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DA (IM)POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO

3. INSERÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL

3.3 DA (IM)POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO

Para parcela da doutrina, atribuir eficácia normativa aos precedentes judiciais em um sistema tipicamente de tradição civilista, geraria uma série de disfunções no sistema jurídico. Os principais argumentos contrários à sua implementação e de impossibilidade de aplicação seriam de que: 1) haveria o engessamento do direito, em razão de impossibilidade de se

desenvolver decisões adequadas à realidade social, 2) seria uma ofensa ao princípio da separação dos poderes, se considerar que o judiciário não possui legitimidade democrática para criar normas e 3) geraria um óbice à aplicação da igualdade substancial, no sentido de que a necessidade de respeito aos precedentes impediria o tratamento diferenciado das situações.

Ocorre que respeitar os precedentes judiciais nos sistemas jurídicos de tradição de civil law não tem como objetivo subverter valores da ordem jurídica, tampouco converter o sistema à outra tradição jurídica. A ideia de se implantar técnicas jurídicas alienígenas no ordenamento jurídico brasileiro tem como finalidade preencher lacunas interpretativas que o sistema jurídico legalista apresenta e que, com os instrumentos jurídicos que possui, não está sendo capaz de assegurar a realização dos valores igualdade e liberdade que se dá através da segurança jurídica e da racionalidade da jurisdição.

Quanto à primeira crítica, que diz respeito ao engessamento do direito, o sistema jurídico brasileiro só se tornaria cristalizado se pudéssemos supor que a força obrigatória dos precedentes fosse capaz de impedir o avanço do direito. Tal premissa não merece ser acatada, uma vez que parte de suposição de que o precedente não pode ser superado. Ora, nem a própria common law foi capaz de preservar o entendimento de que o precedente judicial não pode ser superado. A decisão de London Tramways vs. London County Council, que determinou a impossibilidade de revogação dos precedentes foi superada pelo célebre Practice Statemente de 1966, que afirmou que a House of Lords poderia passar a contrariar seus precedentes quando isso não lhe parecesse correto e pudessem levar à injustiça em um caso concreto.179 O fato de se dever respeito aos precedentes judiciais não implica no cometimento de injustiças ou desigualdades perante o caso concreto. Enquanto uma norma existir no ordenamento jurídico e estiver em consonância com os valores da sociedade, não há que se falar em sua revogação. Agora, se for verificado pelo intérprete a alteração do contexto fático, o surgimento de novos valores e a inviabilidade de sua perpetuação, com a devida motivação, é totalmente justificável que haja superação do entendimento anteriormente estabelecido. A ausência de precedentes com força obrigatória dificulta a coerência do sistema jurídico impedindo a sua continuidade.

Já em relação à afirmação de que o respeito aos precedentes judiciais e a atribuição de força normativa estaria ofendendo o princípio da separação dos poderes há muito tempo perdeu seu fundamento teórico. Essa separação clássica deixou de existir. Sabemos que todos

os poderes, legislativo, executivo e judiciário, realizam funções típicas e atípicas e, num contexto de constitucionalismo contemporâneo, de velocidade das informações e avanços sociais não é possível conceber que o poder legislativo consiga, através do processo legislativo constitucional, prever e disciplinar todas as situações da vida em sociedade. O judiciário se mostra, pois, como um poder capaz de ajustar o ordenamento jurídico à velocidade de mudança da realidade, atribuindo à norma interpretação mais adequada à realidade. O princípio constitucional da separação dos poderes, enquanto cânone constitucional interpretativo, reclama a pluralização dos intérpretes da Constituição, mediante a atuação coordenada entre os poderes estatais – legislativo, executivo e judiciário – e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, em um processo contínuo, ininterrupto e republicano, em que cada um desses players contribua, com suas capacidades específicas, no embate dialógico, no afã de avançar os rumos da empreitada constitucional e no aperfeiçoamento das instituições democráticas, sem se arvorarem como intérpretes únicos e exclusivos da Carta republicana180. Além disso, os precedentes elaborados na civil law, não são normas forjadas a partir da vontade do julgador ou com base nos costumes da sociedade, mas sim de acordo com o texto normativo, que, por sua vez, é a própria lei, não podendo ser contrária a ela. Tais leis são fruto da vontade popular e os tribunais, quando extraem a norma a partir do precedente, o fazem com base nessa vontade.

E, por final, em relação à crítica que diz respeito à não observância da igualdade substancial, respeitar os precedentes não quer dizer a inobservância das desigualdades, nem a sua aplicação de maneira irrefletida sem analisar antes o caso concreto posto em questão e as suas peculiaridades. Os precedentes, assim como as leis, devem ser racionalmente utilizados.181 Nesse sentido, para impedir o seu uso de forma irrestrita é que a ferramenta do distinguishing entra em cena, para verificar se o caso presente possui os fatos materialmente relevantes que autorizam a sua aplicação. Desta forma, fica demonstrado que não se trata de inobservância das desigualdades, pelo contrário, trata de observação do caso concreto e a sua comparação com o precedente judicial. Valer-se do precedente é valer-se da comparação e, neste sentido, implica na verificação da igualdade substancial do caso e não a adaptação do precedente a qualquer situação.

Desta forma, apesar das críticas, que são comuns para qualquer situação que se apresente com novas metodologias e ideias, o debate jurídico é sempre bem-vindo para fins

180 Trecho de voto proferido pelo Ministro Luiz Fux na ADI 5105, (julgado de 01/10/2015). 181 DUXBURY, Neil. Ob. cit. pág.113.

de conhecimento e aprendizado. E, hoje, talvez possa se afirmar que a utilização e valorização dos precedentes judiciais seja vista como uma solução viável para a garantia da segurança jurídica e isonomina na tradição jurídica de civil law. O que não quer dizer que, daqui há algum tempo, esta ideia possa estar ultrapassada ou verificada a sua inviabilidade de aplicação no sistema de tradição de civil law. Pois, o direito é reflexo daquilo que vive a sociedade, sendo, pois, cambiante, mutável e flexível. Da mesma forma devem ser, então, os seus institutos, para ao invés de se extinguirem, passarem por adaptações para preservar a sua existência.