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Intertextualidade por alusão e Anáfora indireta

No documento marcada e referenciação (páginas 97-111)

CAPÍTULO V: ANÁLISE

5.2 Análise

5.2.5 Intertextualidade por alusão e Anáfora indireta

Alguns procedimentos intertextuais podem funcionar como mecanismo de marcação do outro no fio discursivo. Elegemos o fenômeno intertextual que se manifesta por meio da alusão para discutir nossa proposta.

Diferentemente do que pensam Authier-Revuz e Piègay-Gros, saímos em defesa da intertextualidade, pelo menos a stricto sensu, notadamente como via de marcação da irrupção do outro na materialidade linguística, sobretudo naquela que se dá a partir de procedimentos alusivos. Vejamos o que ocorre com os textos abaixo relacionados:

(17) O jogador é um poeta. E como um poeta um fingidor. E joga tão perfeitamente que nos faz pensar que é poesia o que é jogo simplesmente. (O jogador e sua bola. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p.78).

No primeiro caso desse item, (17), temos um processo intertextual cuja fonte alude, notadamente, ao poema de Fernando Pessoa que se segue:

(17.1) Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

Várias pistas remetem o interlocutor de (17) ao texto fonte, entre as quais destacamos: a manutenção prosódica de (17) em relação a (17.1); a repetição nada mimética de algumas

palavras de (17.1): ―fingidor‖, ―completamente‖; a parecença entre as estruturas sintagmáticas ―joga tão perfeitamente‖ e ―Finge tão completamente‖; e a conversão do sujeito de ―o poeta é um fingidor‖ em predicativo de ―o jogador é um poeta‖. Aliadas a essas pistas, estamos falando de um texto clássico da literatura mundial, o que favorece, e muito, a tentativa de se estabelecer conexão com ele. Mesmo se o texto fonte não for acionado no processo de construção do sentido do texto, isso não descaracteriza o fenômeno intertextual que ali se manifesta, acena para o leitor, sinaliza textualmente para ele.

(18) O patinho agora é gay

Cresce nos Estados Unidos a publicação de livros infantis com personagens homossexuais.

Era uma vez um príncipe que não gostava de princesas, uma menina que tinha duas mães, um patinho que não era feio, mas era diferente dos outros. São, todos, personagens de livrinhos para criança que, lado a lado, com Branca de Neve e o Dinossauro Barney, freqüentam as prateleiras infantis das livrarias e bibliotecas americanas – só que com temática nitidamente pró-homossexual. (Revista Veja, 31/05/2006).

Em (18), temos um caso de intertextualidade por alusão com a presença de um dêitico temporal. Em primeiro lugar, diferentemente do texto do exemplo anterior, pede-se que o interlocutor busque em sua memória uma informação de caráter bem mais geral, como é o caso da história do Patinho Feio, o texto fonte em que do título do texto de (18) se ancora.

Naturalmente, não estamos desconsiderando as nuances culturais que ―determinam‖ o acessar de fontes desse tipo, que estamos considerando como sendo de natureza mais geral. Todavia, há de se mencionar que o texto em questão - o conto de fadas O patinho feio, cuja autoria é de Hans Christian Andersen -, pode ser entendido como tendo alcance mundial, vez que o poeta e escritor dinamarquês contribuiu tão maciçamente para a literatura infanto- juvenil que na data de seu nascimento, 2 de abril é, hoje, comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-Juvenil; além disso, a mais importante premiação internacional do gênero carrega seu nome.

Desta feita, partindo-se do pressuposto de que se trata, sim, de uma informação viva na memória dos sujeitos construtores de sentido, entendemos que, quando ―alterada‖ pelo dêitico ―agora‖, atualiza como que automaticamente o momento ―antes-do-agora‖. A atmosfera deste momento paira sobre o ―agora‖. Ora, se ―o patinho agora é gay‖ é porque não o era antes, e o

interlocutor sabe disso: constrói o sentido do texto exatamente em cima do conhecimento de que já dispõe; pensamos, enquanto leitores, que o procedimento deva ser mais ou menos o seguinte: o patinho (de Andersen) era feio, mas agora (com a ―modernização‖ do mundo contemporâneo) aquele mesmo patinho é gay. Defendemos, portanto, que procedimentos desse tipo promovem marcação de um outro ponto de vista, de um outro discurso, na materialidade linguística, sem que, para isso, tenha de haver necessariamente aspeamento ou qualquer outro destaque formal que lhe seja ―exterior‖.

