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Dêiticos memoriais

No documento marcada e referenciação (páginas 83-91)

CAPÍTULO V: ANÁLISE

5.2 Análise

5.2.1 Dêiticos memoriais

Os dêiticos de memória, que indicam que o referente é de fácil acesso na memória comum dos interlocutores e incentivam o outro do processo discursivo a buscar ali a informação de que precisa para (re)construir o sentido, constituem, para nós, mecanismo de marcação. Isso porque vemos, na pressuposição de que conhecimentos armazenados na memória do leitor sejam cruciais para a (re)ativação do referente pretendido, representada linguisticamente por um dêitico de memória, a explicitação de um fato de heterogeneidade no fio textual, o que promove a opacificação de um ponto específico do dizer.

Cabe uma última observação de autoridade quanto à ativação de referentes por meio de demonstrativos, que julgamos pertinente, na medida em que fortalece nossa argumentação em favor do que vimos defendendo:

Um SN demonstrativo pode referir-se in absentia, quer dizer, na ausência de qualquer designação antecedente de seu referente e sem que este esteja presente na situação enunciativa. [...] concordamos em descrever este tipo de demonstrativo dizendo que ele consiste em evocar um referente cuja evidência é tal, para o locutor, que ele equivale a um referente que acabou de ser evocado no próprio texto. (APOTHÉLOZ, 1995, p.35).

Os textos que se seguem apresentam ocorrências cujo destaque é dado à função que o demonstrativo acumula quando faz as vezes de mecanismo marcativo.

(1) Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem [...], mas não crescem todos os dias, de igual maneira: crescem de repente. [...] Onde andou crescendo aquela danadinha que você não percebia? Cadê

aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as

festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal ou escola experimental? [...]. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas, p.14).

Partiremos do entendimento de que a atualização da expressão ―aquele cheirinho de leite‖, que figura de maneira nada casual no contexto em que está inserido, coloca-nos diante de uma estratégia usada pelo enunciador que denuncia ao co-enunciador a pressuposição de que este compartilhe determinado conhecimento.

Em (1), quando o enunciador se refere ―àquele cheirinho de leite sobre a pele‖ das crianças quando bebês, o demonstrativo é utilizado exatamente para marcar que tal sensação olfativa deve ser conhecida daqueles que estão lendo aquela crônica, já que um leitor deste gênero provavelmente já manteve contato com crianças naquele estágio da vida; ainda que o leitor não tenha tido nenhuma experiência com a situação forjada pelo texto, é de conhecimento geral, enciclopédico que os bebês se alimentam integralmente de leite nesta fase da vida, o que faz com que fique impregnado com seu cheiro. A expressão poderia perfeitamente ter sido assinalada com aspas, indicando que se trata de uma situação comum aos interlocutores. No entanto, vemos a utilização do demonstrativo de terceira pessoa desempenhando função de marcador. Esse lançar mão do demonstrativo para ativar a memória do outro, defendemos, apresenta-se como estratégia de marcação tão eficaz quanto o aspeamento – mecanismo formal de marcação da inscrição do outro no fio discursivo -, por exemplo.

Conquanto o referente não tenha sido anteriormente designado, o próprio cotexto se deixa utilizar para que o caminho até o não-dito seja trilhado com sucesso; o cotexto está repleto de referências explícitas que podem servir de ponte para o alcance do referente pretendido, quais sejam:―pais‖, ―filhos‖, ―crianças‖, ―pazinha de brincar na areia‖, ―festinhas de aniversário‖, ―palhaços‖, ―primeiro uniforme do maternal‖; está posta, pois, a atmosfera nostálgica no interior da qual o texto vem se construindo.

Aqui, mesmo que a referência propriamente dita não esteja manifesta, estamos diante de um procedimento não inteiramente dêitico, mas também anafórico, na medida em que, apesar de o demonstrativo sinalizar essencialmente para informações relacionadas à memória, encontra, na materialidade textual, indícios que colaboram para que o referente pretendido seja (re)ativado, por meio de vias indiretas.

