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HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

JULIANNE LARENS LOPES FERNANDES

HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre.

Orientadora: Profª. Drª. Mônica

Magalhães Cavalcante

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Esta dissertação constitui parte dos requisitos necessários à obtenção do Grau de Mestre em Linguística, outorgado pela Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à disposição dos interessados na Biblioteca Central da referida Universidade.

A citação de qualquer trecho desta dissertação é permitida, desde que seja feita em conformidade com as normas da ética científica.

Julianne Larens Lopes Fernandes

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante / UFC (Orientadora)

Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza / UERN (1º Examinador)

Profa. Dra. Maria Margarete Fernandes de Sousa / UFC (2º Examinador)

Profa. Dra. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin / UFC (Suplente interna)

Prof. Dr. Francisco Alves Filho/ UFPI (Suplente externo)

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A meu Painho e a Juju, meus amores, pelo apoio incondicional sempre;

A Alcides, meu Marido Lindo, razão para tudo que faço,

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AGRADECIMENTOS

_________________________________________________

A meus pais, meus amores, Wilson e Júlia, irremediáveis incentivadores, pelo apoio incondicional que me dedicam sempre.

A meu pai, especialmente, por ter me mostrado que nem todos os ídolos têm os pés de barro: os dele são de carne e osso.

A meu marido, Alcides, meu amor, por ABSOLUTAMENTE tudo.

À minha irmã que tanto amo, Sue, minha melhor amiga, parceira de todas as horas, que, mesmo distante, está sempre perto.

A meu sobrinho, Pedro Ayrton, por me fazer a titia mais feliz do mundo!!!!!

A meu enteado Lucas, meu pinguinho de gente, anjinho mais querido por quem sou completamente apaixonada, por me fazer mais feliz.

Às AMIGAS Camile, Carol, Clarissa, Karine, Michelle e Samarkandra. Fundamentais. Admiráveis. Pelos porres, pelo incentivo, pela confiança, pela lealdade...

Aos colegas da turma de 2005, pelas aulas descontraídas e sempre produtivas, pelas discussões nada ontológicas depois das aulas, regadas (quase sempre) à cerveja, sempre com muuuuita alegria.

À minha queridíssima orientadora, professora Drª. Mônica Magalhães Cavalcante – para mim, Monikita -, pela confiança e incentivo dispensados a mim desde o período da graduação e por não me ter deixado, nos momentos de fraqueza, angústia e de extrema insatisfação, desistir da carreira acadêmica.

Ao professor Dr. José Américo Bezerra Saraiva, pelo apoio em todas as ―fases lingüísticas‖ por que

passei, pelas orientações e por ter me apresentado à Semiótica, disciplina basilar em minha formação.

Ao admirável e querido professor Dr. Fernando Pimentel o Fernandinho! - , pelo aprendizado constante e pelo auxílio nas traduções que constituíram este trabalho.

Às professoras Dras. Lívia Márcia Baptista e Margarete Fernandes, que vêm acompanhando meu trabalho desde a qualificação do projeto, pelas críticas sempre pertinentes, as quais me ajudaram na construção desta dissertação.

Ao professor Dr. Clemilton Lopes Pinheiro, por ter se colocado à disposição para ler este trabalho, com (severas) considerações, também sempre pertinentes e de grande valia para o amadurecimento desta dissertação.

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―Entre a intenção do autor e o propósito do intérprete, existe a intenção do texto‖

(Umberto Eco)

―Quero poder ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o

quanto é especial e importante pra mim, sem ter de me preocupar com terceiros... Sem correr o risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento. Quero, um dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão... que o amor existe, que vale a pena se doar às amizades e às pessoas, que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim... e que valeu a pena!!!‖

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RESUMO

_______________________________________________________________

Procedemos, a partir dos pressupostos da Lingüística da Enunciação, à problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada (marcada vs. não-marcada), proposto por Authier-Revuz (1982). Nossa proposta consiste em sugerir que o escopo das ocorrências dos fatos de heterogeneidade marcada seja flexibilizado, de modo a abarcar fenômenos de natureza (mais) cognitiva que evidenciam a presença do alheio na materialidade lingüística num ponto específico da cadeia do dizer, promovendo, destarte, uma articulação entre heterogeneidade mostrada/marcada e referenciação. Submetemos a um reexame, acrescentando o que nos pareceu pertinente, um conjunto de marcas que não apenas as consagradas (como, por exemplo, negrito, mudança de fonte, aspas, discurso direto) na tentativa de lhes conferir um estatuto de marcadores da presença consciente do outro no fio discursivo, considerando a noção de leitor-modelo sugerida por Eco (1979). Para tanto, elegemos como categorias principais de análise os processos referenciais anafóricos e dêiticos, o discurso indireto livre e a intertextualidade por alusão. Nossos resultados legitimaram nossa proposta e confirmaram o potencial marcativo de tais categorias.

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ABSTRACT

___________________________________________________________________________

We proceed to the problematizationof the frame of heterogeneities of the displayed type (marked versus not

marked) as proposed by Authier-Revuz (1982) from the assumptions of the Linguistics of Enunciation. Our proposal consists in suggesting that the scope of the occurrences of facts of marked heterogeneity be widened in order that it includes phenomena of a (more) cognitive nature that make evident the presence of the other in the linguistic materialization in a specific point of the chain of the saying and, besides, articulate the displayed marked heterogeneity and the referentiation. We reexamine, appending whatever seems to us pertinent, a set of marks, besides those already established (e.g., bold face, font changing, inverted commas, direct speech) in an attempt to confer them the statute of markers of the conscious presence of the other in the discursive thread, considering the notion of model reader suggested by Eco (1979). To achieve this goal, we choose for main categories of analysis the deictic and anaphoric referential processes, the free indirect speech and the intertextuality by allusion. Our results legitimize our proposal and confirms the marking potential of such categories.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 11

CAPÍTULO I: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS... 17

1.1 Delimitação do campo: a linguistica da enunciação... 17

1.1.2 a) O lugar do sujeito na Linguística da Enunciação... 18

1.2 A Enunciação... 19

1.2.1 Bakhtin: o precursor... 19

1.2.2 Benveniste: ―aexceção francesa‖... 22

1.2.2.1 As concepções de língua e de linguagem... 22

1.2.2.2 A instauração de subjetividade... 24

1.3 Authier-Revuz: noção de heterogeneidade... 26

1.4 Umberto Eco: noção de leitor-modelo... 30

CAPÍTULO II: HIPÓTESES E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS... 33 2.1 Delimitação do universo... 33

2.2 Questões de pesquisa... 34

2.3 Procedimentos metodológicos... 35

2.3.1 Etapas do trabalho... 35

CAPÍTULO III: HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA... 38

3.1 Balizagem teórica: filiação... 38

3.1.1 Benveniste: os estudos enunciativos... 38

3.1.2 Rey-Debove: conotação autonímica... 39

3.2 Heterogeneidade teórica: a convocação de exteriores... 41

3.2.1 Bakhtin: o dialogismo... 43

3.2.2 Psicanálise freudo-lacaniana: o Outro... 43

3.2.3 Pêcheux: a noção de interdiscurso... 46

3.3 Heterogeneidade enunciativa: modalidades... 51

3.3.1 Heterogeneidade constitutiva... 52

3.3.2 Heterogeneidade mostrada... 53

3.4 Heterogeneidade mostrada, intertextualidade stricto sensu e marcação: uma implicação... 55 3.4.1 O conceito fundador de Kristeva... 56