(19) A vida é bela, e me sinto como se tivesse ganho um Oscar (sic), mesmo sendo brasileiro. (Vivendo num cartão-postal. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas, p.133).

No exemplo acima, diferentemente do exemplo anterior, temos um caso de intertextualidade por alusão que divide as ―responsabilidades enunciativas‖ entre os rastros textualmente materializados na superfície linguística e as relações inferenciais que devem ser operadas pelo co-enunciador.

Selecionamos, propositadamente, um texto cuja referência está inscrita num momento sócio-histórico específico de um gênero semiótico também específico, diferentemente dos textos de (17) e (18), cujas fontes têm lugar numa memória de natureza (mais) universal, digamos.

Estamos diante de uma ocorrência de alusão ao filme italiano A vida é bela, comédia dramática lançada em 1997 e que, concorrendo com o brasileiro Central do Brasil, foi vencedor do óscar de melhor filme estrangeiro, no ano seguinte. Note-se que não há referência direta ao filme propriamente dito, mas algumas expressões referenciais ancoram essa alusão, favorecendo a identificação do intertexto por meio de anáforas indiretas, quais sejam: ―A vida é bela‖, ―Oscar‖ e ―mesmo sendo brasileiro‖. Como citamos em outro momento deste trabalho, sabemos que o procedimento alusivo ―solicita diferentemente a memória e a inteligência do leitor e não quebra a continuidade do texto‖ (PIÈGAY-GROS, p.52). Em (19), o trabalho cognitivo do co-enunciador é relativamente simples se conhecer o trajeto por que passou o filme até chegar ao agraciamento com o óscar. Isso porque o fenômeno alusivo é utilizado nesse contexto de modo irônico, intenção que se apreende pela expressão ―mesmo sendo brasileiro‖. Trata-se de um conhecimento de cunho bastante específico, se compararmos à sedimentação cultural da história do Patinho Feio ou ao conhecimento do mais clássico poema de Pessoa. O fato de se tratar de um episódio bem particular no interior do gênero cinematográfico não torna (19) diferente de uma alusão feita

ao mais clássicos dos textos, se consideramos o fenômeno propriamente dito, concretamente textualizado – fator que, para nós, configura um dado suficiente para que seja considerado como estando explicitamente marcado. A diferença consistirá no acesso mais ou menos ―facilitado‖ ao texto-fonte, o que, como já frisamos, respeita a um aspecto contingencial.

Já sabemos: a alusão não se manifesta por via nem literal nem explícita, mas por meio de uma espécie de referência por meios indiretos, sem se referir explicitamente ao que se pretende enfocar, mas fornecendo elementos textuais de apoio, de sugestão àquilo que se está referindo. São esses meios indiretos (expressões anafóricas indiretas materializadas no fio do discurso, como ―um Oscar‖) que queremos incluir entre os mecanismos de mostração de que dispõe o enunciador para marcar, conscientemente, seu texto, já que tal marcação é passível de reconhecimento num ponto ou, no caso da alusão, em pontos específicos do dizer.

Já mencionamos concordância quanto ao fenômeno de a alusão ultrapassar e muito os domínios da intertextualidade. Sugerimos, então, que, em se tratando comprovadamente de um caso uma ocorrência do procedimento alusivo a partir de evidências intertextuais, aceite- se que estamos diante de um caso de mostração-marcação de um fato de heterogeneidade que, pelo fato de se deixar entrever nas suturas textuais a irrupção factual do alheio, opacifica determinado(s) ponto(s) do dizer.