(2) Passou o tempo do balé, das culturas francesa e inglesa [...]. Só nos resta dizer ‗bonne route, bonne route‘ como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha lhe oferece o primeiro jantar no apartamento dela. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p.15).

Coisa um pouco diferente ocorre em (2), pois, quando se refere ―àquela canção francesa‖, reforça a canção especificamente que quer que seja buscada na memória, já que nos dá a pista que nos levará ao referente pretendido: trata-se de uma dada canção que traz em sua composição a expressão ―bonne route, bonne route‖ – expressão que ratifica tratar-se de uma ―canção francesa‖. Mesmo facilitando a construção do sentido, por parte do interlocutor, na

busca do referente, em nada se altera a situação do demonstrativo ―aquela‖. Cabe, neste momento, chamar o leitor-modelo de Eco para complementar nosso posicionamento. Para que o interlocutor ―ajude o texto a funcionar‖ nesse seu momento específico, não basta que este disponha de um conhecimento de mundo geral, como o é na construção dos demais textos selecionados. Trata-se, neste caso, da previsão de um outro que tenha uma bagagem cultural um tanto ―sofisticada‖, sobretudo no que tange a canções, para que seja acessada a canção de Serge Regianni, Ma fille. Ressaltamos que o não-acesso ao texto sugerido pelo autor da crônica não compromete de todo a construção global de sentido, em absoluto; mas deixa-se, sim, de enriquecê-la. O fato de não ter havido a ponte, de o gatilho não ter sido deflagrado - é o que defendemos - não neutraliza a sugestão de conexão, concentrada, inicialmente, em ―aquela‖, que é o que marca a suposição deste leitor-modelo.

Assim como em (1), portanto, estamos diante de uma expressão marcada por um dêitico de memória.

(3) Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância e os adolescentes cobertos naquele quarto cheio de colagens, posters (sic) e agendas coloridas de pilot. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R. de Coleção melhores Crônicas , p. 15).

Em (3), o universo construído pelo texto pede que atualizemos nosso conhecimento - independente de nossas experiências particulares, frisamos – acerca da fase da adolescência: momento em que as atitudes descritas pelo texto são bastante comuns: encher o quarto com pôsteres do(s) ídolos(s), ter agendas rabiscadas por canetas porosas coloridas. Assim, dentro do contexto em que a expressão ―naquele quarto‖ é inserida, constatamos que o demonstrativo (de)marca um lugar específico a ser buscado pelo interlocutor, a partir de seu conhecimento enciclopédico.

Sustentamos que a seleção da expressão ―naquele quarto‖ nada tem de inocente no contexto; para nós, ela denuncia a pressuposição do enunciador no que respeita ao conhecimento partilhado que deve existir ente ele e o co-enunciador relativo a cenas e práticas bem próprias à fase da adolescência. Para resgatar da memória do interlocutor a informação básica que indicará a precisão semântica do referente, o enunciador se apóia, com efeito, no demonstrativo de terceira pessoa ―aquele‖, o que materializa – portanto torna observável – um fato de heterogeneidade.

(4) Aguardar assim o furacão é como aquela personagem do conto de Hemingway, que cansado de fugir dos perseguidores deita-se e aguarda o fim.

(Esperando o furacão. In: SANT‘ANNA, A. R. de. Coleção melhores Crônicas, p.105).

Em (4), convocamos, como em (2), uma instância pressuposta erigida pelo texto cujo perfil intelectual seja, digamos, um pouco mais refinado. O interlocutor é, por um lado, bastante ―poupado‖, já que lhe é fornecido um detalhamento da trajetória da personagem de Ernest Hemingway: Francis Macomber, em A vida curta e feliz de Francis Macomber. Em contrapartida, trata-se de uma via de acesso menos geral que a de (4), por exemplo, que exige de nosso conhecimento de mundo algo da ordem do prosaico; aquela via, só alguns conseguem trilhar.

