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Da justificativa ou dimensão filosófica das ações afirmativas

CAPÍTULO 1 − VALORES CENTRAIS DA MODERNIDADE: LIBERDADE, IGUALDADE

1.4 IMPACTOS DA EVOLUÇÃO DO IDEÁRIO DE LIBERDADE E IGUALDADE NA

1.4.3 Da justificativa ou dimensão filosófica das ações afirmativas

Do exposto, no presente item explorar-se-ão alguns dos fundamentos filosóficos comumente relacionados às políticas de ação afirmativa. As ações afirmativas justificam-se filosoficamente, a partir, basicamente, de duas teorias: a teoria da Justiça Compensatória e a teoria da Justiça Distributiva, às quais, portanto, insta reportar-se neste passo.

A primeira teoria da justiça referida baseia-se na premissa sobre a qual se uma parte lesiona a outra, tem o dever de reparar o dano, ou seja, de propiciar à vítima o retorno ao status quo anterior a lesão. Por conseguinte, a idéia de justiça compensatória baseia-se na retificação de injustiças perpetradas no passado, tanto por parte de particulares, como por parte do Estado, contra determinado indivíduo ou parcela de indivíduos.

Tal reparação, para os que perfilham tal corrente, justifica-se numa sociedade democrática devido ao dever cultural, social e econômico a ser suportado pelas gerações contemporâneas. Dessa maneira, a teoria compensatória visa uma reparação de um dano sofrido no passado, por determinados membros pertencentes a uma parcela vulnerável, buscando estabelecer justiça com vistas ao passado.161

No entanto, segundo certa linha de pensamento, um dos problemas comprometedores da utilização da teoria da justiça compensatória seria que, por tratar-se de uma justiça reparatória, seria imprescindível mensurar-se o dano sofrido pela parte violada, com vistas à reparação do dano pela parte violadora.162

Já a idéia da teoria da justiça distributiva ou redistributiva consiste na melhor distribuição de direitos, benefícios e obrigações, entre os membros da sociedade.163 Tem por finalidade, promover oportunidades especiais a membros pertencentes a grupos vulneráveis.

161

Conforme Joaquim Barbosa Gomes preceitua a justiça compensatória “ao adotarem os programas de preferência em prol de certos grupos sociais historicamente marginalizados, essas sociedades estariam promovendo, no presente, uma reparação ou compensação pela injustiça cometida no passado”. GOMES, J. B. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, E. dos; LOBATO, F. (Orgs.). Ações Afirmativas debate, 2003, p. 62.

162

De se observar ser problemático tal entendimento, na medida em que pode converter-se em justificativa para furtar-se do dever de indenizar. Certos danos, como danos ambientais causados por um acidente nuclear, por exemplo, são dificilmente mensuráveis ou aferíveis; nada obstante, não resta dúvida que estabelecem o dever de indenizar.

163

MONTORO, A. F. Introdução à Ciência do Direito. 26. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 229.

O Estado, ao buscar um redirecionamento e uma equalização das oportunidades aos cidadãos pertencentes a parcelas vulneráveis, atua de maneira interventiva, com vistas ao restabelecimento do equilíbrio social, ameaçado por barreiras impostas pela sociedade, através de práticas preconceituosas ou discriminatórias ou situações desfavoráveis, como a hipossuficiência.

Ademais, diferentemente da justiça compensatória, que se volta para o passado, a justiça distributiva adota uma perspectiva focada no presente, e direcionada àqueles membros de parcelas desfavorecidas, por razões de ordem concreta e material.

Nessa esteira, cumpre-se mencionar a proposta de Jonh Rawls, apresentada em sua obra Uma teoria da justiça, na qual o autor defende seus amplamente conhecidos princípios de justiça, os quais informariam a estrutura básica social, isto é, princípios estes que, segundo Rawls, “governam a atribuição de direitos e deveres e regulam as vantagens econômicas e sociais”.164 O filósofo assim formula os dois princípios da justiça:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculada a posições e cargos acessíveis a todos.165

Assim, segundo o autor, cada pessoa deveria ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas, v.g. liberdade de expressão, de consciência, de pensamento, de locomoção, de participação política. De outro lado, as desigualdades socioeconômicas deveriam ser distribuídas de maneira que não só redundassem nos maiores benefícios possíveis para os menos favorecidos, bem como fossem minoradas através da promoção de oportunidades.