3.4.2 A taxionomia das transtextualidades de Genette... 58

3.4.3 As relações de co-presença e de derivação de Piégay-Gros... 59

3.4.4 A abrangência conceitual da intertextualidade em Maingueneau... 64

CAPÍTULO IV: REFERENCIAÇÃO... 67

4.1 Conceito e processos... 67

4.1.1 Introdução referencial... 70

4.1.2 Continuidades referenciais... 71

4.1.2.1 Anáfora direta... 72

4.1.2.1.1 Recategorização... 73

4.1.2.2 Anáfora indireta... 76

4.1.2.3 Anáfora encapsuladora com dêitico... 78

4.2 Heterogeneidade não-marcada e leitor-modelo... 79

(10)

5.1 Considerações Preliminares... 81

5.2 Análise... 83

5.2.1 Dêiticos memoriais... 83

5.2.2 Dêiticos espaciais e temporais... 91

5.2.3 O Discurso indireto livre... 94

5.2.4 Recategorização... 95

5.2.5 Intertextualidade por alusão e Anáfora indireta... 97

CONCLUSÃO... 102

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 106

(11)

INTRODUÇÃO

____________________________________________________________

O que será que me dá? Que me bole por dentro, será que me dá? Que brota à flor da pele, será que me dá? E que me aperta o peito e me faz confessar O que não tem mais jeito de dissimular [...] O que será que será? Que é feito uma aguardente que não sacia Que é feito estar doente de uma folia Que nem dez mandamentos vão conciliar Nem todos os unguentos vão aliviar [...] E uma aflição medonha me faz suplicar O que não tem medida, nem nunca terá O que não tem descanso, nem nunca terá

O que não tem cansaço, nem nunca terá O que não tem limite

O que não tem juízo. (Chico Buarque)

Esta pesquisa tem o propósito maior de reconsiderar o conceito e a caracterização do fenômeno descrito por Authier-Revuz (1982) como heterogeneidade mostrada e sua bipartição em marcada e não-marcada. A preocupação central dessa nossa análise é submeter a um reexame mais criterioso casos particulares de heterogeneidade, tal como ilustrados por Authier-Revuz (1982,1990).

O estudo que estamos empreendendo justifica-se porque a literatura sobre o assunto não discute os critérios utilizados para se definir algo como sendo da ordem do marcado ou do não-marcado, nos termos de Authier-Revuz. Parte-se do já estabelecido, ou seja, das marcações formais já instituídas que identificam irrupção do outro no fio discursivo, o que, para nós, é bastante inquietante.

(12)

b) Propor formas de marcação de heterogeneidade mostrada marcada, que não apenas as consagradas e aceitas consensualmente pela literatura;

c) Incluir processos referenciais de natureza anafórica e / ou dêitica entre os casos marcados da modalidade mostrada de heterogeneidade;

d) Estabelecer relações entre heterogeneidade mostrada do tipo marcada, intertextualidade por alusão e processos referenciais;

e) Reexaminar os casos ditos não-marcados de heterogeneidade mostrada, questionando a classificação da heterogeneidade mostrada (marcada vs. não-marcada).

No capítulo primeiro desta dissertação, situamos a vertente linguística de que nosso trabalho é tributário, a saber, o arcabouço teórico dos Estudos da Enunciação.

Em se tomando os estudos da enunciação como base epistemológica, estuda-se, em última instância, a relação que um texto, entendido em um sentido mais amplo, estabelece com seu leitor. Estudos dessa natureza envolvem, num primeiro plano, a proposta de leitura que o próprio texto sugere, por si só, ao seu leitor. Incluem, num segundo plano, a relação interativa que se dá, por meio do texto, entre o enunciador e o co-enunciador/leitor. Em

termos mais técnicos, a enunciação pode ser definida como uma ―colocação em discurso‖ de

estruturas semióticas virtuais.

No interior desses estudos que tomam a enunciação por objeto, seguiremos os pressupostos do que Flores (2001) chama de Linguística da Enunciação. O autor apresenta uma proposta epistemológica de abordagem desse campo de estudos que permite falar em teorias da enunciação, que estariam, por seu turno, reunidas na Linguística da Enunciação.

A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como sendo da ordem do irrepetível - já que, dentro desse objeto, se inclui o sujeito -, porque, sempre que a língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço e pessoa singulares.

Para Flores (2005), a Linguística da Enunciação elege para si um objeto multifacetado que obedece a restrições teórico-metodológicas impostas pelas teorias da enunciação, o que não constitui uma dispersão, já que há um elemento unificador que vê a língua como tendo ordem própria, mas que prevê um sujeito que a atualize a cada instância de uso.

(13)

capítulo. O primeiro é Bakhtin – indiscutivelmente, o precursor –, para quem a enunciação foi entendida como a unidade real da cadeia verbal que está em constante evolução, já que as relações sociais assim estão; e como um todo que se presentifica no discurso como atividade ininterrupta de linguagem, que atende aos objetivos sociais da comunicação. O outro é Benveniste, o primeiro a produzir uma teoria da enunciação, com seu célebre entendimento

respeitante a esta instância: ―a enunciação é a colocação em funcionamento da língua por um

ato individual de utilização‖ (BENVENISTE, 1974, p.82), incluindo aí, portanto, a

subjetividade.

Já aqui, começamos a enxertar a noção de heterogeneidade instalada por Authier-Revuz (1982) no âmbito dos estudos enunciativos. Para ela, a heterogeneidade é vista e detectada em duas dimensões: a constitutiva e a marcada.

Ainda neste capítulo, esboçaremos o que diz Umberto Eco acerca de certa instância pressuposta que emerge de todo e qualquer texto: o leitor-modelo. Isso porque as considerações que tece sobre essa instância apóiam nosso posicionamento frente a uma das questões que estamos defendendo: se há manifestação textual de determinado fenômeno que marca a voz do outro no fio discursivo, é porque há marcação; se o co-enunciador / leitor não

mantiver com o texto (ou com parte dele) certa ―intimidade‖ - não sendo, portanto, seu leitor-modelo -, tal fenômeno não deixará de estar ali, ―apenas‖ será ignorado, o que,

necessariamente, não prejudica a construção global do sentido daquele texto.

Os princípios metodológicos por que se pauta nossa análise vêm explicitados no capítulo II. Especificamos e detalhamos cada uma das seis etapas – recensão bibliográfica, descrição das categorias de análise, identificação dos fatos de heterogeneidade nos processos referenciais e na intertextualidade por alusão, delimitação e a quantificação do exemplário de textos (não trabalhamos exatamente com um corpus, senão apenas com um exemplário) –

tudo por que passamos para chegarmos ao resultado que justifica nossos esforços, a saber, a articulação entre heterogeneidade mostrada/marcada e processos referenciais anafóricos e dêiticos.

(14)

Na seção destinada especificamente à tese de Authier-Revuz, demos destaque àquilo que nos interessa mais de perto: a esquematização, proposta pela autora, da heterogeneidade enunciativa, sobretudo no que tange às formas de mostração / marcação dessa heterogeneidade.

Veremos que Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da heterogeneidade. A primeira, constitutiva, remete à presença do Outro diluída no discurso, não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro, condição mesma do discurso. A segunda, a heterogeneidade mostrada, marca o discurso de modo a criar um mecanismo de distanciamento entre o sujeito e aquilo que ele diz. Esta última forma de heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando marcada, é da ordem da enunciação, visível na materialidade linguística, como, por exemplo, o discurso direto, as palavras entre aspas, o uso de itálico, a citação. Se não-marcada, então, é da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a alusão.

Nossa pesquisa está centrada no heterogêneo manifesto, ou seja, nas formas de mostração da presença do outro no discurso. Nosso questionamento incide sobre a forma dita não-marcada da heterogeneidade mostrada. O fato de mecanismos de inscrição do outro no enunciado, que, por não serem formalmente flagrantes, terem de ser entendidos como formas não-marcadas, embora mostradas, da presença da alteridade em determinado discurso, ocupará o foco de nossa discussão.

