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Da evolução do ideário da liberdade e igualdade na concepção de Estado

CAPÍTULO 1 − VALORES CENTRAIS DA MODERNIDADE: LIBERDADE, IGUALDADE

1.4 IMPACTOS DA EVOLUÇÃO DO IDEÁRIO DE LIBERDADE E IGUALDADE NA

1.4.1 Da evolução do ideário da liberdade e igualdade na concepção de Estado

A prevalência das idéias de liberdade e igualdade no contexto pós- revolucionário e, ulteriormente, a evolução da compreensão da igualdade em direção à eqüidade acabam por deitar as bases da modernidade. Tal ideário não apenas se manifesta no reconhecimento de direitos, como os direitos de liberdade ou igualdade. Seu impacto revela-se, à toda evidência, na própria conformação do Estado e em suas políticas públicas, bem como na compreensão da justiça.126

Resgatando as postulações jusnaturalistas, que como visto, ora compreendia os direitos de liberdade como pré-existentes ao Estado e – portanto, oponíveis ao mesmo – e ora os compreendia como concessões do Estado, se fortaleceu a teoria contratualista, que concebia o Estado como a “expressão do pacto firmado entre os indivíduos para assegurar a liberdade e proteger a propriedade”.127

O Estado moderno128 inicialmente conforma-se às necessidades da burguesia e do capitalismo emergentes. Assim, a partir dos preceitos do pensamento liberal, surge no século XVIII, o Estado Liberal de Direito129, também denominado Estado

125

A ressalva se impõe visto que o enfrentamento do problema da desigualdade não pressupõe um nivelamento entre indivíduos naturalmente desiguais, antes impõe a supressão das desigualdades e barreiras artificiais geradas pela sociedade, por seus mecanismos e a forma de organização do modo de produção.

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CANTO-SPERBER, M. (Org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral, 2003, p. 877. 127

“Nesse sentido, podemos perceber a vinculação orgânica entre a teoria contratualista e a formação da sociedade capitalista [...]”. COSTA, L. C. da. Os impasses do estado capitalista: uma análise sobre a reforma do Estado no Brasil. Ponta Grossa: Editora UEPG; São Paulo: Cortez, 2006, p. 26.

128

“O Estado moderno é o Estado liberal burguês, justificado pela idéia da liberdade e igualdade dos indivíduos que, por um ato de vontade, firmam entre si um pacto ou contrato social. Na visão do contratualismo moderno, o Estado surge como instancia necessária para garantir o convívio social, a defesa da propriedade e o império da justiça”. Ibid., p. 27.

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Cabe esclarecer que a expressão “Estado de Direito”, mostra-se ambígua e vaga, bem como, apresenta-se sob diversas formas nos diferentes Estados onde se realizou. No entanto, pode-se vislumbrar um consenso mínimo sobre seus elementos fundamentais, que para Carl Schimtt

burguês de Direito, por Carl Schmitt, ou ainda simplesmente Estado de Direito (Rechtsstaat), segundo a Escola de Direito Público Alemã do século XIX.130

Conforme assinala Max Weber, o advento do Estado moderno é informado essencialmente pelas necessidades do capitalismo, como segurança e previsibilidade jurídicas, caras à atividade capitalista, o que se manifesta por um sistema jurídico formal.131

Nesse contexto, considera-se que o Estado moderno deve ser compreendido não somente a partir das mudanças ocorridas na estrutura produtiva, mas também das profundas transformações nas relações sociais, e na percepção do indivíduo, quanto ao mundo à sua volta, e quanto a si mesmo132. Nesse passo, a libertação dos domínios da fé e a ascensão da capacidade de compreender, mediante a razão secularizada, constituíram fatores importantes.133

Logo, vêem-se presentes na conformação do Estado moderno os valores da liberdade ao lado daquele da igualdade jurídica.

Os abalos sofridos pela concepção de igualdade meramente formal, os novos problemas sociais engendrados pelo modo de produção industrial, as repercussões das grandes guerras e das crises econômicas, tendo reformulado a própria compreensão da igualdade e exposto as insuficiências da igualdade formal, acabam, igualmente, por atingir a própria conformação do Estado.134

Surge, nesse passo, em determinados países, a figura do denominado Estado Social ou Estado de Bem Estar Social (Welfare State)135, um Estado (Teoria de la Constitución, p.137-148) e Ernst Forsthoff (Problematiche dell’interpretazione costituzionale, p.54-55) mencionados por Steinmetz, seriam o reconhecimento de direitos fundamentais, a separação de poderes, a legalidade administrativa e a independência judicial. STEINMETZ, W. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p.72.