Reconhecemos que, a exemplo do que pode acontecer com o texto de (4), determinado co-enunciador não alcançar o referente que está condensado no dêitico memorial, mesmo que o texto ofereça pistas supostamente suficientes para sua (re)ativação dentro do conhecimento enciclopédico do leitor, não anula a marcação promovida, precisamente pelo demonstrativo ―aquela‖, no fio discursivo; o percurso inconcluso da busca pelo referente não-dito não descaracteriza, em absoluto, o fenômeno propriamente dito, de vez que o fato de estar textualmente - por meio do dêitico memorial - materializado garante sua autonomia, independentemente de condições contingenciais.

Sustentamos que o uso que se faz do dêitico memorial em (4) configura um modo de marcar de modo observável um fato de heterogeneidade. O demonstrativo, no interior do contexto em que é colocado, condensa o referente não-dito em sua estrutura, referente este que, necessariamente, está condicionado à memória cultural do outro. De modo pontual, portanto, localizamos a opacificação de determinada porção textual, o que significa postular que estamos diante de uma sequência em que o outro se mostra na materialidade linguística por meio do demonstrativo, o qual passa a assumir, também, a função de elemento responsável pela mostração marcativa do atravessamento pontual do outro no fio do texto.

Teríamos, considerando a classificação de Piègay-Gros, um caso de intertextualidade por co-presença: a referência, que, sabemos, é tratada pela autora como uma modalidade explícita no quadro das intertextualidades. Admitindo-se tal explicitude, admite-se, outrossim, que temos como apontar, num ponto específico da materialidade textual, a irrupção do estrangeiro, responsável pelo comprometimento da transparência do dizer, o que, como queremos, consubstancia um procedimento marcativo que se mostra linguisticamente, no caso específico de (4), precisamente por meio do dêitico memorial ―aquele‖.

O procedimento marcativo que se efetiva por meio de dêitico memorial se repete, respeitadas as nuances de ―seus leitores-modelo‖, com os demais textos. Vemos o enunciador se apoiando em demonstrativos de terceira pessoa para resgatar, da memória do interlocutor, a informação de base responsável por engatilhar as inferências. Para nós, está aí a presença do atravessamento tangível, portanto marcado, do outro em textos que sejam construídos se utilizando de procedimentos dessa ordem.

(5) Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama. Reparem, estou dizendo depois que amam. Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do amor. [...] Quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera sagrada, cuja descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram. Uma aura de mistério as envolve [...]. (Misteriosos gozos. In: SANT‘ANNA, A.R de.

Coleção melhores Crônicas, p. 49).

O exemplo acima, em que o substantivo ―atmosfera‖ vem antecedido pelo demonstrativo ―essa‖, é outro caso em que se evidencia a cumplicidade suposta entre enunciador e co-enunciador no que respeita ao referente não mencionado no texto, mas cuja localização semântica específica é linguisticamente orientada.

Não há nada de eventual na atualização do demonstrativo em determinado momento do texto. Muito pelo contrário, o fato de figurar em dada sequência textual evidencia que há, conscientemente, a aposta no conhecimento de mundo do co-enunciador. Supõe-se, então, que ―a atmosfera‖ mencionada é de conhecimento daquele com quem o enunciador negocia o sentido do texto, por isso a opção por tal construção.

O discurso está pautado, com efeito, nas experiências comuns aos interlocutores, raciocínio respaldado pela concisão da expressão ―essa atmosfera‖, cuja precisão semântica, notadamente, não aparece, de forma que se possa delimitar, no texto; o que aparece, isso sim, é uma ruptura promovida pelo dêitico ―esse‖, que indica a opacificação daquele ponto específico do texto, o que torna evidente, para nós, que há aí um fato concreto de heterogeneidade mostrada-marcada.

O elemento mostrativo-marcativo, representado linguisticamente pelo demonstrativo ―esse‖ ancora, na materialidade linguística, uma relação necessária entre o que está sendo dito e o referente que deve ser buscado na memória do outro, daquele com quem se está negociando o sentido. Temos, em ocorrências dessa natureza, o outro cuja representação se faz enxergar pelo apelo ao conhecimento partilhado, enciclopédico, previsto num ponto específico, observável, do texto.