Ainda neste capítulo, reunimos algumas considerações acerca de processos intertextuais, vez que este procedimento constará de nossa argumentação em favor de uma flexibilidade em se tratando da mostração do alheio no heterogêneo do fio.

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dará por vias não prototípicas de acesso à maneira pela qual o sujeito opta por marcar a

―alteração‖ em seu discurso. Traremos à baila, também, a intertextualidade stricto sensu por

alusão e o discurso indireto, fenômenos que estamos entendendo como recursos de marcação do heterogêneo.

No capítulo destinado à análise, quinto e último, reivindicamos que os procedimentos retrocitados apresentam, também, potencial marcativo. Assim sendo, não se justificaria, no quadro classificatório de Authier-Revuz, a chamada heterogeneidade mostrada não-marcada.

A partir da problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada (marcada vs. não-marcada), redescrevemos (acrescentando o que nos pareceu pertinente) um

conjunto de marcas, que não apenas as consagradas (negrito, mudança de fonte, aspas, discurso direto), como sendo formas de marcação da presença consciente do outro no fio discursivo.

O ponto alto de nosso trabalho, concentrado neste último capítulo, dar-se-á quando de nossa proposta para que seja alargado o horizonte de possibilidades de mostração-marcação da irrupção do alheio na materialidade linguística, já que colocamos em questão que outras formas de marcação têm sua legitimidade calcadas na inter-ação entre os interlocutores. Isso porque nossa argumentação se fundamenta na crença de que há um contrato fiduciário interferindo no discurso dos sujeitos, consoante o qual outros procedimentos, que não apenas aqueles mais tipograficamente visíveis, são acionados quando se quer, conscientemente, sinalizar a presença do heterogêneo no fio discursivo: procedimentos de natureza referencial, por exemplo.

Importante, desde já, é esclarecer que não tomamos como pretensão verificar, em nossas análises, a presença do Outro – o inconsciente – que atua no fio discursivo, marcando-o. Limitamo-nos a reconhecer como inteiramente legítimas as marcações promovidas por Ele, vez que assumimos, em consonância com Authier-Revuz, a concepção da fissura radical do sujeito: de sua clivagem, portanto. Conquanto esta instância faça parte do aparato teórico de cujo escopo estamos nos servindo, pensamos que isso só seria possível, por coerência com os pressupostos psicanalíticos freudo-lacanianos, se fosse uma análise do próprio indivíduo, realizada por um especialista, no caso, o psicanalista.

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Nas considerações finais, lançamos a sugestão de um estudo que, tomando por base a crença em nossos resultados, se proponha elaborar critérios a partir dos quais se construa uma escala mostrativo-marcativa que, em detrimento da dicotomia mostrativa vigente de heterogeneidade mostrada/marcada vs. mostrada/não-marcada, contemple desde o discurso

mais formalmente marcado e, portanto, (mais) explicitamente marcado - já que carregam

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CAPÍTULO I

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

_____________________________________________________________________________________

Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. (Caetano Veloso)

1.1 Delimitação do campo: a linguística da enunciação

O arcabouço teórico que embasará nossa pesquisa se inscreve na vertente linguística dos estudos da enunciação. Esse campo trata, em última instância, da relação que um texto, entendido em um sentido mais amplo, estabelece com seu leitor. Envolve, num primeiro plano, a proposta de leitura que o próprio texto (linguístico e não-linguístico) sugere, por si só, ao seu leitor (observador ou espectador). Inclui, num segundo plano, a relação comunicativa que se dá, por meio do texto, entre o seu autor e o leitor. Em termos mais

técnicos, a enunciação pode ser definida como uma ―colocação em discurso‖ de estruturas

semióticas virtuais.

Em oposição às várias vertentes da Linguística que se servem de teorias da enunciação, Flores (2001) postula ser possível individuar, dentre os vários estudos que se pretendem enunciativos, uma dita Linguística da Enunciação. O autor apresenta uma proposta epistemológica de abordagem desse campo de estudos que permite falar em teorias da enunciação, que estariam, por seu turno, reunidas na Linguística da Enunciação. Destarte, haveria traços comuns entre as abordagens enunciativas, de modo que se poderia pensar em um objeto próprio da Linguística, o que não significa propor a hierarquização de teorias, mas instituir um ponto de vista segundo o qual, respeitadas as diferenças, é possível vislumbrar uma unidade em meio à diversidade1.

A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como sendo da ordem do irrepetível - já que, dentro desse objeto, inclui-se o sujeito -, porque, sempre que a língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço e pessoa singulares.

1 Cf. Princípios para a definição do objeto da Linguística da Enunciação. In: Estudos sobre a enunciação,

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Em Flores (2001), vemos a defesa de um objeto da Linguística da Enunciação que, embora vinculado à dicotomia saussuriana langue / parole, não deriva nem de sua negação,

nem de sua afirmação absolutas. Para o autor, os fenômenos estudados nas teorias da enunciação pertencem à língua, mas não se encerram nela; pertencem à fala na medida em que só nela e por ela têm existência e questionam a existência de ambas, já que emanam das duas. Uma definição que julgamos bastante pertinente encontra-se em Lahud (1979, p. 98)

[...] A Linguística da Enunciação visa não somente a um fenômeno

que não pertence à ‗fala‘, mas justamente a um fenômeno cuja

existência compromete a própria distinção língua-fala em algumas de suas postulações. Nem da ordem da língua, nem da ordem da fala [...], mas da própria linguagem enquanto atividade regrada (portanto coletiva) linguisticamente: eis o que é revelado sobre a natureza dessa linguística quando se diz que ela não estuda nem os componentes da matéria-linguagem que fazem parte do objeto de outras ciências não propriamente linguísticas (Fisiologia, Física, Psicologia etc.), nem as variações que sofre o sentido dos signos do sistema quando assumido pelo locutor num ato individual de produção, mas a enunciação enquanto centro necessário de referência do próprio sentido de certos signos da língua.

Para Flores (2005), a Linguística da Enunciação elege para si um objeto multifacetado que obedece a restrições teórico-metodológicas impostas pelas teorias da enunciação, o que

não constitui uma dispersão, já que há um elemento unificador: ―a crença na língua como ordem própria que precisa ser atualizada pelo sujeito a cada instância de uso‖. (Cf. p. 106).

No interior desse campo teórico – o dos Estudos da Enunciação -, enquadraremos nossa pesquisa nos estudos enunciativos empreendidos por Jacqueline Authier-Revuz, a partir da década de 80. A autora situa-se nos quadros das teorias enunciativas de base saussuriana e da metalinguagem, tal como empreendida por Rey-Debove (1978). No campo da enunciação, filia-se a Bally, Benveniste e Culioli.

Não podemos falar da instância enunciativa sem fazer alguns detalhamentos acerca daquele que a enuncia. A seção seguinte foi inaugurada para fazermos algumas especificações respeitantes ao sujeito da linguística da enunciação.

1.1.2 O lugar do sujeito na Linguística da Enunciação

(19)

que sejam convocados exteriores teóricos. É exatamente o que faz a autora em cujo aporte teórico ancoramos nossa pesquisa. Authier-Revuz fundamenta sua perspectiva de abordagem do sujeito no que chama de heterogeneidade teórica e convoca, para o tratamento dessa

instância, o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise freudo-lacaniana, como veremos adiante (cf. item 3.2.2 deste trabalho). Para ela, considerar essa instância exige que seja feita uma

―necessária referência preliminar a pontos de vista exteriores que fundamentam essa

heterogeneidade constitutiva do discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.11).