(20) Na verdade, o projeto Zico é tão óbvio como a defesa da luz elétrica e da água encanada, o que não significa que vá ser aprovado, ao contrário. Por ironia, as bancadas da oposição têm manifestado maior apoio que o dos partidos que apóiam o governo. Há até mesmo clubes e atletas que temem o projeto [...]. Apesar da assinatura do Presidente da República, o líder do partido, por exemplo, que vem a ser o presidente da Portuguesa de Desportos, articula um poderoso lobby ao lado das federações e da CBF, mesmo que isso lhe custe a suspeita de ter trocado o apoio a Zico pela convocação do menino Dener para a seleção brasileira [...]. Zico não é mais secretário. Em seu lugar está Bernard, que tem a nobre jornada de convencer as estrelas do Congresso a aproveitar este lançamento digno de Rei Pelé. (Adaptado de Kfouri. Veja, 29 de maio, 1991, p.110). Em (20), temos um texto imerso numa atmosfera de cunho desportista, que já começa a preparar o co-enunciador para as inferências que deverão ser efetuadas. Várias são as pistas textuais: ―Zico‖, ―atletas‖, ―CBF‖, ―o presidente da Portuguesa de Desportos‖, ―Rei Pelé‖; o texto, por meio das relações indiretas que sugere, vem acenando para o co-enunciador que lugar específico de seu conhecimento global está sendo solicitado; já começa a se deixar marcar. Identificamos, no entanto, a elaboração de um procedimento alusivo, por parte do enunciador, no último período do texto. A operação concentra-se nos elementos ―Bernard‖,

―jornada‖ e ―estrelas‖, a partir dos quais reconhecemos remissão implícita ao saque jornada nas estrelas, inaugurado por Bernard, uma das importantes âncoras das anáforas indiretas ―jornada‖ e ―estrelas‖. Percebemos a consciência com que é feita alusão pelo fato de o texto não tratar especificamente dos fundamentos do voleibol ou algo que o valha. O gesto do enunciador demonstra cumplicidade com o co-enunciador na medida em que prevê que haja certa medida de conhecimentos partilhado e/ou enciclopédico acerca do mundo esportivo que viabilize a integração semântica pretendida. Exatamente por haver essa previsão, os elementos ―Jornada‖ e ―Estrelas‖ não foram acompanhados de marcas tipográficas, como as aspas ou o itálico, por exemplo. A construção mesma do texto deixa o rastro da sugestão. O enunciador espera que a relação entre ―Bernard‖, ―jornada‖ e ―estrelas‖ seja feita, sem que seja necessária a referência direta a ―saque jornada nas estrelas‖; conta, dessa forma, com seu interlocutor para que seja acionado referente não-dito. O que temos, aqui, é um texto engenhosamente construído que supõe uma relação entre o que está sendo dito e um ―pensamento‖ já conhecido, mas não-dito.

No caso de o co-enunciador não ser o leitor previsto pelo ―texto‖, a construção global do sentido não fica comprometida; também a frustração do enunciador no que tange ao não- acionamento do referente implícito não deixa de subtrair elementos que enriqueceriam tal construção. Uma e outra postura interpretativa não anulam o fato textual do procedimento alusivo.

Sustentamos que construções desse jaez sejam elencadas entre as formas mostradas- marcadas que sinalizam a presença do alheio no fio discursivo, vez que, a partir de elementos textuais, é possível que o procedimento alusivo seja reconhecido. Reputamos a alusão por meio de anáforas indiretas, ou de introduções referenciais, como recurso mostrativo- marcativo de alteração na materialidade linguística, de vez que a entendemos como uma retomada implícita, elaborada a partir de uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, deve-se apelar à memória para encontrar o referente não-dito, mas textualmente sugerido. A heterogeneidade do fio, embora apenas sugerida, é tangível e não se deixa confundir com o que é constitutivamente atravessado pelo outro - aquele do dialogismo bakhtiniano.

CONCLUSÃO

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O lugar mais erógeno de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‗zonas erógenas‘; é a intermitência [...] que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-

desaparecimento‖ (Barthes)

O fazer deste trabalho concentrou-se, fundamentalmente, na discussão acerca do construto teórico da heterogeneidade enunciativa, cujas bases estão assentadas na distinção entre heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada, que, no interior da teoria, pode ser marcada ou não-marcada.

Nossa argumentação esteve todo o tempo pautada na problematização da lógica a partir da qual se taxionomiza a heterogeneidade do tipo mostrada, donde derivamos nossas considerações acerca de nosso objetivo maior, que é incluir entre os fatos marcados de heterogeneidade alguns processos de referenciação. Para nós, se há, no fio do discurso, a irrupção de uma alteração passível de flagrante pontual, localizada num ponto específico do discurso, há a implicação, o comprometimento de sua transparência, o que, fatalmente, promove a opacificação dizer. Quanto a isso, a mentora da teoria das heterogeneidades, ela mesma já nos diz. O que particularmente nos incomoda é o fato de se conceber que certa sequência textual pode ser descrita, ao mesmo tempo, como mostrada e não-marcada.