(6) A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é uma canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs. A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem de dentro e dos olhos nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. (A mulher Madura. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p. 18). Em (6), mais uma ocorrência de mostração-marcação por meio de dêitico memorial é demonstrada, com base no que vimos reivindicando. Temos uma expressão que convoca diretamente o co-enunciador a buscar o referente não-dito, mas que, a partir da atmosfera construída pelo texto, tem plenas condições de ser reconstruído. Note-se que a expressão ―essa irradiação‖ é apresentada de forma que seu referente, embora não constando da materialidade do texto, parece já ser da ordem do cognoscível; a estrutura sintática foi elaborada baseada na certeza pressuposta de que o co-enunciador, no ato da atualização de sentido, alcançará precisamente a rede semântica deflagrada pelo demonstrativo ―essa‖.

No momento da (re)ativação do referente pretendido, que, linguisticamente, concentra- se no modo como o SN ―essa irradiação‖ está posto no texto, a irrupção observável do alheio no fio textual parece-nos bastante evidente, na medida em que coloca, num ponto específico do dizer, um elemento cujo referente deve ser encontrado no conhecimento partilhado do outro. A emergência do heterogêneo, então, manifesta-se concretamente, fato que caracteriza a mostração de uma heterogeneidade que se nos apresenta marcadamente por meio de dêitico memorial.

(7) [...] Esse cheiro... diz ele. Realmente quem pode com esse cheiro nauseante? A neve foi malfeita, não se faz

Neve como em filmes e gravuras. E me dói a cabeça, diz alguém. E a minha também, e o mal-estar

Me invade o corpo. Desculpem se vomito À vista de pessoas tão distintas [...].

(Num planeta enfermo. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas sombras, p.8- 10).

Em (7), destacamos o SN ―esse cheiro‖ para continuar defendendo que expressões desse tipo, formadas por demonstrativo + substantivo e sem referente textual expresso, são explicitamente marcadas; trata-se de casos de heterogeneidade mostrada-marcada na medida em que aquele que se utiliza de expedientes dessa natureza conta que o conhecimento do outro - aquele para quem fala – alcance o referente pretendido; procedendo dessa maneira, está marcando, por meio de um dêitico memorial, dado segmento do texto. A explicitude

mostrativo-marcativa em favor da qual advogamos se justifica exatamente pela utilização desse dêitico memorial. Se o enunciador prefere atualizar ―esse cheiro‖ em lugar de predicar o ―cheiro‖ a que está se referindo, é porque entende que seu leitor-modelo, entre todos os possíveis ―cheiros‖ que conhece, selecionará, a partir do contexto enunciativo em que se dá a interlocução, o que reúne os semas que quer o enunciador.

(8) Falta alguma coisa no Brasil depois da noite de sexta-feira. Falta aquele homem no escritório A tirar da máquina elétrica O destino dos seres,

A explicação antiga da terra. Falta uma tristeza de menino bom Caminhando entre adultos

Na esperança da justiça Que tarda – como tarda! A clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,

Aquela ternura contida, óleo

A derramar-se lentamente. Falta o casal passeando no trigal. Falta um solo de clarineta.

(A falta de Érico Veríssimo. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas sombras, p. 39).

O ―homem‖, o ―jeito‖ e a ―ternura‖ de que fala o exemplo (8), como se pode observar, não traz, no texto, quaisquer referentes pontuais nos quais possa se apoiar o co-enunciador. O que temos, nesse caso, é uma série de expressões marcadas pelo demonstrativo aquele(a), de tal feita que corrobora o que vimos reivindicando: demonstrativos que funcionam como dêiticos de memória têm potencial mostrativo-marcativo. Esse potencial é, também, provido de explicitude, quando lhe é conferido o estatuto de elemento que, efetivamente, ativa o referente pretendido na memória do co-enunciador.

Se, nos termos de Authier-Revuz (1991), no heterogêneo do fio ―há o heterogêneo manifesto, sobre o fio, produzindo nele rupturas observáveis‖ (p. 179), podemos confirmar o fato de heterogeneidade presente em construções do tipo das presentes em (8): a irrupção de um elemento que deflagra, em sendo atualizado em dado contexto enunciativo, um referente específico. Ocorre que a tal ruptura não carrega uma marcação formal ―exterior‖ ao termo marcado, fator que a diferencia, mas não desautoriza seu estatuto marcativo, do que a autora coloca entre as formas marcadas de mostração da irrupção do outro no fio do discurso.

