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CAPÍTULO I: O HUMANO, AS TROCAS E AS DÁDIVAS

1.2 Potlatch, prestações totais do tipo agonístico

A prestação total do tipo agonístico, como chamou Marcel Mauss, é um gênero de trocas, instituído por algumas comunidades primitivas, chamado de

potlatch. Estas prestações totais do tipo potlatch, palavra que integra,

simultaneamente, as idéias de alimentar e de consumir, têm como alvo a luta hierárquica entre os chefes de cada clã, objetivando as vantagens que a conquista do poder pode trazer: mais prestígio, dominação, riqueza e mais poder para benefício do próprio clã. O potlatch é um comportamento tão assustador que o próprio Mauss percebeu seu caráter agonístico, pela luta e rivalidade angustiante que produz entre os participantes, além da usura e da suntuosidade destes procedimentos.

No potlatch, os clãs, em vez de guerrearem por meio do confronto físico, com derramamento de sangue e morte, guerreiam por meio da troca de presentes. Godelier (2001:88) amplia essa idéia afirmando: “No potlatch se dá alguma coisa

para esmagar o outro com este dom”. É uma luta para estabelecer a supremacia e

colocar o outro em dívida permanente. São competições de caráter político. Mauss (2001:120) ressalta o caráter hierárquico e o prestígio advindo do potlatch: “O

potlatch, a distribuição dos bens, é o ato fundamental do reconhecimento militar, jurídico, econômico, religioso, em todos os sentidos da palavra. O chefe ou seu filho é ‘ reconhecido’ e todos lhe são reconhecidos”.

Para Mauss, no entanto, a rivalidade exasperada que pode resultar na destruição ostentatória de todos os bens, pode ser uma forma evoluída de prestação total. Mas não podemos perder de vista o objetivo que está por trás destas “guerras” de presentes, que é a necessidade de poder. Neste momento, ao depararmos com a necessidade de poder, torna-se imperativa uma reflexão sobre a busca de poder e os conflitos decorrentes desta busca, sempre presentes nos registros históricos ao longo de toda evolução a humana. Não obstante, a busca de poder raramente aparece de forma clara e transparente. Geralmente, a necessidade de poder, assume a camuflagem de controle, prestígio, fama, beleza e riqueza material ou espiritual, assim como de acúmulo de qualquer coisa, autoridade, força bélica, conhecimento, exibicionismo, enfim, existem miríades de disfarces para sombrear o desejo de poder. A esta altura pode-se perguntar por que o desejo de poder vem disfarçado e se torna um bem tão importante para o ser humano? Ao longo deste trabalho, buscaremos as possíveis respostas a esta pergunta, a fim de ampliarmos nosso conhecimento sobre esta questão, principalmente na tentativa de relacionarmos o dinheiro com as dimensões psicológicas do ser humano.

O potlatch, analisado numa perspectiva junguiana, pode ser considerado ou comparado com o ato do sacrifício, ainda presente nas mais diversas formas de relações humanas, apesar de ser mais explícito nas situações que envolvem o sagrado. Isto porque o sacrifício, além de ter uma função catártica, é representado pela renúncia de alguma coisa, por doação ou destruição, em favor de algo que tenha uma aproximação com o sagrado. Esta renúncia tem um caráter refundante, por ser manifesto de forma ritual e porque, simbolicamente, também possibilita a experiência de purificação e de consagração. Jung (1979, Vol. XI/3:§390) faz a aproximação entre o dom, o vínculo da coisa dada com o si-mesmo e o sacrifício da seguinte forma:

“A ação sacrificial consiste, antes de tudo, em dar alguma coisa que me pertence. Tudo o que me pertence traz a marca do ‘meu’, isto é, traz a marca de uma identificação sutil como o meu

eu. (...) Portanto, aquilo que eu dou do que me pertence já é, em si, um símbolo ou algo polivalente. (...) Daí, o fato de toda oferenda se achar ligada, de forma ruidosa ou discreta, a uma pretensão de ordem pessoal. Queiramos ou não, trata-se sempre de um ‘do ut des’ [dou para que me dês]. O dom que se faz significa, portanto, um propósito pessoal, pois o simples dar, em si, ainda não é um sacrifício. Torna-se um sacrifício quando se renuncia ao objetivo do ‘do ut des’”. (grifo do autor).