Pensamos que, se temos uma manifestação que se mostra na materialidade do discurso, essa mostração se dá por alguma via; sustentamos que essa via pela qual a mostração se faz legítima deixa marcas, as quais são as responsáveis factuais da efetivação do mostrado. Reside precisamente nesse ponto nossa discordância quanto ao que postula Authier-Revuz, para quem as marcas de alteração no fio discursivo só podem ser explicitadas se se fizerem materializar por meio de mecanismos prototípicos que desempenham essa função: verbo dicendi, dois-pontos e aspas, itálico, recuo de margem, redução da fonte etc.

Essa nossa perspectivação acerca da conceitualização de mecanismos de mostração/marcação do alheio no fio textual denuncia sob que prisma estabelecemos nossa investigação.

A trajetória de nossa pesquisa resumiu-se em dar consistência a nosso propósito maior: o de sugerir que, em se tratando de casos de heterogeneidade mostrada-marcada, outros mecanismos, além dos consensualmente aceitos na literatura (aspas, negrito, itálico, mudança de fonte etc), que tornam manifesta a mostração da presença do outro na materialidade linguística, sejam legitimamente considerados como portadores de potencial marcativo. A análise a que procedemos no último capítulo ilustrara alguns desses outros mecanismos defendidos como tendo potencial marcativo, todos eles respeitantes a processos de referenciação de natureza anafórica e/ou dêitica:

1. Dêitico memorial, por meio do qual o enunciador, linguisticamente, marca seu dizer baseado na pressuposição de que o referente não-dito será (re)ativado na memória do co-enunciador, que, a partir de seu conhecimento de mundo/enciclopédico, negocia a (re)construção semântica desse referente. Independentemente do sucesso da negociação, insistimos, trata-se de uma marca que, já materializada, não nulifica a marcação. A exemplo do que vimos nos textos (1) a (9), sustentamos que os usos de dêiticos de memória acumulam, também, a função de explicitar fatos de heterogeneidade no fio textual, o que promove a opacificação de um ponto específico do dizer, marcando-o, portanto.

2. Dêiticos espacial e temporal, tal como exemplificamos nos textos (10), (11) e (12), respondem, além de situar os interlocutores no âmbito espácio-temporal da enunciação, pela alternância de espaços enunciativos, movimento que marca, na materialidade linguística, a mudança de expediente enunciativo, que, necessariamente, conta com elementos pertencentes ao momento enunciativo do outro para a negociação de sentido.

O dêitico utilizado com esse fim chama para o texto o alheio num ponto específico da superfície textual, marcando-a.

Indicam, também, a ocorrência de discurso indireto livre, de intertextualidade, outras estratégias que, vimos, mostram uma alteração local no fio do discurso.

3. O discurso indireto livre, estratégia a partir da qual o enunciador, por meio de mudança do expediente desinencial, por exemplo, e, portanto, dêitico-pessoal, tal como demonstramos em (13), marca uma alternância de enunciações, fato que manifesta fato de heterogeneidade num ponto específico do dizer. A ruptura local no fio discursivo – demonstramos em (12) – pode, linguisticamente, mostrar-se por meio de elemento dêitico, o qual funciona de modo a provocar o ―aparecimento‖ da voz do outro no fio, marcando-a, pois.

4. Recategorização, fenômeno por meio do qual o falante de uma língua, em suas práticas linguísticas, quer adequar os referentes a seus propósitos comunicativos, remodelando-os, adicionando ou eliminando características num processo de reavaliação desse referente, movimento que flagra a instabilidade que lhe é inerente, constitui mecanismo marcativo.

Como vimos nos exemplos (14) a (16), o ato de recategorizar, pelo modo mesmo como é elaborado, assinala ou sugere um ponto de vista de um sujeito de consciência sobre o objeto de discurso, fato que o torna ―canalizador‖ de uma subjetividade que se deixa apreender exatamente pela maneira como se dá a transformação cognitiva do referente, conforme a manobra executada pelo enunciador.

Há, na essência desse ato, também, uma dimensão social, já que visa a atender ao propósito do falante, o qual negocia com o interlocutor, considerando-se o conhecimento partilhado entre ambos, que elementos devem vir explicitados/implicitados na superfície textual, o que deve ser enfatizado, qual a postura a ser assumida etc.