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Nesse sentido, STEINMTEZ, ibid., p. 67. 131

WEBER, M. Economia e Sociedade. v. 2. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 518-519. 132

A idéia de soberania do poder, de autonomia baseada no uso da razão, a legitimidade do contrato social e as distinções entre a esfera pública e privada, constituem as características centrais do Estado moderno. COSTA, L. C. da. Os impasses do estado capitalista, 2006, p. 28.

133

No tocante WEBER, M. Max. Weber: o desencantamento do mundo e a metodologia das ciências histórico-sociais. In: REALE, G.; ANTISERI, D. De Nietzsche à Escola de Frankfurt. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2006, p. 63. (Coleção História da Filosofia, v. 6).

134

“Não era mais possível conter as tensões sociais usando apenas da repressão”. COSTA, op. cit., p. 41.

135

Marcelo Medeiros Coelho de Sousa aduz que é tarefa extremamente difícil localizar no tempo o surgimento do welfare state, uma vez que “formas embrionárias de sistematização de políticas sociais pelo Estado remontam pelo menos ao início do capitalismo”. SOUSA, M. M. C. de. A transposição de teorias sobre a institucionalização do Welfare State para o caso de países subdesenvolvidos. Texto para discussão n. 695, dez. 1999, p. 1.

fortemente interventor e regulador da economia, de inspiração keynesiana e prestador bens e serviços ao cidadão, modelo este que conhece uma expansão ao longo de parte do Século XX.136 Pode-se atribuir a ampliação das funções do Estado, no século XX, não somente à luta pela igualdade social, mas sobretudo “à complexidade da estrutura produtiva social e ao acirramento da concorrência capitalista, e os impasses das crises deste sistema de produção [...]”.137

Este novo modelo de Estado138 representa a consagração dos direitos de igualdade e, ao mesmo tempo, segundo alguns autores, se mostra funcional ao próprio capitalismo, através da socialização dos problemas engendrados por tal modo de produção, da politização de decisões outrora sujeitas à lei de mercado – demanda, oferta e procura, bem como do arrefecimento dos conflitos de classe e da retirada do tema da propriedade privada dos meios de produção da discussão política.139

Nesse passo, em diversos lugares do mundo a promessa do Estado Social, consubstanciada o mais das vezes nas próprias cartas constitucionais, jamais se concretizou, restando sempre subordinada a condicionantes diversos, tais como a disponibilidade dos recursos materiais e orçamentários, o desenvolvimento da economia nacional, superávits, o pagamento das dívidas pública e externa, dentre outros fatores semelhantes. Este é o caso da integralidade dos países da América Latina, inclusive do Brasil.

Mais recentemente, o modelo do Estado social sofreu pesadas modificações ao redor do mundo, situação esta em grande parte fruto do pensamento neoliberal que se propagou pelo globo nas últimas décadas. Assim, diversos Estados procuraram redefinir suas políticas públicas, restringindo políticas sociais, condicionando-as a fatores atuariais e econômicos; retirando-se da exploração direta

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Além das concepções de Estado aqui rapidamente abordadas, outras houve, como, por exemplo, o modelo soviético, que se originou da tentativa de implantar, na prática, as idéias do socialismo científico de Marx e Engel, recaindo a ênfase, marcadamente, no valor igualdade.

137

COSTA, L. C. da. Os impasses do estado capitalista, 2006, p. 49. 138

Tal modelo de Estaso chegou a notáveis níveis de desenvolvimento concreto em certos países, notadamente naqueles economicamente mais desenvolvidos (países nórdicos, Grã-Bretanha, Alemanha ocidental, dentre outros), com implantação crescente de políticas sociais em larga escala e, por vezes, universalizadas, o denominado modelo beveridgeano. LAMIOT, D.; LANCRY, J. P., apud HOLCMAN, R. La protection sociale, 1997, p. 18.