Tais princípios constituem uma especial idéia de justiça, uma vez que, todos os “valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, as bases sociais do auto-respeito são para serem distribuídos igualitariamente, ou então que a distribuição desigual desses valores seja vantajosa, para todos”.166

164

RAWLS, J. Uma Teoria da justiça. 2. ed. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 64.

165

RAWLS, loc. cit. 166

Assim, o equilíbrio entre o primeiro e segundo princípio geraria, segundo Rawls, uma rede de cooperação social, viabilizando a organização de uma sociedade mais harmoniosa. Para tanto, seria necessária a adoção de uma ética altruísta, fundada na abdicação consciente dos privilégios e vantagens materiais em função dos desfavorecidos.Nesse contexto, propugna por uma política da diferença como novo mecanismo de igualdade. Assim, de acordo com o autor

[v] ninguém merece a maior capacidade natural que tem, nem um ponto de partida mais favorável na sociedade. Mas, é claro, isso não é motivo para ignorar essas distinções, muito menos para eliminá-las. Em vez disso, a estrutura básica pode ser ordenada de modo que as contingências trabalhem para o bem dos menos favorecidos. Assim somos levados ao princípio da diferença se desejamos montar o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórios em troca.167

Dessa maneira, a questão de serem tidas como justas ou injustas, a distribuição natural de talentos ou a posição que cada indivíduo ocupa na sociedade, encontra-se ligada aos modos pelos quais as instituições as manejam.168

Portanto, tais desigualdades imerecidas por fatores de nascimento, de talentos naturais e de posições menos favorecidas, advindas de gênero, raça, dentre outros, devem ser compensadas de alguma forma.169 Portanto, observando-se qual o grupo socialmente desfavorecido, em face de fatores quais raça, sexo, cultura ou religião e outros, instrumentos legislativos compensatórios devem ser utilizados na reparação das injustiças – affirmative action.

Para tanto, propõe o princípio da diferença o qual determina que a fim de tratar as pessoas igualitariamente, e de proporcionar uma genuína igualdade de oportunidades, “a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A idéia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade”.170 Ademais, Rawls propugna, através da combinação desse princípio com o princípio da igualdade de oportunidades, uma igualdade democrática

[...] supondo-se a estrutura de instituições exigida pela liberdade igual e pela igualdade eqüitativa de oportunidades, as maiores expectativas daqueles

167

RAWLS, J. Uma Teoria da justiça, 2002, p. 108. 168 Ibid., p. 109. 169 Loc. cit. 170 Loc. cit.

em melhor situação são justas se, e somente se, funcionam como parte de um esquema que melhora as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade.171

Dessa maneira, Rawls subverte a visão de sociedade justa conforme uma visão tradicional platônica, a qual aloca seus integrantes focalizando aptidões e habilidades, e propugna uma sociedade justa a partir de uma visão mais concreta e humana do justo, em favor dos desfavorecidos.

Parece imprescindível para realização dessa idéia de justiça como eqüidade, centrada na igualdade democrática, que existam mecanismos que proporcionem a redução das desigualdades socioeconômicas.

Segundo Rawls, a justiça deve figurar como a virtude primeira de uma sociedade, devendo ser vislumbrada num plano institucional, posto que são as instituições que podem beneficiar ou prejudicar uma parcela da sociedade, não havendo justiça isolada dos sistemas político e econômico.172

No tocante a justificação filosófica das ações afirmativas destacam-se ainda as considerações de Agnes Heller173, para quem a igualdade social seria constituída por normas e regras, as quais são responsáveis por “igualar” indivíduos pertencentes ao mesmo grupo social e “desigualar” indivíduos pertencentes a grupos sociais diferentes.174

Para a autora, o motivo de todos os conflitos sociais e políticos gravitarem na expansão ou restrição de um grupo social – a aplicação de iguais normas e regras,

[...] ou cada tempo que tais conflitos envolvem a reivindicação pela introdução e descoberta de normas e regras alternativas para constituir novos grupos, mais amplos ou estreitos, o assunto na agenda é igualdade