Situar-se no campo da Linguística da Enunciação é tratar o sujeito como a representação que a enunciação faz erigir em relação a ele e não tomá-lo como objeto de estudo dentro de determinada teoria. Nesse sentido, posiciona-se Flores (2001)2:

A linguística da enunciação toma para si não apenas o estudo das marcas formais no enunciado, mas refere-se ao processo de sua produção: ao sujeito, tempo e espaço. A linguística da enunciação deve centrar-se no estudo das representações do sujeito que enuncia e não do próprio sujeito, objeto de outras áreas. (p.59).

Desta feita, a enunciação se define, aqui, como uma reflexão sobre o dizer (produzido pelo sujeito) e não exatamente sobre o dito (sujeito em si), o que não quer dizer que este seja preterido pelos linguistas da enunciação, como pode aparentar. Esse dito é relevante na medida em que é por intermédio do sujeito que diz que alcançamos o dizer e, por conseguinte, a enunciação.

1.2 A Enunciação

Achamos por bem mencionar, neste momento do trabalho, as considerações de Benveniste e de Bakhtin acerca da instância enunciativa, por entendermos que a corrente teórica a que estamos nos filiando parte dessas considerações para estabelecer seu campo. Estes dois autores, como veremos adiante, servem de pressuposto para os estudos de Authier-Revuz, especificamente a autora que suscitou esta pesquisa, o que reforça a utilidade da

―descrição‖ do pensamento dos autores que apresentaremos a seguir.

1.2.1 Bakhtin: o precursor

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Antes de detalharmos as influências de Authier-Revuz, cumpre remontar aos estudos bakhtinianos, vez que a contribuição dos estudos de Bakhtin influenciou ou antecipou as principais orientações teóricas dos estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos, sobretudo, nas últimas três décadas. Suas ideias acerca da linguagem trazem elementos que, de algum modo, contribuem para o estabelecimento de uma linguística da enunciação e que contemplam a intersubjetividade no âmbito dos estudos sobre a linguagem, quando a distinção entre tema e significação é relacionada ao problema da compreensão;

compreendemos os enunciados de outrem quando ―reagimos àquelas [palavras] que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida‖(BAKHTIN, 1992, p.95). Compreender, portanto, não é o mesmo que decodificar a forma linguística e nem equivale a um processo de identificação. Trata-se da interação dos significados das palavras e seu conteúdo ideológico, não só do ponto de vista enunciativo, mas também do ponto de vista das condições de produção e da interação dos interlocutores.

A distinção entre tema e significação adquire particular clareza em conexão com problema da compreensão [...] Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo e deve conter já o germe de uma resposta. Somente a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor

uma ―contrapalavra‖. (BAKHTIN, 1992, p.131).

O princípio norteador do pensamento bakhtiniano é o dialogismo. ―A alteridade define o ser humano, pois o outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar no

homem fora das relações que o ligam ao outro‖ (BAKHTIN, 1992, p.36). A vida é dialógica por natureza, diz ele; se a vida é dialógica, isso não excluiria linguagem, seja ela pensada em termos de língua ou de discurso.

(21)

o locutor se institui na interação viva com vozes sociais3. A partir da noção de recepção / compreensão ativa proposta por Bakhtin, podemos perceber o movimento dialógico da enunciação - território comum do locutor e do interlocutor. O locutor enuncia em função da existência real ou virtual de um interlocutor, requerendo, por parte deste último, uma atitude responsiva, como que antecipando o que o outro vai dizer, ou seja, experimentando o lugar do outro. Em contrapartida, quando recebemos uma enunciação significativa, esta nos propõe uma réplica (concordância, apreciação, ação etc). A inteligibilidade enunciativa dá-se exatamente porque colocamos a enunciação no movimento dialógico dos enunciados, em confronto tanto com os nossos próprios dizeres quanto com os dizeres alheios.

Quanto às concepções de enunciado / enunciação, conceitos tão utilizados na área dos estudos da linguagem e que apresentam uma grande polissemia de definições e empregos conforme a teoria a que são vinculados, além de ocuparem lugar central na concepção de

linguagem que rege seu pensamento, até porque ―é concebida [a linguagem] de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de compreensão e análise, a

comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela envolvidos‖ (BRAIT & MELO, 2005, p.65), não são definidos de forma pontual: trata-se, em verdade, de uma construção paulatina. É em Marxismo e filosofia da linguagem (2002) que a noção de enunciação começa a

ganhar eco como sendo de natureza constitutivamente social e histórica e que, por isso mesmo, está inevitavelmente ligada a enunciações anteriores e posteriores, produzindo e fazendo circular discursos. Consoante Bakhtin (1992), a instância enunciativa resulta da interação de dois indivíduos socialmente organizados. Ela não existe fora de um contexto sócio-ideológico no qual cada um dos interlocutores ocupa um lugar social bem definido,

pensado e dirigido a um ―auditório‖ também definido. Desse modo, a enunciação procede de

alguém e se destina a alguém. Toda enunciação, nesse sentido, propõe uma réplica, uma reação.

O enunciado, para Bakhtin4, compreende três fatores: (i) o horizonte espacial comum dos interlocutores; (ii) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores; (iii) sua avaliação comum dessa situação. Nesse sentido, o enunciado e as peculiaridades de sua enunciação pressupõem um processo interativo, em outras palavras, ―o

verbal e o não verbal que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de um contexto maior histórico, tanto no que diz respeito a aspectos (enunciados, discursos, sujeitos etc.) que

3 Expressão introduzida por Bakhtin no texto

O discurso no romance para se referir aos complexos

semiótico-axiológico com os quais determinado grupo humano diz o mundo. 4 Cf.

(22)

antecedem esse enunciado específico quanto ao que ele projeta adiante‖.(BRAIT & MELO,

2005, p.67).

1.2.2Benveniste: ―a exceção francesa‖ 5

A teorização acerca da enunciação ganhou impulso na França, na década de 60, a partir dos estudos de Benveniste (1966, 1974) sobre essa instância. O linguista francês propôs o estudo da subjetividade na língua, vinculando-a à noção de enunciação, tratada como instância produtora do enunciado. Vale assinalar a distinção entre o modo como a enunciação é compreendida em Benveniste e em Bakhtin. Enquanto a perspectivação benvenistiana contempla o entorno mais imediato da comunicação, já que leva em conta como instâncias da enunciação o locutor, o tempo e o lugar em que ocorre a produção do enunciado, vemos, em Bakhtin (cf. item 1.2.1), a enunciação tratada de um ponto de vista bem mais amplo, de vez que tal instância, situada numa dimensão discursiva, pressupõe o processo interativo, a relação social estabelecida dialogicamente entre os indivíduos, bem como o contexto histórico-cultural em que está imersa, compreensão que confere a essa instância um caráter constitutivamente sócio-histórico.

Os estudos sobre a enunciação, em geral, e particularmente a teoria enunciativa proposta por Benveniste, trazem para o cenário das preocupações linguísticas - sem, em absoluto, desconsiderar as proposições estruturalistas anteriores - o sujeito, personagem tido como secundário pela linguística saussuriana. Com a noção de subjetividade, outras também

emergiram: as noções de sentido e de contexto (―referente‖); juntas, essas noções possibilitaram uma outra perspectivação quanto ao modo de pensar a língua / linguagem.

1.2.2.1 As concepções de língua e de linguagem

A perspectiva de entendimento de língua de Benveniste se diferencia da de Saussure, já que a vê como essencialmente social, concebida no consenso coletivo. Para o teórico da

enunciação, ―[...] somente a língua torna possível a sociedade. A língua constitui o que mantém juntos os homens, o fundamento de todas as relações que, por seu turno, fundamentam a sociedade.‖ (BENVENISTE,1989, p. 63). Já Saussure, o fundador da linguística moderna, pensava a língua como um código fechado em si mesmo, estruturado por signos. A forma como Benveniste pensou a língua advém do seu entendimento de signo.