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Tal assertiva nos remete ao conceito de revolução passiva mencionado por Gramsci. Gramsci utiliza o termo “evolução passiva para indicar a constante reorganização do poder do Estado e sua relação com as classes dominadas para preservar a hegemonia da classe dominante e excluir as massas de exercerem influência sobre as instituições econômicas e políticas”. Assim a burguesia, através do Estado, tenta uma “estratégia de revolução passiva sempre sua hegemonia é ameaçada ou sempre sua superestrutura política (força mais hegemonia) não consegue lidar com a necessidade de expandir as forças de produção”. CARNOY, M. Estado e Teoria Política. 4. ed. São Paulo: Papirus, 1994, p. 104.

da atividade econômica, reduzindo grandemente sua intervenção em numerosos setores da economia, ajustando-se ao Consenso de Washington. 140

São os acordos de Bretton Woods que fundam o denominado Consenso de Washington. Conforme ensina Abili Lázaro Castro de Lima:

[...] os acordos de Bretton Woods instauraram, na nova ordem global, o denominado Consenso de Washington, que se consubstância basicamente três medidas: 1) acabar com a inflação, 2) privatizar e 3) deixar o mercado regular a sociedade, através da redução do papel do Estado, sendo os seus principais protagonistas as grandes corporações internacionais, sobretudo as norte-americanas. (grifos do autor)141

A fase excepcional experimentada pelo capitalismo organizado nas décadas de 1950 e 1960 do século passado diferiu os efeitos políticos concretos do ideário neoliberal, eis que, é a partir da década de 1970 do Século XX, com a denominada crise do petróleo e o período de recessão decorrente a assolar o capitalismo que o pensamento neoliberal passa a ganhar espaço político e engendrar mudanças na realidade concreta.142

O fim da conjunção de fatores sócio-econômicos e políticos que viabilizavam a existência do Estado Social, juntamente com os efeitos filosófico-políticos, culturais e teóricos levados a cabo pelo pensamento neoliberal, foram as causas do desmantelamento efetivo do Estado Social, iniciado no Reino-Unido sob o governo da Primeira Ministra Margareth Thatcher (1979) e, nos Estados Unidos, sob o governo do Presidente Ronald Reagan (1980), a priori, através, notadamente, da

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Assim, em um primeiro momento, as teorias neoliberais prepararam as bases político-filosóficas e teóricas para o desmantelamento do Estado Social que se verificou, sobretudo, a partir do final da década de 1970 do século passado e, com força ainda maior, nas sucessivas décadas de 1980 e 1990.

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Segundo Abili Lázaro Castro de Lima resultou na criação de mecanismos como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI (1945) e o GATT – General Agreement on Trade and Tarifs (1947). LIMA, A. L. C. de. Globalização Econômica, Política e Direito: uma análise das mazelas causadas no plano político-jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 159. 142

É na década de 1970 que se inicia o terceiro período do capitalismo, a saber, aquele do capitalismo desorganizado. SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 153.O autor, citando Perry Anderson, destaca que os teóricos neoliberais atribuíram a crise ao poder excessivo dos grandes sindicatos e do movimento operário, cujas demandas por direitos trabalhistas e sociais teriam destruído os necessários níveis de lucro das empresas, deflagrado processos inflacionários e gerado a crise das economias de mercado. Donde as metas propostas: combater o sindicalismo, diminuir os gastos sociais do Estado e suas intervenções econômicas, promover, acima de todas as coisas, a estabilidade monetária e uma rigorosa disciplina orçamentária. O meio de enfraquecer os sindicatos seria a “restauração da taxa ‘natural’ de desemprego”, criando assim um exército de reserva de mão-de-obra. LIMA, op. cit., p. 160-161.

criação de altos níveis de desemprego, da redução de gastos sociais e da implementação de um amplo programa de privatização.143

O neoliberalismo procura através do processo de desregulamentação144, enfatizar ao máximo as relações mercantis, prioriza a competição elevando os “mais aptos e capazes” em detrimento dos reputados “menos aptos”, ou os “perdedores da luta pela existência [econômica]”145. Assim, as relações existentes tendem a se reproduzir da maneira mais mecânica possível, bem como “acentuam-se as concentrações de poder, da riqueza, do direito à palavra”146.