171 Loc. cit.

172

No entanto, conforme pontua Daniela Ikawa “no liberalismo Rawlseniano o ser humano é, em sua essência, um ser abstrato, capaz de uma escolha descontextualizada e, portanto, um ser com sua essência totalmente explicitada”. IKAWA, D. Ações Afirmativas em Universidades. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 62. Portanto, a teoria de Rawls ainda encontra-se fortemente apegada a posição formal de constituição de direitos, visto que o sujeito apresentado pelo filósofo é tão descontextualizado quanto o “indivíduo Kantiano do reino dos fins”. IKAWA, ibid., p. 62. 173

As considerações da autora partem de uma concepção capaz de escolhas contextualizadas materiais, haja vista que, além de uma visão abstrata e igualitária dos direitos, deve-se levar em conta a especificação diferenciada de tais direitos, através do respeito ao “outro”. Assim, “a imparcialidade que guia o processo de constituição de direitos não passará aqui por um véu de ignorância. Passará, em decorrência do conceito de ser humano adotado, pelo ponto oposto ao véu, por uma posição original contextualizada voltada ao aprofundamento do conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo”. IKAWA, ibid., p. 64-65.

174

ou desigualdade quanto a liberdade ou a oportunidades de vida, ou ambas.175

Por conseguinte, os conflitos sociopolíticos contestatórios, por definição, buscam questionar “o verdadeiro tipo de igualdade e desigualdade constituído pelas normas e regras estabelecidas.”176 Assim, se “pessoas defendem normas aceitas como justas, são normalmente motivados por interesses investidos [...]”, e pessoas que “desafiam as mesmas normas e regras como injustas são frequentemente motivadas por um interesse dinâmico.”177

Para Heller, a razão dos conflitos sociais gravita na difusão ou restrição de um grupo social ao reivindicar a introdução e descoberta de normas e regras alternativas, e ao contestar “o verdadeiro tipo de igualdade e desigualdade constituído pelas normas e regras estabelecidas”.178

É a partir de tal concepção que Heller expõe a idéia de justiça dinâmica, em clara, oposição à idéia de justiça estática179, mencionando a necessidade de tematizar e questionar as normas e regras que não são mais consideradas como legítimas, por não mais atender as demandas sociais como um todo.180

Agnes Heller considera que, os conflitos sociais e políticos, podem ser ajustados conforme três procedimentos, pelo discurso, pela negociação e pela força, esclarecendo que, a racionalidade de razão se contrapõe a racionalidade de intelecto, na medida em que, a primeira refere-se a ‘observação de normas e regras’, enquanto a segunda consiste em “observar pelo menos uma norma ou valor enquanto questionando, testando e rejeitando outras”.181

Por fim, para a autora, a racionalidade de intelecto diz respeito, a razão comunicativa, posto que “o valor (ou norma) observado invalida ou revalida normas e

175

Loc. cit. 176

HELLER, Além da justiça, 1998, p. 197. 177

Ibid., p. 195. 178

Ibid., p. 197. Nesse contexto insere-se a luta dos negros e do movimento abolicionista ao contestarem as regras permissivas do trabalho escravo, no período escravagista, durante o qual imperavam na sociedade brasileira os valores da hierarquia e da desigualdade em detrimento aos valores liberdade e participação.

179

Para Heller, o conceito formal de justiça significa “a aplicação consistente e contínua das mesmas normas e regras a cada um dos membros de um agrupamento social aos quais elas se aplicam”. Ibid., p. 20.

180

Vislumbram-se, portanto, no movimento contestatório negro a figura da “justiça dinâmica” referida por Heller. Na medida em que o movimento dos negros tanto anteriormente ao contestar a escravidão, como na contemporaneidade ao reclamar uma igualdade material, mediante a contínua contestação da ordem vigente desempenhou e desempenha papel relevante e imprescindível para realização da “justiça dinâmica”.

181

regras existentes, e isso pode acontecer apenas por meio de argumentação racional como justificativa”182. Portanto, um procedimento é racional “na medida em que as normas e regras de uma sociedade ou grupo social incluem tal procedimento ou, alternativamente, se o valor ou norma observada o faz”183.