(23)

Considerando sua forma de significação, propõe dois planos de sentido: o semiótico e o semântico. No primeiro, comungando com o pensamento saussuriano, está o signo significando no sistema; o autor define o signo como uma unidade semiótica, ou seja, elemento necessariamente de dupla relação, cuja unidade – porque decomponível do todo que é a linguagem - é submetida (porque limitada à ordem da significação) a uma ordem semiótica. No segundo plano, há a expressão do sentido resultante da relação do signo com o contexto, ou seja, o modo de significar do enunciado; o critério utilizado para matizar este segundo nível é o da comunicação para definir a palavra como a unidade de operações sintagmáticas que se realizam no nível da frase6. Para o autor, essa forma de significar resulta numa concepção da língua como trabalho social. Assim, Benveniste vê a língua no seio da sociedade e da cultura porque, para ele, o social é da natureza do homem e da língua.

O entendimento de língua, tal como nos apresenta Benveniste, também vai refletir-se na concepção de linguagem que ancora seu pensamento, que não é compreendida como aquela que serve de instrumental comunicativo ao homem, mediadora do processo comunicativo. Em seu estudo Da subjetividade na linguagem, Benveniste (1988, p.285) é

enfático quando rejeita essa noção de linguagem, dizendo-nos que ―falar de instrumento é pôr

em oposição o homem e a natureza [...] e a linguagem está na natureza do homem‖,

mostrando que não se pode mais conceber a linguagem e o indivíduo dessa forma, e continua:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a (sic). Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, é a linguagem que ensina a própria definição do homem.

Na verdade, essa concepção aponta para um indivíduo à margem da linguagem. O que o autor propõe, então, é que linguagem seja vista como algo que dá ao indivíduo o estatuto de sujeito. Pensada sob esse prisma, a linguagem passa a ser uma espécie de lugar de emergência da instância subjetiva, que transpõe o indivíduo à condição de falante propriamente dito, de sujeito.

Esse modo de ver a linguagem desenvolvido na teoria da enunciação postulada por Benveniste amplia os horizontes dos estudos sobre a linguagem rumo a uma nova perspectivização.

6Lembramos que os termos ―palavra‖ e ―frase‖ adquirem, no contexto de seu pensamento, o sentido amplo de

(24)

1.2.2.2 A instauração da subjetividade

Benveniste, em seus estudos sobre a enunciação, não tencionou elaborar uma teoria cujo objeto fosse o sujeito. Sua preocupação insidia sobre a significação. Conquanto não fosse de sua pretensão debruçar-se particularmente no sujeito, sua maior contribuição para a linguística moderna acabou sendo a questão da subjetividade. Ela veio à tona porque é inevitável seu chamamento em se tratando de estudos que versem sobre linguagem e sentido. Dessa forma, o sujeito inevitavelmente ocupou o cerne da sua teoria da enunciação.

Nos termos de Benveniste (1988, p.286), a subjetividade é entendida como ―a capacidade do locutor para se propor como ‗sujeito‘[...], como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência‖. Essa proposta de sujeito tem como condição a linguagem: trata-se de uma

implicação. ―É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito;

porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade, que é a do ser, o conceito

de ‗ego‘‖ (p.286). Assim sendo, a propriedade da subjetividade é determinada pela pessoa e o

por seu estatuto linguístico. Além disso, para o autor, a subjetividade é percebida materialmente num enunciado através de algumas formas (dêixis, verbo) que a língua empresta ao indivíduo que quer enunciar; ao fazê-lo, institui-se ele mesmo como sujeito. Benveniste classifica essas marcas linguísticas que têm o poder de expressar a subjetividade - os pronomes e o verbo – como dêiticas, integrando essas duas classes de palavras à categoria de pessoa do discurso.

Ao instaurar essa categoria, Benveniste define as pessoas do discurso. Considera eu / tu como as autênticas pessoas em oposição a ele – a não-pessoa. As pessoas eu / tu se

caracterizam como categorias de discurso que só ganham plenitude quando assumidas por um falante na instância discursiva. Essa tomada é sempre única, móvel e reversível, representando a (inter)subjetividade na linguagem. A terceira pessoa (a não-pessoa, ele), ao contrário, é um

signo pleno, uma categoria da língua, que tem referência objetiva com valor independente da enunciação, declarando, portanto, a objetividade. A oposição entre os participantes do diálogo e os não-participantes resulta em duas correlações: pessoalidade e subjetividade. A correlação de personalidade opõe a pessoalidade, presente em eu / tu, e a não pessoalidade, presente em ele; enquanto que a correlação de subjetividade descreve a oposição existente entre o eu

(pessoa subjetiva) e o não-eu (pessoa não-subjetiva). Tais correlações se estendem aos

(25)

Benveniste inova ao dizer que os pronomes pessoais no plural não expressam somente plural. É o caso de nós e vós. Somente eles — por não apresentar marca de pessoa — indica

verdadeiro plural. Define, ainda, o nós como inclusivo (união de um eu, pessoa subjetiva, a

um tu / vós, pessoa não subjetiva) e como exclusivo (eu, pessoa + ele(s), não-pessoa). Não

podem significar plural porque não demonstram a repetição da mesma pessoa. No caso do

nós, não há soma de diferentes pessoas e não há repetição de ―eus‖; no caso do vós, no sentido

coletivo ou de cortesia, não há soma de vários ―tus‖. Então, o fato a que chama atenção

Benveniste é que os pronomes não devem ser mais considerados como uma ―classe unitária‖

no que se refere à forma e à função. O autor diferencia o aspecto formal dos pronomes, pertencente à parte sintática da língua, do aspecto funcional, considerado característico da instância do discurso, ou seja, da enunciação. Quer dizer, os pronomes se configuram numa classe da língua que opera no formal, sintático, e no funcional, pragmático. A partir dessa linha de raciocínio, os pronomes devem ser entendidos também como fatos de linguagem, pertencentes à mensagem (fala), às categorias do discurso, e não apenas como pertencentes ao código (língua), às categorias da língua, como considerava o linguista genebrino. Essa visão dos pronomes, também como categoria de linguagem, é dada pela posição que nela ocupam.

Desse modo, acredita-se que, para encontrar e tentar entender o sujeito e suas representações na teoria enunciativa de Benveniste, é necessário partir da categoria de pessoa.

De acordo com Gomes (2004), ―a subjetividade é vista como uma propriedade da língua

realizável pela categoria de pessoa‖. Da mesma forma, Santos (2002, p.25) afirma que:

O fundamento da subjetividade repousa sobre a categoria de pessoa presente no sistema da língua; todavia essa subjetividade depende da inversibilidade do par eu-tu, a qual assegura um fator fundamental na atribuição de sentido à categoria de pessoa - a intersubjetividade.

Segundo Benveniste (1989, p.87), ―o que caracteriza a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou coletivo‖. Isso

determina a estrutura do quadro figurativo da enunciação, o do diálogo, que tem obrigatoriamente um eu e um tu. Os dois participantes alternam-se nas funções,

caracterizando-se como parceiros e protagonistas da situação de enunciação; é exatamente esse movimento que cria uma relação intersubjetiva entre as pessoas do enunciado.

(26)

Bakhtin e Benveniste figuram neste capítulo porque se debruçaram sobre a enunciação de modo a lhe imprimir um olhar inovador, o que promoveu, de certa forma, uma abertura para estudos enunciativos que consideram o sujeito da enunciação – como é nosso caso -, sobretudo Benveniste, que tomou especificamente esta instância como objeto para seu estudo.

1.2 Authier-Revuz: noção de heterogeneidade

Para Authier-Revuz (1982), a dimensão do heterogêneo na enunciação se impõe sob dois planos: o dos fatos de heterogeneidade, nas realizações linguísticas, e o da heterogeneidade teórica, que afeta necessariamente o campo enunciativo.

