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O processo de transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado e a

CAPÍTULO 2 − ESCORÇO HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL E SEU IMPACTO

2.1. O PASSADO HISTÓRICO-SOCIAL DO NEGRO NA ÉPOCA DA COLONIZAÇÃO E O

2.1.4 O processo de transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado e a

Nessa esteira, retornando à narrativa histórica, urge analisar o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e a exclusão sofrida pelo negro no período pós-abolição.

O problema acerca da insuficiência de mão-de-obra era um dos principais assuntos que permeava o processo de transição do trabalho escravo para o assalariado. Desde a metade do século XIX, segundo alguns autores, a mão-de- obra escrava diminuía vertiginosamente, justamente no momento em que a economia nacional ingressava num ciclo de expansão acelerada, verificando-se escassez de força de trabalho para as lavouras cafeeiras e demais setores em crescimento.297

Segundo certa linha de pensamento, diante do decréscimo da população escrava, inicialmente utilizou-se do braço escravo excedente da região mineradora298, que se encontrava em franco declínio. No entanto, a solução vislumbrada pela burguesia cafeeira, para suprir a escassez de força de trabalho, foi adotar a mão-de-obra do imigrante europeu.299 Portanto, segundo tal entendimento, a verdadeira razão da abolição da escravatura adquire mais plausibilidade a partir da insuficiência de mão-de-obra ante a pujante demanda da lavoura cafeeira.300

297

Devido a expansão da lavoura cafeeira do Vale do Paraíba, região que compreendia terras de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, ocorreu uma aumento significativo do intercâmbio interprovincial de escravos. PESSANHA, A. S. Da abolição da escravatura à abolição da

miséria, 2005, p. 50. Autores como Caio Prado Júnior apontam como principal movel do

movimento abolicionista, a quantidade insuficiente de escravos para atender as necessidades das demandas relacionadas à força de trabalho, haja vista que, segundo ele, em 1850, os escravos representavam 31% de toda população, e em 1887 eram apenas 5%. Cf. PRADO JÚNIOR, C.

Evolução Política do Brasil, 1986, p. 99.

298

Compreende Minas Gerais, Goiás, parte do Mato Grosso e Bahia. Caio Prado nos revela que a mineração exerceu um importante papel na vida da colônia, tendo durado três quartos de século, permitiu um considerável rush migratório para a região das minas, promove o povoamento em alguns decênios de um vasto território, não inferior a dois milhões de quilômetros quadrados até então desabitados. Teve ainda o condão de deslocar o eixo econômico da colônia, antes localizado no Nordeste (nos centros açucareiros, v.g. Pernambuco e Bahia) para o eixo centro-sul, transmuda-se também a própria capital, em 1763, da Bahia para o Rio de Janeiro.

299

O que, por sua vez, atendia aos graves problemas sociais que assolavam certos países europeus no Século XIX, como a Itália, o que motivou, no Velho Mundo, uma política de estímulo à emigração. Sobre o tema ver, por todo, STELLA, G. A. Odisee: italiani sulle rote del sogno e del dolore. Milano: Corriere della Sera, 2004.

300

De acordo com George Andrews, em 1887, aproximadamente 90% dos negros já se encontrava livre. ANDREWS, G. R. Ação Afirmativa: um modelo para o Brasil? In: SOUZA, J. (Org.).

Multiculturalismo e Racismo. Uma comparação Brasil–Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15,

Não obstante, existem outras correntes de pensamento que vislumbram no processo de transição da escravidão para o trabalho assalariado no Brasil, especialmente o problema da mão-de-obra, um processo mais complexo, do que o argumento exposado por Caio Prado Júnior e pela historiografia de um modo geral.

De acordo com o entendimento de Petrônio Domingues, o modelo de “transição” ocultava uma campanha ideológica empreendida pela elite agrária paulista do século XIX, que visava legitimar a exclusão social do negro.301 Para o autor, a questão da suposta escassez de mão-de-obra para a lavoura cafeeira em expansão, sobretudo, após o fim do trafico negreiro e da aprovação das consecutivas leis que acenavam para a abolição, e a suposta necessidade da entrada dos imigrantes brancos europeus para suprir tal escassez, não pode ser dissociada da compreensão do projeto de substituição étnica da força de trabalho.302

Segundo o autor, as versões convencionais da “transição”, reproduzem o discurso do vencedor, sem levar em conta, os “interesses de classe e de raça que moviam suas ações”, sendo necessário reavaliar o processo sob a perspectiva do negro. Para ele, as versões convencionais, geralmente encontram-se baseadas em três mitos, a saber: a) escassez de mão-de-obra; b) superioridade dos imigrantes brancos europeus; c) incapacidade dos negros de assumir velhas e novas atividades produtivas.303