Por conseguinte, as normas e regras sociopolíticas serão boas e justas, desde que tenham legitimidade perante todos os envolvidos num discurso de valor racional, sob a égide da justiça dinâmica, no momento da legislação. E, o “único procedimento justo para justiça dinâmica (generalizada e universalizada) é discurso”184 realizado “entre partes contestantes livres e iguais”.185

Nesse passo, a dimensão de partilha permite que se renda homenagem ao Princípio da realidade e à teoria das diferenças de situação186, levando em consideração as circunstâncias concretas, o homem concreto187, com suas vulnerabilidades e condicionamentos, colocando a racionalidade assim orientada em condições de levar em conta tais fatos concretos na alocação de recursos.

Przeworsky concluí pela possibilidade de o Estado conferir alguma racionalidade na distribuição dos recursos escassos através de intervenções na economia – ainda que reconheça os riscos que afligem o Estado keynesiano.188Assim, o Estado Social intervencionista constitui uma tentativa de alocação de recursos favorecedora da igualdade, compreendida esta nos limites possíveis em um contexto capitalista.

Uma das razões do refluxo do Estado social é, também como visto, ao lado da ampla difusão do ideário neoliberal e da nova realidade de concorrência internacional, a crise fiscal enfrentada pelo modelo, em razão do alto custo de manutenção das políticas sociais universais que o caracterizam.

Em um contexto de reputada escassez de recursos, a exigir uma racionalização e otimização na alocação dos recursos públicos pelo Estado, através

182

Loc. cit. 183

HELLER, Além da justiça, 1998, p. 335. 184

Loc. cit. 185

Ibid., p. 336. 186

Sobre a teoria das diferenças de situação e o princípio da realidade, ver adiante. 187

CALVÈS, G. Les politiques de discrimination positive. Problèmes politiques et sociaux, Paris, n. 822, 1999, p. 15.

188

Aposta, para tanto, no aperfeiçoamento dos mecanismos de decisão democrática. Faz-nos recordar a idéia habermasiana do controle da racionalidade estratégica de tipo instrumental pela racionalidade comunicativa, conforme nos lembra Leonardo Avritzer. AVRITZER, L. A Moralidade

da Democracia: Ensaios em Teoria Habermasiana e Teoria Democrática. São Paulo: Perspectiva;

de políticas públicas e atendendo a uma racionalidade diversa daquela do mercado, a justiça distributiva acaba por embasar a instauração de critérios de seletividade no âmbito das políticas públicas, de modo a permitir a otimização dos recursos, o favorecimento da igualdade substancial e a correção das desigualdades nefastas.189

Portanto, a virtude da seletividade radica em incrementar a racionalização dos gastos públicos com políticas sociais, otimizando os recursos ao atingir especificamente determinados públicos visados, como as pessoas mais marginalizadas e fragilizadas socialmente. Fala-se, aqui, quanto ao Estado, em um Estado social seletivo190, que orienta a alocação de recursos, através das políticas públicas, segundo critérios específicos de seletividade com vistas à reformulação do pacto social191, à luz do princípio da solidariedade ou fraternidade.192

Assim, no tocante à concepção de justiça, parece claro permanecer na ordem do dia a concepção distributiva, embora readequada, podendo talvez ser nomeada justiça redistributiva193 ou corretiva194, na medida em que visa mitigar ou

189

ROSANVALON, apud HOLCMAN, R. La protection sociale, 1997, p. 07. 190

CALVÈS, G. Les politiques de discrimination positive, 1999, p. 03. 191

Ibid., p. 05. 192

Assim as ações afirmativas ao realocar vagas da educação superior para outras parcelas que não as mais tradicionais, visam estabelecer limitações às prerrogativas de poder que os tidos “mais qualificados” dispõem no acesso ao ensino superior. CÉSAR, R.C.L. Políticas de inclusão no ensino superior brasileiro: um acerto de contas e de legitimidade. In: BRANDÃO, A.A. Cotas

raciais no Brasil: A primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A, 2007, p. 26. Solidariedade vincula-