Entendo, dessa forma, o inevitável não-fechamento do linguístico sobre ele mesmo no sentido formal, que proíbe falar de enunciação sem se apoiar – quer isso seja dito explicitamente ou não – em teorizações exteriores, particularmente sobre o sujeito. (p.173).

Ao teorizar sobre a heterogeneidade constitutiva da linguagem, articula este conceito à noção de dialogismo bakhtiniano. Segundo a autora, por trás de uma aparente linearidade, da emissão ilusória de uma só voz, outras vozes ecoam. O diferencial entre a teoria bakhtiniana e a proposta por Authier-Revuz está relacionado à incorporação, por parte desta última, da psicanálise freudo-lacaniana – a noção de inconsciente – em seu escopo teórico. A própria

autora, ao se referir diretamente ao ―outro de Bakhtin‖, comenta que:

O outro de Bakhtin, aquele dos outros discursos, o outro-interlocutor, pertence ao campo do discurso, do sentido construído, por mais contraditório que seja, em discurso, com palavras ‗carregadas de história‘; o Outro do inconsciente, do imprevisto do sentido, de um sentido ‗desconstruído‘ no funcionamento autônomo do significante, o

Outro que abre uma outra heterogeneidade no discurso –de uma outra natureza – que não aquela que estrutura o campo do discurso para

Bakhtin, está ausente do horizonte deste. Há aí uma radical heterogeneidade, que parece ser recusada, nessa teoria da heterogeneidade que quer ser dialogismo. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.43).

A heterogeneidade constitutiva do discurso seria, portanto, mais abrangente que o

dialogismo, no sentido de que contempla não ―apenas‖ o outro social, à maneira de Bakhtin,

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Bakhtin, o outro (interlocutor, discurso) é sempre ‗o outro de um outro‘ (interlocutor, discurso), lá onde podemos dizer que não há outro do Outro (inconsciente)‖ ( AUTHIER-REVUZ, 1982, p.44), complementa a autora.

O princípio da heterogeneidade, a ideia de que a linguagem é heterogênea, isto é, de

que o discurso é construído a partir do discurso do outro, que é o ―já dito‖ sobre o qual

qualquer discurso se constrói, respeitadas as críticas, está ancorada no dialogismo bakhtiniano. Na heterogeneidade constitutiva, o outro está inscrito no discurso, mas sua presença não é explicitamente demarcada. Authier-Revuz (1982) concebe a heterogeneidade constitutiva como sendo da ordem do não-representável, do não-localizável, pertencente à ordem real de constituição do discurso, condição mesma de existência do fato enunciativo. ―O

heterogêneo constitutivo da enunciação está presente nela, em ação, de maneira permanente,

mas não diretamente observável‖ (p.179), o que nos leva a crer que essa forma de

heterogeneidade apreende-se pela memória discursiva de uma dada formação social.

A contrapartida da heterogeneidade constitutiva são as formas mostradas, passíveis de apreensão na materialidade linguística do texto, que vão constituir o processo por ela

denominado ―heterogeneidade mostrada‖, a qual deve ser compreendida como ―formas

linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a

heterogeneidade constitutiva do seu discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 1991, p.26). Importante

salientar que ―as heterogeneidades‖ não se excluem. Absolutamente; uma não existe em detrimento da outra. A autora é enfática nesse sentido quando nos diz que o heterogêneo constitutivo da enunciação está presente na modalidade mostrada de heterogeneidade de maneira permanente, mas não diretamente observável. Nas palavras dela:

As formas de heterogeneidade mostrada, no discurso, não são um reflexo fiel, uma manifestação direta - mesmo parcial – da realidade incontornável que é a heterogeneidade constitutiva do discurso; elas são elementos de representação - fantasmática – que o locutor (se) dá de sua enunciação.(AUTHIER-REVUZ, 1991, p.70).

(28)

fio. Há de se esclarecer, a esse respeito, que a autora utiliza o termo ―marca‖ referindo-se à presença de um outro que acaba por duplicar o mesmo; não pode ser tomada como evidente, pois, como veremos adiante (cf. seção 3.3.2 deste trabalho), há um processo de negociação em jogo. Outra observação é que as marcas não têm, na perspectiva da autora, o mesmo estatuto, mas estão situadas numa escala que inscreve gradativamente o grau de explicitação ―dos outros‖ no fio discursivo.

Se a heterogeneidade for do tipo mostrada não-marcada, então, é da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a alusão.

Chama nossa atenção a descrição feita por Piègay-Gros (1996) acerca das relações intertextuais, ao classificá-las em explícitas e implícitas, pois enxergamos aí uma proximidade entre esses dois tipos de intertextualidade e as formas marcada e não-marcada postuladas por Authier-Revuz. Estas duas autoras classificam a intertextualidade em instâncias bilaterais que lhe imprimem caracteres perceptíveis e não-perceptíveis. Para Cavalcante (2006), no entanto - em consonância com o que pensamos -, toda intertextualidade se revela por alguma marca, na medida em que o enunciador possui a consciência do ato comunicativo que pretende realizar, daí a proposta da autora se pautar pelo reconhecimento de marcas diferentes de manifestação das heterogeneidades em contraposição à ausência de marcas textuais proposta por PIÈGAY-Gros e por Authier-Revuz.

Nesta pesquisa, estendemos esse raciocínio a todos os modos de heterogeneidade mostrada, por isso reivindicamos que eles sempre apresentam algum tipo de marcação. Assim sendo, não se justificaria, no quadro classificatório de Authier-Revuz, a chamada heterogeneidade mostrada não-marcada.

Cumpre registrar que Authier-Revuz (1982) nos fala ensaisticamente de

não-coincidências do dizer, quando se refere aos ―modos de dizer‖, da alteração7 local do dizer, dos tipos de ruptura pensadas por ela em seu estudo acerca da modalização autonímica. Embora entendamos que esta designação não mantém com a heterogeneidade mostrada do tipo marcada diferenças significativas para este trabalho, a referência a ela faz-se necessária por tratar-se de um tipo de heterogeneidade. Dissemos que a autora nos fala ensaisticamente porque ela acabou por reservar, posteriormente, em Palavras incertas: as não-coincidências do dizer, um estudo específico para tais acontecimentos. Aqui, Authier-Revuz (1998) retoma

a questão das heterogeneidades sob a denominação de não-coincidências, situadas em quatro

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campos de não-coincidência em que o dizer se representa como localmente confrontado com pontos em que, assim alterado, desdobra-se:

a) Não-coincidência interlocutiva entre enunciador e destinatário8, em glosas que, com estratégias bastante diversas, representam o fato de que uma palavra, uma maneira de dizer, ou um sentido não são imediatamente, ou de modo algum, partilhados – no sentido de comum a – pelos dois protagonistas da enunciação. Por exemplo9, digamos X; X, passe-me a expressão; X, compreenda...; X, se você quer; X, se você vê o que quero dizer; etc., expressões utilizadas pelo enunciador, na

tentativa de reinstaurar a unidade de co-enunciação no ponto em que se sente ameaçado. Pode, ao contrário disso, assumir o ponto de não-coincidência: X, assim como você ousa dizer; X, sei que você não gosta da palavra; X, como você não diz;

etc.

b) Não-coincidência do discurso com ele mesmo, em glosas que assinalam no discurso a presença estranha de palavras marcadas como pertencentes a outro discurso e que, através de um leque completo de relações com o outro, desenham no

discurso o traçado que depende de uma ―interdiscursividade mostrada‖, de uma

fronteira interior / exterior. Por exemplo, quando se diz: X, como diz fulano; para retomar as palavras de X; X, no sentido que fulano emprega; X, no sentido de tal

discurso; etc.

c) Não-coincidência entre as palavras e as coisas, posta em jogo em glosas que

representam as pesquisas, hesitações, fracassos, êxitos, na produção da ―palavra certa‖, plenamente adequada à coisa. Por exemplo, em: X, por assim dizer; X, maneira de dizer; como eu diria? X; X, melhor dizendo, Y; X, não, mas eu não

encontro palavra; X, é essa a palavra; não há palavra; X, não existe outra palavra;

etc.

d) Não-coincidência das palavras com elas mesmas, em glosas que designam, ao modo da rejeição - por especificação de um sentido contra outro – ou, ao contrário,

8 Nomenclatura utilizada por Authier-Revuz. Em nosso trabalho, estamos utilizando os termo co-enunciador e leitor.

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da integração ao sentido, fatos de polissemia, de homonímia, de trocadilho, etc., como em: X, em sentido próprio, figurado; X, não no sentido...; X, nos dois sentidos; X em todos os sentidos do termo; X, é o caso de dizê-lo, se ouso dizer; etc.

