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Dêiticos espaciais e temporais

No documento marcada e referenciação (páginas 91-94)

CAPÍTULO V: ANÁLISE

5.2 Análise

5.2.2 Dêiticos espaciais e temporais

Os dêiticos espaciais remetem ao lugar específico em que se encontra o enunciador, ou pressupõem esse local. Os temporais, por seu turno, pressupõem o tempo em que se dá o ato comunicativo. Esses tipos de dêiticos podem funcionar, também, como marcadores quando da alternância de enunciações. Vejamos a atuação dos dêiticos ―aqui‖ e ―agora‖ nos exemplos (10) e (11).

(10) Da minha janela os vejo. São três. Encostados no tapume da favela [...]. Da minha janela os vejo: dois policiais a cinqüenta metros, lá embaixo [...]. Da minha janela me dou conta de que somos um triângulo. Eu aqui do alto contemplando de um ângulo os homens seminus e sua arma [...]. Talvez me encontre [um dos rapazes seminus] num sinal de trânsito ou numa rua escura e me abra a cabeça com a bala de sua fúria. [...] Mas quando isso se der, eu, você ou aquele que tiver sido assassinado não estará mais aqui nem terá mais olhos pra ver. (Da minha janela vejo. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas, p.36).

Observe-se que o texto se constrói dentro da atmosfera da enunciação enunciada. Os lugares vão sendo definidos em torno do ponto a partir do qual fala o enunciador: da janela de

seu apartamento. Percebemos isso claramente quando as expressões ―lá em baixo‖ e ―aqui do alto‖ são confrontadas. Ocorre que, ao finalizar o texto, o lugar a que passa a se referir o dêitico ―aqui‖ aponta para a enunciação que é atualizada a cada leitura que é feita do texto, a enunciação real à qual pertencem efetivamente os interlocutores. O modo de utilização desse dêitico no interior de contextos, como o acima ilustrado, alça-o à condição de marcador. O dêitico temporal promoveu a mudança do expediente da enunciação, marcando-as, portanto. O dêitico utilizado com esse fim chama para o texto o alheio, na medida em que conta com elementos pertencentes ao momento enunciativo do outro para a constituição de seu sentido.

Procedimento semelhante ao de (10) dá-se com o exemplo abaixo:

(11) Conheci Drummond aos 17 anos, ali no seu gabinete no Ministério da Educação. Havia lhe enviado uma cartinha interiorana e alguns poemas, e agora subia o elevador para vê-lo de perto. [...]. De repente dava aquele respeito e não mexia um dedo. Ele construía uma tal atmosfera de individualidade, que às vezes era impenetrável. Era um homem imprevisto. Respeitava e se fazia respeitar.

Agora se foi. Ele vivia com aquele ar de quem estava mal alojado e sempre se

despedindo. (Perto e longe do poeta. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas, p.61).

Aqui, temos o dêitico temporal ―agora‖ também marcando a mudança de enunciação. Quando da utilização desse termo em torno da cena construída dentro da enunciação enunciada, marca o tempo em que os acontecimentos se desenrolavam naquele expediente enunciativo. Ao utilizar a expressão ―agora se foi‖, o dêitico temporal ancora-se na enunciação atualizada pelo interlocutor no momento da leitura, fazendo com que esta outra enunciação seja instaurada, marcando-a. Ao lançar mão desse procedimento, o conhecimento enciclopédico do interlocutor é requerido, pois é preciso que ele saiba que o poeta de que fala o texto já ―se foi‖.

Os dêiticos de tempo e de espaço podem, também, indicar a existência de discurso indireto livre e, dessa forma, marcar alternância de vozes entre narrador e personagem. Em (12), podemos constatar esse feito:

(12) A FUGA

(12) [...] Estava cansada. Pensava sempre: ―Mas que é que vai acontecer agora?‖ Se ficasse andando. [...] Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força: ―Você não voltará‖. Apaziguou-se. Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas: ―Bem, as coisas ainda existem‖.

[...] Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa. Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos

pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço profundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la [...]

Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou procurar um lugar onde pôr os pés [...]

Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes

dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as

portas. Mas não: o ar ali estava imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu baixo, as nuvens escuras, densas [...]

Agora está com fome. Há doze anos não sente fome. Entrará num restaurante.

O pão é fresco, a sopa é quente. Pedirá café, um café cheiroso e forte [...].

Rio, 1940.

(LISPECTOR, C. In: O primeiro beijo e outros contos, pp. 23-27).

Note-se que a passagem da voz da personagem para a do narrador não está sinalizada com aqueles mecanismos prototípicos responsáveis por assinalar o que é da ordem ―do um‖ e o que ―é do outro‖. A função (de)marcativa está aí sob a incumbência de dêiticos. Em (12), estamos lidando com um texto em que a sequência narrativa é dominante; o discurso é em terceira pessoa; em discursos desse tipo, teoricamente, narrador e personagem constituem pontos de subjetividade distintos. Mas o que ocorre aqui é a união das instâncias enunciativas de narrador e de personagem, num ponto específico da cadeia textual, fazendo com que o narrador se mostre como estando no interior da narrativa e não ―de fora‖ dela, como o é aparentemente. No trecho ―[...] Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força: 'Você não voltará'. Apaziguou-se. Agora que decidira ir embora tudo renascia‖. Assim como nos demais trechos negritados, vemos claramente este fenômeno em ação. Observe-se que a narrativa vem transcorrendo na perspectiva de um momento pertencente, digamos, a um ―não-agora‖. Quando se dá a atualização de ―agora‖, esse dêitico como que convoca as enunciações de modo que constituam uma, neutralizando, portanto, os tempos de uma e de outra. Este elemento atua como uma espécie de centralizador pontual das instâncias enunciativas em questão. Entendemos, desta maneira, que dêiticos desse tipo, funcionando de modo a provocar o ―aparecimento‖ da voz do outro – neste caso, a do narrador – na superfície textual, são marcadores que mostram, sim, a ruptura no fio discursivo.

No documento marcada e referenciação (páginas 91-94)

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