Assim, compreendendo esse fenômeno, sustentamos que o elemento recategorizador constante da materialidade linguística instaura claramente um fato de heterogeneidade no fio - fato que é localmente observável quando do ato mesmo da atualização do elemento recategorizador, procedimento marcativo que mostra alteração no fio, portanto.

5. Intertextualidade por alusão através de anáforas indiretas e de introduções referenciais, procedimento que se concebe, conceitualmente, pela implicitude do referente não-dito, traz, nas referências indiretas sob as quais o texto se constrói, as coordenadas de busca que levarão o co-enunciador ao referente pretendido, a exemplo do que vimos nos exemplos (17) a (20). São exatamente essas referências indiretas, com efeito, que materializam o fato de heterogeneidade e que marcam a alteração do dizer. A opacificação é promovida, linguisticamente, pelos elementos que constituem tais referências, as quais mostram concretamente a presença do alheio no fio do dizer. Mesmo porque, se não houvesse, ali, algum tipo de marca, o co-enunciador não alcançaria o intertexto - e o enunciador tem ciência disso.

Assim, vemos que as hipóteses em torno das quais estabelecemos nosso objetivo maior foram confirmadas, de modo a afirmar a pertinência de nosso estudo para a linguística que se ocupa do texto e, conseqüentemente, das instâncias que o compõem.

Face ao exposto, encerramos esta dissertação com uma última consideração quanto ao estatuto do que deve ser entendido como marcado. Julgamos, como Cavalcante28, ser mais apropriado falar em diferentes espécies de marca, em detrimento de se postular uma não- marcação. De modo análogo, seria mais adequado considerar variados graus de explicitude, evitando, assim, atribuir a marcação de explicitude apenas àquelas classicamente reconhecidas, como as que contêm verbo dicendi, dois-pontos e aspas, itálico, recuo de margem, redução da fonte etc. O emprego de expressões referenciais nos parece essencial para a elaboração de citações, referências e alusões, embora a literatura sobre o assunto mal faça menção a isso como possível assinalação de heterogeneidade mostrada-marcada. Em tempo: insistimos que o raciocínio a partir do qual sedimentamos nossa proposta nada tem a ver com um, digamos, behaviorismo analítico, haja vista a pressuposição de um leitor-modelo ser elemento essencial para a visualização das marcas aqui propostas: o fato mesmo de a marcação vir mostrada linguisticamente na superfície textual – modo pelo qual o fenômeno em si é apreendido - já resguarda estatuto marcativo dos processos referencias aqui apresentados de eventuais frustrações.

Elaboramos o organograma que se segue, de modo a ilustrar, finalisticamente, a proposta de nossa empresa:

28 Consideração feita em CAVALCANTE, M. M. Referenciação – sobre coisas ditas e não-ditas. São Paulo:

Contexto (livro inédito). Heterogeneidade Constitutiva Atravessamento intangível do o/Outro Heterogeneidade Enunciativa Heterogeneidade Mostrada-Marcada

(rupturas linguisticamente observáveis)

Aspas, negrito, itálico, verbos dicendi, discurso indireto livre, intertextualidade, processos referenciais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Então sou só eu que é vil e errôneo nessa terra? (Álvaro de Campos)

A partir da problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada, redescrevemos, acrescentando o que nos pareceu pertinente, um conjunto de marcas que transcendeu aquelas consagradas (negrito, mudança de fonte, aspas, discurso direto), como sendo formas de marcação da presença consciente do outro no fio discursivo.

Propusemos que, em vez de se falar em heterogeneidade mostrada marcada ou não- marcada, aceitemos que a heterogeneidade que mostra a descontinuidade do dizer pode ser linguisticamente explicitada por diferentes espécies de marcas, o que nos faz considerar variados graus de explicitude mostrativo-marcativa, evitando, com essa assunção, atribuir a marcação de explicitude apenas àquelas classicamente reconhecidas.

Limitamos-nos a ampliar o quadro dos fenômenos linguísticos que podem, legitimadamente, acumular a função marcativa. Isso abre caminho para elaboração de critérios para a construção de uma escala mostrativo-marcativa que, em detrimento da dicotomia mostrativa vigente de heterogeneidade mostrada/marcada vs. mostrada/não-marcada,

No documento marcada e referenciação (páginas 97-111)

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