301

DOMINGUES, P. Uma história não contada, 2004, p. 83. 302

Ibid., p. 83 e p. 88. 303

Ibid., p. 83-84. O primeiro mito, conforme Domingues, diz respeito à escassez de mão-de-obra no fim da escravidão. No entanto, o autor considera, com base na obra Agricultura Nacional, de André Rebouças, que uma das causas apontadas à propalada escassez de mão-de-obra seria resultante do não aproveitamento e do desperdício de braços dos trabalhadores nacionais. Segundo estimativas de André Rebouças, apud Petrônio Domingues,[...] no vastíssimo planalto ou araxá central do Brasil, para mais de 1 milhão de índios; há também, no vale do grandioso São Francisco, 1 milhão de mestiços que, segregados do mundo por falta de vias de comunicação, quase nada concorrem no movimento comercial deste país; há, finalmente, perto de 1 milhão de seres que a rotina e a ignorância conservam na escravidão, e que não produzem metade do que poderiam produzir se fossem livres; são, pois, 3 milhões de homens desaproveitados e mal aproveitados neste país, em que se clama todos os dias por falta de braços! Ibid., p. 84. No mesmo sentido, NAXARA, M. R. C. Estrangeiro em sua própria terra: representações do trabalhador nacional (1870-1920). São Paulo: Annablume, 1998, p. 63. O segundo mito, relativo à superioridade cultural e à maior qualificação do imigrante europeu em relação ao negro baseia-se, conforme observa Petrônio Domingues, na visão quixotesca de um imigrante europeu esbelto, educado, experiente no plantio e habilitado na operação de maquinário fabril, a qual revela ser fruto de um discurso que procurava legitimar o imigrantismo e que não encontra respaldo empírico na realidade histórica, visto que, segundo o “censo oficial de 1920, a porcentagem da população alfabetizada constituída de brasileiro (80,3%) acima de 14 anos era proporcionalmente maior do que a população estrangeira residente da cidade de São Paulo (62,3%), da mesma faixa etária; por conseguinte, a porcentagem da população de analfabetos estrangeiros (37,7%) era quase o dobro da populaçao de brasileiros (19,7%)”. DOMINGUES, op. cit., p. 89 e p. 91. Por fim, no tocante ao terceiro mito, Domingues afirma que o propalado do despreparo profissional do negro não encontra

Para outros autores, dentre os quais, Lúcio Kowarick, o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho “livre” no Brasil com a opção pelo trabalhador-imigrante europeu, em detrimento à mão-de-obra até então utilizada ocorreu por razões estritamente de ordem econômica. Assim, a imigração em massa seria uma estratégia de dominação de classe e de redução de salários, uma vez que quanto maior fosse o exército de reserva de mão-de-obra mais fácil seria manter uma política de arrocho salarial, além de desarticular possíveis resistências por parte dos trabalhadores.304

Digna de menção, ainda, a análise de Célia Maria de Azevedo a respeito da representação negativa dos negros e mestiços, utilizada para legitimar a justificativa de uma suposta incapacidade do negro para o trabalho assalariado e da necessidade de trazer imigrantes europeus, em substituição ao negro, tidos como incultos e desqualificados.305 A autora aponta que o negro foi vítima de uma política racista perpetrada pela elite paulista, por isso, teria saído derrotado na competição ocupacional e econômica travada com o imigrante.306

De se recordar o que observam Roger Bastide e Florestan Fernandes que não tendo os escravos – cerca de 800 mil – podido contar com qualquer medida política que favorecesse sua inclusão, encontrando-se alijados de um mínimo de condições materiais, educacionais e de igualdade, e considerado-se ainda o estágio de desenvolvimento econômico do país, restam evidenciadas as causas da marginalização dos libertos.307

No período pó-abolição alguns negros conseguiram colocação assalariada nas lavouras de café, outros passaram a fazer parte de diferentes sistemas de exploração, em regimes tais quais a meação, o arrendamento, a prestação de serviços gratuitos, em troca do uso de pequenas porções de terra para a agricultura

acolhida ante a seguinte pergunta: “como os trabalhadores negros seriam incapazes de continuar realizando as tarefas que até então lhes eram reservadas? Ibid., p. 123.

304

Cf. KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 71.

305

AZEVEDO, C. M. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 23.