Aos tipos de não-coincidências acima referidos relacionam-se os exteriores teóricos convocados pela autora na tessitura de sua tese. O primeiro tipo apóia-se no dialogismo

bakhtiniano, ―muito sensível ao heterogêneo relacionado às pessoas e ao peso sócio-histórico

das palavras‖ (1998, p.147); apóia-se, ainda, na concepção lacaniana do sujeito não-coincidente consigo mesmo, radicalmente clivado em relação a um inconsciente que o determina. Para tratar da não-coincidência do discurso com ele mesmo, a autora aciona o

dialogismo bakhtiniano ―pelo qual toda palavra, por se produzir no meio do já-dito de outros

discursos, é ‗habitada‘ pelo discurso outro‖ (TEIXEIRA, 2005, p. 162). Nesse aspecto,

Authier-Revuz (1991) recorre à noção pêcheutiana de interdiscurso, pois ela sustenta o

princípio fundamental ―de que toda palavra é determinada por isso que fala, em outro lugar,

antes e independentemente‖ (TEIXEIRA, 2005, p. 162). Os dois últimos tipos de não-coincidências são respeitantes ao real da língua – de um lado, como forma, como espaço de equívoco, de outro. Dessa forma, são tratados sob a égide da psicanálise lacaniana.

Vemos que seja sob a denominação de heterogeneidade, seja sob a de não-coincidência do dizer, o chamamento de exteriores teóricos se faz necessário para compor um

estudo da enunciação que considera que o atravessamento do discurso ―pelos outros‖ é

condição mesma desse discurso.

1.4 Umberto Eco: noção de leitor-modelo

Para apoiar nosso posicionamento, convocaremos a noção de leitor-modelo de Umberto Eco, por julgarmos que seu pensamento acerca dessa entidade respalde nossa visão frente a formas não prototípicas de marcação.

O nome de Umberto Eco é, sem dúvida, ponto de referência no campo de estudos do leitor. Foi em Obra Aberta (1962) que Eco começou a discutir o papel do destinatário na

atualização e interpretação do texto. Segundo ele, não dispunha, naquele momento, ainda, de instrumentos suficientes para analisar teoricamente a estratégia textual: como o texto estimulava e regulava a participação do leitor.

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discussão. Nele, afirma que todo texto demanda a participação de seu destinatário. E isso por dois motivos: para ser atualizado, fazer a correlação expressão-código e também por estar repleto de espaços em branco, não-ditos, que devem ser preenchidos. Para ele, o texto é um

―mecanismo preguiçoso‖, precisa de alguém que o ajude a funcionar.

Falar que um texto é preguiçoso é invocar o próprio funcionamento da linguagem, sua não-transparência. Eco admite que a língua não se reduz a um código, ―não é uma entidade

simples, mas, frequentemente, um complexo sistema de regras‖ (ECO, 1979, p. 56) e que não basta a competência linguística para decodificar uma mensagem, para constituir sentido

(interpretar). Além dela, deve haver ―uma competência circunstancial diversificada, uma

capacidade de pôr em funcionamento certos pressupostos, de reprimir idiossincrasias, etc., etc. (sic)‖ (ECO, 1979, p. 56).

Quando o autor produz um texto, faz uma hipótese sobre como este será lido, que caminhos o leitor deve percorrer, faz uma previsão de como será esse leitor. A essa instância, Eco chama leitor-modelo. Ele deve se mover no nível da interpretação da mesma forma que o autor o fez no nível gerativo10. Para tanto, estratégias são tomadas. Para organizá-las, o autor

do texto ―deve assumir que o conjunto de competências a que se refere é o mesmo de seu

leitor‖ (ECO, 1979, p. 58). Eco ressalta que não se trata de esperar que o leitor-modelo exista, mas que trabalhe o texto de forma a construí-lo.

Eco (1979), quando advoga em favor de uma entidade pressuposta que emerge de todos os textos - o leitor-modelo -, refere-se a uma tal entidade abstrata, construída pelo texto que constitui, em verdade, um conjunto de condições de êxito11, textualmente estabelecidas,

para a leitura desse texto. Cabe, aqui, a ressalva de que o leitor-modelo de que fala o autor não se confunde, em hipótese alguma, com o leitor empírico - entidade concreta que se depara com o texto.

Os meios de que se dispõe para ―selecionar‖ um dito leitor-modelo são múltiplos: a escolha de uma língua, que exclui quem não a lê; a escolha de um tipo de enciclopédia; a seleção lexical. Eco adverte que, muitas vezes, há erros de previsão, motivados por análises infundadas ou preconceitos culturais. Lembra, também, que os textos podem ser classificados em abertos ou fechados dependendo da forma como as estratégias foram trabalhadas. Os últimos cerceiam o leitor, dão pouco espaço a ele. Os primeiros são mais "preguiçosos", pedem mais a participação do leitor.

10 Nível gerativo concerne ao percurso gerativo de sentido (termo da Semiótica), que é uma sucessão de patamares, cada um dos quais susceptível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz os sentidos, que vai do mais simples (nível discursivo) ao mais complexo (níveis narrativo e fundamental).

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Assim como Eco, assumimos que o texto postula a cooperação do leitor como condição própria de atualização. Podemos dizer melhor: o texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo. Gerar um texto significa executar uma estratégia de que fazem parte previsões dos movimentos de outrem - como, aliás, em qualquer estratégia. É relevante, neste ponto, ratificar que a previsão de um

leitor-modelo não significa apenas ―esperar‖ que ele exista, mas significa, também, mover o texto

de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas contribui para produzi-lo.

É fato que nenhum texto é lido independentemente da experiência que o leitor tem de outros textos. Desse modo, se aceitamos a proposta do leitor-modelo, estamos aceitando, também, o fato de que, no momento em que dissimulamos que é nosso o discurso do outro, a partir de procedimentos intertextuais conscientes, por exemplo, é nesse momento mesmo que instituímos uma instância cuja competência intertextual tornará possível o alcance semântico pretendido. Não estamos, com isso, dizendo que, em não se tendo a ―adequação‖ de tal

competência, determinada interpretação será rejeitada – afinal, ela existe como potencialidade virtual; um texto é um universo aberto em que o intérprete pode descobrir infinitas interconexões. Com efeito, o ato da leitura de um texto é uma transação difícil entre a competência do leitor (seu conhecimento de mundo) e o tipo de competência que um dado texto postula, a fim de ser lido de forma econômica. É relevante salientarmos que não estamos falando do texto como entidade autônoma. As intenções comunicativas do enunciador, seus desejos inconscientes são considerados, mas desde que haja um percurso mínimo (textual) que sinalize nesse sentido.