Nessa esteira, Loïc Wacquant, considera que atualmente prepondera um modelo de Estado que se poderia denominar neo-darwinista, eis que “se baseia na competição, celebra a responsabilidade individual irrestrita e tem como contrapartida a irresponsabilidade coletiva e, portanto, política”.147

Nesse sentido, ganha destaque a falsa idéia centrada em um sujeito detentor de total liberdade sobre a constituição da própria situação social, bem como a falsa idéia fundamentada na total imparcialidade das instituições nas quais o indivíduo age148, acaba por atribuir ao indivíduo a “total responsabilidade pela posição que ocupa, sem espaço para redistribuições mesmo em quadros de profundas desigualdades econômicas e de reconhecimento”.149

Em resumo, pode-se afirmar que as contradições e as desigualdades imerecidas oriundas do processo histórico dos conflitos de classe, de gênero, de raça, sempre se fizeram presentes na sociedade e no mercado. Viu-se que tais desigualdades imerecidas construídas socialmente, não foram passíveis de superação ou minoração somente a partir da idéia de igualdade formal, que não obstante constituíu um avanço em relação à sociedade estamental anterior, e não

143

LIMA, op. cit., p. 161. Inicia-se, portanto, o período do capitalismo desorganizado, que sucede às duas fases precedentes. Nesse sentido, SANTOS, op. cit., p. 139, e ainda BEDIN, G. A. Os

Direitos do Homem e o neoliberalismo. 3. ed. rev. e ampl. Ijuí: Editora Unijuí, 2002, p. 152.

Segundo o último autor, as vitórias de Thatcher e Reagan foram fundamentais para a consolidação do ideário neoliberal crescente.

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A desregulamentação atinge pesadamente setores como o das relações juslaborais, através de expedientes como a reengenharia, as novas tecnologias e, notadamente, a “flexibilização” – i.e., precarização – das relações salariais, o que é, simultaneamente, efeito e causa da perda de poder dos mecanismos corporativos e das organizações de classe, conforme observa Sousa Santos. SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente, 2005, p. 154.

145

WACQUANT, L. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3ª. ed. rev. e ampl. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 31.

146

BRANDÃO, A. A.(Org.). Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A , 2007, p. 07.

147

Ibid., p. 31. 148

IKAWA, D. Ações Afirmativas em Universidades. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 37. 149

garantiu por si só, a igualdade material, visto que, a formalização do liberalismo econômico acaba por perpetuar as assimetrias sociais.

Por conseguinte, a partir da constatação da insuficiência da igualdade formal ante a superação de todas as formas de desigualação injusta, ganha força o pleito por uma igualdade material, o que exige, por sua vez, uma postura ativa do Estado, com vistas à garantir iguais condições de desenvolvimento a indivíduos que “não partem do mesmo ponto” na disputa pelos recursos na sociedade.

Nessa esteira, conforme afirma Carmem Lúcia Rocha

Em nenhum Estado Democrático, até a década de 1960, e em quase nenhum até esta última década do século XX se cuidou de promover a igualação e vencerem-se os preconceitos por comportamentos estatais e particulares obrigatórios pelos quais se superassem todas as formas de desigualação injusta. Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas ou psíquicas, por idade, etc. continuam em estado de desalento jurídico em grande parte do mundo. Inobstante (sic) a garantia constitucional da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos, não são poucos os homens e as mulheres que continuam sem ter acesso às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política, de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da convivência social, da experiência democrática na sociedade política.150

Nessa perspectiva as ações afirmativas constituem uma alternativa de concretização desse imperativo de igualdade substancial ao visar combater as desigualdades injustas, bem como rompem com a ultrapassada noção de igualdade “estática” ou formal, que apenas levava em consideração o sujeito abstrato, genérico e universal, para um novo conceito de igualdade “substancial”, baseada numa idéia de “igualdade de oportunidades e condições reais de vida”, que leva em consideração o indivíduo singularizado, concreto e historicamente situado.151

Tais programas afirmativos são políticas focalizadas ou seletivizadas, voltadas a indivíduos socialmente excluídos ou historicamente discriminados

150

ROCHA, C. L. A. Ação Afirmativa – o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.

Revista Trimestral de Direito Público, n. 15, 1996, p. 85-86.

151

GOMES, J.B.B. O Debate Constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, R. E., LOBATO, F. (orgs). Ações Afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais.Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 43. Conforme magistério de Flávia Piovesan “[...] do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo “especificado”, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc.” PIOVESAN, F. Temas

pertencentes a parcelas vulneráveis e visam, sobretudo, compensar ou reparar uma situação anteriormente estabelecida ou determinada.