306

Loc. cit. “[...] ao negro apático, despreparado em termos ideológicos para o trabalho livre, costuma- se contrapor o imigrante disciplinado e responsável, já suficientemente condicionado à ética do trabalho contratual, em que capacidades de iniciativa e de auto-sacrifício combinam-se de forma maleável a fim de atender aos anseios de mobilidade e ascensão social.”

307

Cf. BASTIDE, R; FERNANDES, F. Brancos e Negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo: Global, 2008, p. 77-80.

de subsistência. Houve mesmo quem vislumbrasse, em um tal estado de coisas, um retrocesso a uma condição semelhante às relações feudais do campesinato.308

Outros, expulsos das fazendas onde se encontravam até então, ficaram à própria sorte, ao relento, restando-lhes a procura por qualquer tipo de atividade que lhes permitisse o sustento, essencialmente em condições precárias, sem absorção pelo mercado de trabalho, o que tem pesadas implicações nos desdobramentos ulteriores, sempre agravando a condição sócio-econômica dos ex-escravos e de seus descendentes.309

Em síntese, aos ex-escravos, em face da omissão estatal, restaram como opções a exploração por relações mal definidas, mantidas pelos libertos com os detentores da terra, a situação de empregados assalariados nas lavouras, a situação de sub-empregados em atividades marginais ou, por fim, a condição de desempregados, com todas as decorrências funestas dela decorrentes.310

A migração direcionada às cidades deu-se maciçamente em direção a centros como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, constituindo a origem dos bairros africanos, ancestrais, segundo alguns, das atuais favelas.311

De se frisar que, ao lado da ausência de recursos materiais que possibilitassem a inclusão social dos libertos312, sequer o desenvolvimento das cidades brasileiras no período permitia a absorção de todo o contingente de ex- escravos pelo mercado. Proliferando as condições precárias a que já se fez referência, condições que por vezes beiravam a linha da ilicitude, operou-se outra substituição, qual seja, a do chicote do feitor ou capataz pela sanção estatal, infligida pelo direito penal.

Na seqüência, até o final do período do Estado Novo, o Estado brasileiro procurou favorecer a assimilação dos afro-descendentes à sociedade, notadamente

308

Cf. ANDRADE, M. C. de. Abolição e reforma agrária, 1991, p. 09. 309

BASTIDE, R; FERNANDES, F. Brancos e Negros em São Paulo..., 2008. 310

Nesse passo, Lucia Cortes da Costa afirma que, a despeito do Brasil encontrar-se “num momento em que a modernização do país exigia investimentos em infra-estrutura”, a prioridade do Estado republicano foi o “pagamento de indenizações aos proprietários de escravos que tiveram parte de seus patrimônios confiscados pelo Estado com a liberação e a ausência absoluta de medidas voltadas para amparar os trabalhadores colocados em liberdade civil, sem as condições necessárias para sobreviver numa sociedade em que a estrutura produtiva se modernizava”. E conclui que “os trabalhadores libertos com o fim da escravidão ficaram submetidos a condições sociais perversas e reféns de seus antigos proprietários”. COSTA, L. C. da. Os impasses do

estado capitalista, 2008, p. 116.

311

Cf. HOLANDA, S. B. História Geral da Civilização Brasileira. Reações e Transações, 1967, p. 156. 312

através da educação escolarizada, buscando sobrepor os valores do grupo dominante, seus modos de vida, sua cultura, sua língua e história.313

Por conseguinte, a concepção de uma “democracia racial” constituiu fator determinante na consolidação de um sentimento nacional brasileiro, até então inexistente no contexto fragmentado da República Velha, dominado pelas elites agroexportadoras.314

Com a instalação do regime político autoritário, nos anos pós-1964, busca- se remodelar o país, através de um processo de modernização de bases burguesas. O Brasil de base econômica marcadamente agrícola, com grande parcela da população vivendo em áreas rurais e com um processo de industrialização ainda incipiente, passa a país urbano, de base econômica industrial. A despeito dessa modernização industrial, enorme contingente de brasileiros, especialmente os afro- descendentes, encontram-se em situações de miserabilidades social.315

Da década de 1970 até nossos dias, embora a economia brasileira tenha passado por alguns períodos de crescimento, os elevados índices de desigualdade racial e social historicamente presente na relação entre brancos e afro-descendentes não se mostram nem dirimidos nem consideravelmente equilibrados ou reduzidos, como se verá adiante, através da análise dos dados quantitativos.