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CAPÍTULO II

QUESTÕES DE PESQUISA E PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS

O universo não tem anverso nem reverso O universo não tem anverso nem reverso O universo não tem anverso nem reverso Não tem uro externo nem tem centro secreto Você está dentro, não haverás nunca uma porta. Não espere que o rigor de seu caminho, desse caminho que teimosamente se bifurca em outro

que obstinadamente se bifurca em outro, não espere que ele tenha fim. (Jorge Luís Borges)

2.1 Delimitação do universo

Nossa pesquisa procede a uma releitura crítica da teoria da heterogeneidade enunciativa, instituída por Authier-Revuz (1982). Travamos uma discussão em torno do esquema proposto pela autora, com vistas a repensar a discretização das modalidades de heterogeneidade constitutiva, a saber, a constitutiva, em oposição à mostrada, podendo, esta última, ser do tipo marcada ou não-marcada, com vistas a cumprir nosso desiderato precípuo, qual seja, o de incluir fenômenos de natureza não estritamente formal entre os fatos de linguagem tidos como marcados, ampliando, assim, o leque de marcações para os casos de mostração.

Para argumentar em favor dessa ―abertura‖ para que procedimentos de natureza (mais)

sócio-cognitiva sejam alocados no âmbito do localizável, recorremos a processos de referenciação que desempenham papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para tanto, precisem vir acompanhados de indicadores formais que denunciem marcação.

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quando entendida como uma transformação cognitiva do referente. Processos intertextuais por alusão e o discurso indireto livre também encontraram lugar em nossas considerações.

2.2 Questões de pesquisa

Esta pesquisa está assentada no pressuposto de que é possível haver marcação explícita da presença da voz do outro no fio discursivo sem que, para tanto, esta tenha que vir indicada por vias prototípicas (aspas, itálico, negrito, discurso direto, mudança de fonte).

Partimos dessa linha de raciocínio para fazermos os seguintes questionamentos:

a) Que marcas linguísticas promovem a mostração do outro no fio discursivo sem que

haja uma marcação prototípica (aspas, itálico, negrito mudança de fonte, discurso direto) dessa alteridade?

b) Que heterogeneidades são intertextuais?

c) Que processos referenciais evidenciam casos de intertextualidade?

d) Que processos de referenciação podem evidenciar fatos de heterogeneidade?

e) Nas heterogeneidades não-intertextuais, em que casos os processos referenciais podem constituir marcas?

A partir desses questionamentos, propomos as seguintes hipóteses:

Hipótese básica:

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Hipóteses secundárias:

a) Dentre as marcas tipicamente consideradas como marcações de explicitude da alteridade no fio discursivo, estão as que assinalam a intertextualidade por co-presença da citação,

como verbos dicendi e equivalentes, dois pontos, aspas, itálicos, negrito, indicação da

fonte;

b) A intertextualidade por alusão é a que mais claramente se estabelece por um processo de referenciação, classificado na literatura como anáfora indireta;

c) Os demais tipos de heterogeneidade discursiva que são intertextuais não se descrevem por um processo referencial específico, mas podem ser reconhecidos com a ajuda de introduções referenciais, em primeiro lugar, mas também de anafóricos e dêiticos;

d) Nas heterogeneidades não-intertextuais, os seguintes processos referenciais podem constituir marcas: 1) anáforas diretas e indiretas, que podem constituir mecanismos de marcação de vozes distintas no discurso; 2) recategorização homologada por expressão de introduções referenciais, que pode também constituir um mecanismo de marcação de alteridade no fio discursivo; 3) dêiticos de tempo e de espaço, que podem indicar a existência de discurso indireto livre e, dessa forma, marcar alternância de vozes entre narrador e personagem;

2.3 Procedimentos metodológicos

2.3.1 Etapas do trabalho

1. Na primeira etapa deste trabalho, procedemos a uma leitura exaustiva da literatura, nas diferentes vertentes dos estudos da enunciação que trata, direta ou indiretamente, do assunto, para que pudéssemos travar uma discussão rigorosa acerca dos mecanismos de que dispõem os sujeitos da enunciação para marcar a ―alteração‖ de seu discurso. Nesse

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2. Posteriormente, descrevemos as categorias de análise em torno das quais visualizamos os fenômenos que queremos que sejam tratados como se mostrando na materialidade linguística como marcados: os fenômenos intertextuais e os processos de referenciação;

3. Feito isso, partimos para a identificação das heterogeneidades textuais e intertextuais em textos de gêneros variados (não trabalhos exatamente com um corpus, senão apenas com

um exemplário);

4. Identificamos, então, as marcas de referenciação que enxergamos nas intertextualidades e quais os processos referenciais especificamente que funcionavam como mostradores de heterogeneidade marcada no fio discursivo;

5. O passo seguinte foi a definição dos textos para análise. Para demonstrar o que estamos defendendo, não nos utilizamos de textos de um gênero específico, uma vez que objetivamos investigar tão-somente estratégias ―alternativas‖ de marcação. Não é

pretensão nossa, pois, atrelar tais possibilidades marcativas a um gênero específico, nem à predominância desta ou daquela sequência textual; focalizamos o fenômeno independentemente do gênero em que ele se manifeste ou da sequência em que esteja inserido; mais exatamente, não fizemos uma associação direta, porque a relação entre os gêneros e sequências e o fenômeno estudado existe: uns vão ser mais propensos a certos tipos de intertextualidade e de processos referenciais do que outros, fato do qual não iremos nos ocupar. Será, portanto, convocado um exemplário de vinte textos pertencentes a gêneros variados, com vistas a respaldar materialmente o intento que orienta o empreendimento desta pesquisa: comprovar textualmente que é possível haver marcação sem, necessariamente, indicá-la pelas vias formalmente já aceitas;

6. O exemplário da análise reúne 20 textos cujos gêneros se alternam entre artigo de opinião, crônica, conto, nota de coluna, poema, relatório e soneto. Ancoramos nossas considerações nas seguintes categorias:

(37)

b) Analisamos, a partir das dêixis de espaço e de tempo, as marcas de heterogeneidade que promoveram na superfície textual e de que forma essas marcas se mostram textualmente, produzindo uma opacificação local no fio discursivo, ao interlocutor;

c) Utilizamos a recategorização como critério de análise para demonstrar que tipo de marca tal fenômeno promove na materialidade linguística e de que maneira essa marca se mostra concretamente, em um ponto específico da cadeia do dizer, ao interlocutor;

d) Utilizamos o discurso indireto livre como critério de análise para demonstrar que tipo de marca promove no fio discursivo e de que maneira essa marca se mostra ao interlocutor;

e) Partimos da intertextualidade por alusão para demonstrar a natureza da marca que promove no fio discursivo e de que maneira essa marca se mostra, por meio de procedimentos de remissão indireta e em pontos específicos da materialidade linguística, ao interlocutor.

(38)

CAPÍTULO III

HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA

______________________________________________________________________

Combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma trapaça: ele simula ser meu para

dissimular que é do outro. (Edward Lopes)

3.1Balizagem teórica: filiação

3.1.1. Benveniste: os estudos enunciativos

É particularmente seguindo a senda dos estudos enunciativos empreendidos por Benveniste (1988) que Authier-Revuz (1982) alicerça seu estudo acerca da heterogeneidade enunciativa. Como já fizemos referência a seus estudos em outro momento deste trabalho (cf. item 1.2.2), relacionamos pelo menos três pontos específicos da obra do linguista francês nos quais Authier-Revuz se apóia para, então, avançar:

 Afirmação da propriedade reflexiva da língua, pela qual ela se coloca em posição privilegiada entre os sistemas semióticos;

 Reconhecimento da língua como ordem própria, sem que, por isso, o linguista deva rejeitar o que é da ordem do discurso, que está aí mesmo contido;

 Indicação de que certas formas da língua - como os pronomes pessoais, os tempos verbais, os performativos, os delocutivos – são os sinais, na língua, do que lhe é radicalmente outro.

Referências

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