Assim, o demonstrativo presente no SN ―aquele homem‖ engatilha, na memória do co- enunciador, um referente específico, supostamente conhecido; caso contrário, em lugar da utilização do demonstrativo ―aquele‖, o recurso usado para que determinado referente fosse identificado teria sido diferente. A mesma lógica de raciocínio dá-se quando da utilização de ―aquele jeito‖ e ―aquela ternura‖. A opção feita pela construção com o demonstrativo é, a nosso ver, bastante sintomática, no sentido de enxergarmos uma marcação intencional, portanto consciente, por parte do enunciador. ―Jeito‖ e ―ternura‖ poderiam ter sido descritos no corpo do texto para que sua precisão semântica fosse assegurada; ou, talvez, marcados por aspas, o que indicaria que um sentido específico para aqueles SN‘s teria de ser buscado algures. Fato é que recurso algum, consoante os recursos marcativos propostos pela literatura da área do texto, foi utilizado. Para nós, o fato mesmo de os demonstrativos ―aquele‖ / ―aquela‖ acompanharem os substantivos ―jeito‖ e ―ternura‖ em dado contexto enunciativo, inaugura outra possibilidade mostrativo-marcativa: aquela que, a partir de um dêitico de memória, sinaliza ao co-enunciador que dado referente deve ser buscado em seu conhecimento de mundo, para que o sentido pretendido pelo enunciador seja atualizado.

Aliada ao uso dos demonstrativos, vemos que a atmosfera nostálgica a partir da qual se constrói o texto fortalece as expressões que queremos marcadas. Uma série de remissões indiretas que remonta a um conjunto de práticas típicas de um certo momento é constantemente convocada (―Falta uma tristeza de menino bom‖, ―Falta um boné‖, ―Falta um solo de clarineta‖, Falta o casal passeando no trigal‖), de modo a reforçar o lugar onde, na memória – que não necessariamente deve ser episódica - do co-enunciador, os referentes de ―jeito‖ e de ―ternura‖ têm de ser buscados.

(9) E chega o momento de olhar para o amigo devagar, bem nos olhos

e sorrir para ele, sem dizer

nenhum desses vanilóquios de todo dia. Dizemos alguma coisa para a fonte? Alguma coisa para o ar?

Chega o momento de sentir o amigo em estado de natureza, e toda a limpidez

e toda a transparência da alma se projeta

no que parece um vulto e é uma essência. [...].

(II / Alceu na safira dos oitent‘anos. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas

No último exemplo desse item, o destaque ao SN ―esses vanilóquios‖ soma argumentos em favor de nosso desiderato maior neste trabalho: reconhecer, entre outros, os dêiticos de memória como expediente mostrativo-marcativo eficaz.

A pressuposição de que o co-enunciador selecionará o(s) referente(s) necessário(s) para a atualização de sentido prevista pelo enunciador, que opta pela construção do SN (esses [demonstrativo] + vanilóquios [substantivo]), apresenta-se como procedente, na medida em que entendemos o dêitico de memória esse como elemento deflagrador da marcação operada nesse segmento do texto; compreendido desse modo pelo co-enunciador, tal segmento será processado já com a função de ativar o(s) referente(s) correspondente(s) ao contexto em que se dá a interlocução.

Assim, se for verdade que ―as formas de heterogeneidade mostrada se inscrevem, como um subconjunto formalmente caracterizável, no conjunto muito mais amplo daquilo que se pode formalmente descrever como fato de ruptura sobre o fio enunciativo‖ (AUTHIER- REVUZ, 1991, p.174), nossa argumentação está sendo construída com vistas a garantir a inclusão, entre tal ―conjunto formalmente caracterizável‖, dos dêiticos memoriais como modo lícito de marcar a conversão local de um desvio de não-um, que atravessa pontualmente a enunciação.

No documento marcada e referenciação (páginas 83-91)

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