Posteriormente a mencionada análise, parece ser possível sustentar a existência de barreiras racialmente seletivas, que, juntamente com as conseqüências econômicas da exclusão em relação aos meios de produção e subsistência, e o racismo, impedem a possibilidade de mobilidade social vertical para membros dessa parcela, excluindo-os dessa feita, do processo de implementação e exercício da cidadania.

Todas as mazelas sofridas pelos ex-escravos e seus descendentes, ora relatadas de maneira muito sucinta, aliadas a outros fatores desfavoráveis, tais

313

Nesse passo, ao unir-se eugenia, trabalho, reforma moral, educação e assimilacionismo, tem-se os elementos essenciais à compreensão da chamada “democracia racial” no imaginário dos afro- brasileiros nas décadas que se seguiram à abolição da escravatura no Brasil. Ibid., p. 68. No mesmo sentido, ZONINSEIN, J.; FERES JÚNIOR, J. Ação Afirmativa e desenvolvimento. In: Ação

Afirmativa e Universidade: experiências nacionais comparadas. Brasília: Editora UnB, 2006, p.

27. 314

ZONINSEIN, loc. cit. 315

Cf. SISS, op. cit., p. 68. Dessa maneira, o ambiente ideológico do desenvolvimentismo mostrou-se avesso ao diagnóstico de desigualdades raciais em nosso país. [...] não podemos deixar de notar que durante governos desenvolvimentistas – Getúlio, Juscelino e Jango – o racismo e a discriminação racial praticamente não estiveram presentes na agenda pública brasileira. Mesmo a Lei Afonso Arinos, primeira medida legislativa de vulto com objetivo de coibir tais práticas, foi aprovada no governo Dutra, mais liberal e menos desenvolvimentista. ZONINSEIN, op. cit., p. 28.

como, o atraso e a dependência econômica do país, a inflação, os históricos índices de crescimento insatisfatórios, a concentração de renda, os latifúndios, e inúmeras outras vicissitudes amplamente conhecidas, geradoras de crescente desigualdade social, contribuíram, ao longo do tempo, para o agravamento da situação de exclusão, originadora da negatividade dos afro-descendentes na contemporaneidade.316

Tal negatividade, melhor explorada em tópico sucessivo em termos de dados socioeconômicos revelados pelas estatísticas, constitui a base da situação de vulnerabilidade que parece justificar a adoção de medidas seletivas de realocação de recursos preferencialmente em direção a tal grupo.

Além disso, a situação de vulnerabilidade dos afro-descendentes no contexto brasileiro apresenta-se agravada, isto porque, o Brasil ostentou e ainda ostenta, conforme se analisará nos próximos tópicos, uma estrutura racista, haja vista, ulteriormente, a abolição, “a sociedade brasileira, nos mais diversos setores, não se colocou política e ideologicamente contra o racismo”317, sendo que o Estado brasileiro só muito recentemente parece ter assumido publicamente a existência de discriminação racial em nosso país e o fato de que algo deveria ser feito a respeito.318

A adoção de programas afirmativos constitui umas das medidas tendentes à correção desse problema319 e implica necessariamente no reconhecimento de que determinada parcela necessita de apoio para atingir a igualdade de oportunidades, aliando dessa forma, igualdade e desenvolvimento.

Nesse passo, a presença de fatores determinantes da situação de vulnerabilidade dos afro-descendentes deve ser evidenciada através de critérios objetivos, haja vista a necessidade de consenso do restante da sociedade, acerca do ônus a ser suportado em busca de uma redefinição do pacto social, com vistas a garantir uma representação eqüitativa das diversas categorias sociais.

Nesse momento, surgem as seguintes questões: a inclusão dos grupos vulneráveis, em especial os afro-descendentes, deve ser fundamentada no pressuposto da desigualdade racial ou da desigualdade social? A dimensão

316

O histórico da escravidão ainda “afeta negativamente a vida, a trajetória e inserção social dos descendentes de africanos em nosso país”. MUNANGA, K.; GOMES, N. L. O Negro no Brasil de

Hoje, 2006, p. 176.

317

Loc. cit. 318

Cf. ZONINSEIN, J.; FERES JÚNIOR, J. Ação afirmativa e desenvolvimento, 2006, p. 29. 319

econômica é capaz de explicar as desigualdades entre brancos e negros no Brasil?320 A resposta a tais indagações requer uma análise ainda que sucinta a respeito dos conceitos de raça e de racismo, e as suas diversas conotações empregadas, bem como suas implicações nas relações sociais entre brancos e negros, no contexto brasileiro.321