Neste momento, é importante ressaltar que a palavra interesse, a nossa sociedade, muitas vezes acabou sendo associada a uma atitude ruim presente nas pessoas egoístas. Porém, na minha opinião nada que existe está livre de algum tipo de interesse, apesar de Jung (1984, Vol. XI/1:§376s) ter explicado sobre o sacrifício autêntico, isto é, o dar sem segundas intenções, com símbolo de um auto- sacrifício, em que a pessoa passa de oferente para ofertado. Mesmo uma flor, com sua beleza e exuberância de cores e perfumes, está interessada em que alguém lhe toque para que aconteça a polinização e a conseqüente transmissão de seu estoque genético que irá preservar a sua espécie. Desta forma, podemos concluir que o interesse é parceiro da evolução e o interesse que pode ser considerado abominável é aquele que não privilegia a troca livre, ou seja, aquele que visa os acúmulos egoístas, que foi muito facilitado com o processo de monetarização da dádiva, como veremos mais adiante. Do mesmo modo, nenhum dom pode ser totalmente desinteressado, existe sempre uma espera ou uma intenção, mesmo no ato sacrificial dos santos é possível perceber a intenção de cuidar e de preservar a humanidade.

A ação sacrificial é claramente percebida em muitas denominações religiosas da atualidade, ao pedirem o sacrifício do dinheiro como meio de troca com o sagrado. Por outro lado, é possível sabermos que a angústia do fim último aliada às questões existenciais sobre temas como: “De onde viemos?”, “Para onde vamos?” e “Por que estamos aqui?”, nos remete a uma situação de fragilidade e de medo. Paralelamente, também sabemos que todo processo evolutivo exige a superação da ansiedade de separação dos conteúdos obsoletos e arcaicos. Esta separação produz a insegurança e a incerteza frente aos novos conteúdos a serem assimilados, além de produzir, simultaneamente, o sentimento de abandono dos velhos

conteúdos, podendo resultar em apego regressivo e infantil para com os estágios mais primitivos e menos conscientes. Como todo processo evolutivo gera muita angústia e muito medo, é natural o surgimento de resistências, dos estados dissociativos e regressivos da mente, que podem ser chamados de rebaixamento do nível mental. Desta forma, o poder acaba sendo um belo trunfo, apesar de transitório e gerador de neuroses, para aliviar os transtornos gerados pela pressão evolutiva.

Podemos concluir que a busca do poder é uma atitude equivocada e regressiva de quem tem medo de deixar as “forças” da natureza atuarem livremente, no sentido evolutivo, por meio da dialética compensatória e dinâmica do envolver e desenvolver, do construir e desconstruir, numa contínua, seqüencial e ascendente dança entre ordem e caos, rumo a níveis e estágios cada vez mais amplos e superiores. Enfim, o poder nega a dinâmica das trocas livres na prática do dar, receber e retribuir. Nesta perspectiva, somente pela aceitação do processo evolutivo que advém das trocas livres é que poderemos abrir mão do poder.

No caso do potlatch, podemos perceber que o poder exibicionista e do prestígio era um ganho secundário muito maior do que os bens dados, pois com este poder o medo existencial deveria ceder, transitoriamente é claro, e os vínculos sociais iam se fortalecendo, também afastando, transitoriamente, o medo do desconhecido. Fica evidenciado então o quanto a segurança psíquica é mais importante que a segurança material, pois, a segunda garante os vínculos e mantém o sistema de prestações totais, como será comentado mais adiante.