ainda piores. E a profecia acadêmica, finalmente, criará apenas seitas fanáticas, mas nunca uma comunidade autêntica”.

Esta é uma dimensão angustiante e Weber nos mostra como estamos isolados e perdidos. As raras aparições de indivíduos carismáticos, que podem

sensibilizar a humanidade para a evolução interior e as trocas verticais, aparecem e desaparecem com a mesma rapidez utilitarista que rege a moda, a tecnologia e toda a economia. Nada é permanente, ou que possa durar, pois o descarte e a apologia ao novo e ao moderno geram o aumento do consumo, tão desejado pelos indivíduos desejosos de plenitude. Apesar de sabermos que as mutações são necessárias e graças a elas, ou apesar delas, é que ocorre a evolução, o viver em constante mutação, só em função da manutenção exterior e das trocas horizontais, gera conflitos contínuos e guerras. Esta situação faz com que a experiência de vida vá perdendo o encanto e, com isso, a permanência, o aprimoramento, a profundidade, enfim, o sagrado consciente.

Nesse aspecto, podemos concordar com Jung quanto às origens espirituais das queixas contemporâneas; é que na raiz de todos os conflitos sempre está o nome de Deus. Mas isso se justifica pela falta de sentido do próprio conflito. Como o amor ágape está longe de ser atingido, então, colocando-se a responsabilidade do conflito em Deus, quem sabe a culpa ficará aliviada e poderemos continuar alienados e desencantados, consumindo alegremente o inútil e o impermanente. David Harvey (1992:23) amplia esta situação em que, apesar de todas as promessas, quase que paradisíacas, de evolução científica, ainda que meramente horizontal e exterior, continuamos desolados:

“O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, libertação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana”.

Por outro lado, o sonho iluminista de alcançar a felicidade pela ciência foi criticado por Weber ao assegurar ser isso um sonho ingênuo e otimista. A ciência, sozinha não pode dar conta da totalidade, até porque a ciência é uma fração do processo de intelectualização, mas não pode representar a essência humana. A ciência desintegrada das dimensões anímicas e espirituais da humanidade fica deficiente e, em vez de contribuir para a evolução integral, pode produzir muito

mais conflitos e destruição. “A intelectualização e a racionalização crescente não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos” acrescenta Weber (1971:164).

A evolução humana não é linear, seqüencial e ascendente, é um processo rumo a um telos, ou seja, uma teleologia. Desta forma, é admissível este desequilíbrio no desenvolvimento, mas precisamos tomar consciência dos riscos em permanecermos neste desequilíbrio. Weber (1971:165) também sabia que o progresso não é unilinear em direção à perfeição moral ou à racionalização tecnológica cumulativa, mas sublinhou que o processo crescente de racionalização geraria o conseqüente desencantamento do mundo:

“(...) não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isso significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem, para quem esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço”.

Em nossa época, o desencantamento está indo muito além das tradições religiosas e seus mitos fundantes. Isto porque está ocorrendo um desencantamento, no que diz respeito às tradições, nas significações pessoais, nas relações interpessoais e familiares, enfim, até na relação com a natureza, provocando destruições ecológicas, além de outras.

O excesso de racionalidade acabou por produzir um comportamento que busca a dominação sobre tudo e todos, do corpo à mente, da mente à alma, finalmente sobre a sociedade e sobre toda a natureza. A ciência e a tecnologia são as formas de suporte para a dominação política no sistema capitalista, “mascarando” e sombreando seu caráter explorador e opressor, ao assumir a persona do racional e do científico. Por outro lado, a repressão explícita se torna desnecessária e irracional no processo de sujeição das pessoas ao imenso aparelho capitalista utilitarista, que visa à produção, à demanda e à distribuição, ou na fusão do trabalho social produtivo e destrutivo (Jürgen Habermas, 1994:47). Nestes termos, o sentimento de dominação tende a desaparecer da consciência das pessoas mediante a pressão para o aumento da produtividade e a ilusão do domínio

da natureza, advinda do desenvolvimento científico e tecnológico, como fatores que deverão proporcionar uma vida mais confortável, apesar de mais alienante e desencantada.

A conseqüência deste estado de evolução desequilibrada é que a dominação se eterniza e se amplia não só mediante a tecnologia, mas como tecnologia, legitimando o poder político que está a serviço deste capitalismo utilitarista. Antigamente, o que libertava e tinha solidez era o sagrado, conhecido e valorizado como referência para a vida, presente nas relações familiares, crenças, afetos, sensações, relações verticais e da esfera interior, que garantiam alguma inteireza ao indivíduo. Com o esvaziamento dessas relações tradicionais, a humanidade perdeu os recursos de que dispunha para imprimir um sentido ao mundo. Com isso entendemos que a pseudo-sensação de liberdade, advinda do desenvolvimento exterior e horizontal, provocou a perda de boa parte da “magia” que dava graça à vida. Jung (1984:15) se manifesta frente a esta situação da seguinte forma:

“O Ocultismo experimenta atualmente um renascimento sem precedentes, quase obscurecendo a luz do espírito ocidental. Não penso em nossas academias e seus representantes. Sou médico e lido com pessoas simples. Sei, por isso, que as universidades não são mais fonte de conhecimento. As pessoas estão cansadas de especialização científica e do intelectualismo racional. Eles querem ouvir a verdade que não limite, mas amplie; que não obscureça, mas ilumine; que não escorra como água, mas que penetre até aos ossos”.

Weber (1971:164) ao se posicionar frente ao que é permanente e que pertence ao desenvolvimento interior e vertical da humanidade nos remete às questões da realização:

“Uma obra de arte que é uma ‘realização’ autentica jamais é superada; jamais será antiquada. As pessoas podem divergir, na apreciação da significação pessoal das obras de arte, mas ninguém poderá dizer que tal trabalho ‘foi superado por outro que também é realização’. (...) Na ciência, sabemos que as nossas realizações se tornarão antiquadas...”

Após esta reflexão Weber (1971:164) continua com as seguintes perguntas:

estiver em busca dessa atitude pessoal?”, “Será que o homem de ciência perdeu a relação com o sagrado?”.

Jung descreve que, ao longo de nosso século, o indivíduo foi desaparecendo nas massas, em favor do Estado que lhe toma o lugar, reduzindo-o ao anonimato. Diz Jung (1988, Vol. X:§503):

“Quando o indivíduo, esmagado pela sensação de sua insignificância e impotência, vê que a vida perdeu sentido — que afinal não é a mesma coisa que bem-estar social e alto padrão de vida — encontra-se a caminho da escravidão do Estado e, sem saber nem querer, se tornou seu prosélito. Aquele que só admite olhar a partir de sua perspectiva externa e dos grandes números nada possui que possa defendê-lo do testemunho de seus sentidos e de sua razão”.

O mundo foi se desencantando devido ao crescimento unilateral dos aspectos exteriores e das relações horizontais, e a razão instrumental da ciência contribuiu para a aparente dessacralização da humanidade. Aparente porque entendemos que o sagrado, por estar na imanência e na transcendência de tudo e de todos, sempre encontrará uma forma de se manifestar. Porém, como atualmente a ciência está se encarregando de dar a explicação do mundo, ela acabou substituindo a religião, que antes estava preocupada, juntamente com a filosofia, com o sentido da vida. Com isso, temos uma explicação lógica e ordenada de mundo, mas continuamos sem o sentido e o significado da vida. Desta forma, no sentido de entendermos como a dádiva vem se manifestando na contemporaneidade, que vivencia o desencantamento do mundo, vamos prosseguir examinado a dádiva na modernidade.