se, à toda evidência, à idéia de alteridade que remete, por sua vez, a Emmanuel Lévinas: “a face do Outro entra em nosso mundo; ela é uma `visitação`; é responsabilidade: ela me olha e se refere a mim. A face de Outro me impõe uma atitude ética: `é o pobre pelo qual posso tudo e ao qual devo tudo`. É assim que a face se subtrai à posse; a face do Outro – afirma Lévinas – me fala e me convida a uma relação que não tem medida comum com um poder se exerce, ainda que fosse prazer ou conhecimento’. A face do Outro, portanto, me co-envolve, me põe em questão, torna-me imediatamente responsável. A responsabilidade na relação com o Outro se configura, no pensamento de Lévinas, como a estrutura originária do sujeito. Desde o início, `o Estranho que não concebi nem dei à luz, já o tenho nos braços. E minha responsabilidade em relação ao Outro chega até o ponto que eu me deva sentir responsável também pela responsabilidade dos outros. E isso comporta a construção das instituições e também do Estado. Com efeito, escreve Lévinas, `o Outro pelo qual sou responsável pode ser o algoz de um terceiro que também é meu Outro`. Daqui a necessidade de uma justiça e, portanto, das instituições e do Estado. Disse Lévinas em uma entrevista: `Se tivéssemos existido em dois, na história do mundo teríamos parado na idéia de responsabilidade. Mas, do momento em que nos encontramos em três, põe-se o problema da relação entre o segundo e o terceiro. À caridade inicial se acrescenta uma preocupação de justiça e, portanto, à exigência do Estado, da política. A justiça é uma caridade mais completa`. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. v. 6, p. 425.

193

HIRSCH, apud HOLCMAN, R. La protection sociale, 1997, p. 49. 194

Nesse sentido,irretocável a síntese de Pierre Rosanvalon, ao considerar que, as relações entre a noção de justiça e de solidariedade “se encontram de um só golpe radicalmente alteradas. Para dizer as coisas de outro modo, o rasgar do véu da ignorância leva ao reencontro da oposição tradicional entre justiça distributiva e justiça comutativa [...]. Pode-se, com efeito, muito esquematicamente, definir a solidariedade como uma forma de compensação de diferenças. Ela se caracteriza, então, por uma ação positiva de partilha”. ROSANVALON, apud HOLCMAN, op. cit., p. 44.

eliminar desigualdades iníquas e, em geral, situações de assimetria ou vulnerabilidade socialmente indesejáveis. Tal modelo de justiça visa executar com urgência um “modelo de justiça social, onde todos os grupos, e culturas possam ser representados na distribuição dos bens, direitos e recursos sociais”. 195

É sob a égide de tais valores que se pretende ver instaurado, conforme alguns, um novo paradigma de estado e de concepção de justiça196, no qual

inserem-se as ações afirmativas e a política de cotas.

Abordou-se no presente capítulo, a aparente “tensão” entre os valores liberdade e igualdade, e suas implicações na idéia de Estado e de justiça. Propôs-se que os valores liberdade e igualdade são complementares, indivisíveis e interdependentes, visto que, constitutivos um do outro.

Nessa esteira, desmistifica-se o caráter aporético das ações afirmativas haja vista que, a despeito de tais institutos implicarem um cerceamento na liberdade de todos no alcance de postos em iguais condições de partida, promovem uma afirmação da igualdade, ao instituírem uma igual consideração pelas situações dos que querem participar das corridas por bens e recursos valiosos, mas não detém as condições necessárias para tanto, quer seja por uma desigualdade natural ou por uma desigualdade iníqua calcada em discriminação ou injustiça histórica.

Viu-se ainda como a dialética histórica das idéias político-filosóficas de liberdade e igualdade e suas reformulações conduziram, em sede do modelo de Estado e do ideal de justiça, da concepção estatal liberal à social-democrática, e da concepção de uma justiça comutativa à justiça distributiva, e mais recentemente, conforme Agnes Heller, à idéia de justiça dinâmica. Por conseguinte, o homem antes visto de uma forma abstrata e distante, torna-se um ser concreto/palpável e particularizado197.

Nesse passo, emerge a necessidade de implementação de medidas públicas ou privadas, de natureza voluntária ou coercitiva, com vistas a promover a inclusão jurídica, social e econômica de indivíduos ou parcelas sociais tradicionalmente discriminadas, por fatores tais como raça, gênero, origem, dentre