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SUA

EFICÁCIA

VINCULANTE

PARA

OS

VALORES

DEMOCRÁTICOS

Neste capítulo pretendo demonstrar a importância da força vinculante dos precedentes judiciais com uma decisão do STF que equiparou a homofobia ao racismo, criando um tipo penal por analogia182. O faço a partir do exame do recente leading case do STF que, em ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO 26 DF)183 , equiparou as condutas homofóbicas aos crimes de racismo. Sem pretender causar espanto ante à aparente violação da legalidade penal, nullum crimen nulla pena sine lege escripta, vedação da analogia in malam partem no direito penal, almeja-se apenas apresentar a decisão da Corte Constitucional brasileira que, além de criar uma figura penal por analogia, o fez com eficácia vinculante.

Esse fato jurisprudencial é muito ilustrativo quanto à necessidade de subordinação dos Tribunais e juízes ao precedente do STF, pois trata-se de ramo do direito que autoriza o Estado a ingressar no bem jurídico mais precioso do homem, a liberdade. Com efeito, ao se criar jurisprudencialmente um tipo penal por analogia, afigura-se importante à segurança jurídica e à igualdade saber se os demais tribunais e juízes observarão o precedente criado. Se essa decisão do STF não fosse dotada de eficácia vinculante, não saberíamos ao certo quais comportamentos podemos adotar sem nos preocuparmos com as sanções penais que deles decorreriam. Além de grande insegurança jurídica, correríamos o risco de decisões judiciais contraditórias, aplicando-se sanções penais pelo comportamento homofóbico de uns, mas deixando outros atos de homofobia sem consequência jurídica alguma, o que certamente

182O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos

estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.”Acesso em: https://www.conjur.com.br/dl/teses-stf-criminalizacao-homofobia1.pdf

183Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de

criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade (grifo nosso) de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”).”

esvaziaria o princípio da igualdade e abriria margem à perseguição política do Estado e à seletividade da imposição da sanção penal.

Haverá insegurança jurídica sempre que não houver convergência plausível entre determinada solução jurisdicional e aquilo que a legítima expectativa de padrões morais decorrentes dos precedentes judiciais estabelecem como justo e correto à luz dos valores constitucionais, para os cidadãos. Os precedentes, sobretudo quando dotados de força vinculante, são considerados de boa fé pelos destinatários do ordenamento jurídico para a decisão sobre suas condutas, não se revelando razoável, nem consentâneo com os valores democráticos que o judiciário adote soluções díspares em função das partes da relação jurídica processual, ou em função do órgão jurisdicional que, em razão de visões pessoais e ideológicas distintas, interpretam o ordenamento jurídico sem ter em vista os padrões decisórios anteriores, sentindo-se à vontade para realizar sua visão ideológica no ato jurisdicional, que deveria vincular-se, unicamente, ao ordenamento jurídico abrangente dos padrões decisórios anteriores.

A decisão do STF, além de ilustrativa quanto à necessidade de se atribuir força vinculante aos precedentes, demonstra a importância da analogia como fonte do direito no constitucionalismo contemporâneo. Com efeito, a lei não constitui mais única e exclusiva fonte do direito nos países de tradição de civil law, que cede espaço para a analogia como metodologia para aplicação racional do direito. A solução jurídica, portanto, passa pela utilização de casos precedentes semelhantes como paradigma para a solução dos casos futuros, de forma a evitar contradições e insegurança.

Além de conceder importância para analogia e atribuir eficácia vinculante para a decisão proferida pelo STF, a Corte Brasileira ampliou o conceito de racismo, atribuindo- lhe uma dimensão social, que projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou

fenotípicos e compreende outros grupos vulneráveis, como as pessoas LGBTI+. O fato de o

Poder Legislativo não dar tipificação aos crimes de homofobia e transfobia, além de expor grupos minoritários a situações graves de violência social, suscita um desvio dos comandos constitucionais, o que pode justificar, por sua vez, a intervenção do Poder Judiciário. Neste sentido, quando me refiro na presente dissertação à existência de um diálogo entre os Poderes, que passou a ser indispensável depois da segunda metade do séc. XX, é exatamente essa a referência. Veja, se a ausência de criminalização da homofobia contribui para restrições indevidas de direitos fundamentais e para um quadro generalizado de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, o Poder

judiciário se depara, desta forma, com uma inação por parte do Congresso Nacional. Neste sentido, estas situações demandam atuação aditiva do STF. E, na medida em que uma tese jurídica é fixada, formando assim a ratio decidendi da questão em análise, tal entendimento passa a vincular todas as demais instância e juízes de tribunais a fim de uniformização, que terá como resultado, igualdade e segurança jurídica.

É possível perceber, assim, que países de tradição de civil law, que têm a lei como fundamento de legitimidade do direito, no caso do Brasil, têm tido uma certa urgência em definir determinados conteúdos de direito. E, toda a burocracia legislativa que é demandada para elaboração de uma lei interfere, temporalmente, na atualização do direito diante das necessidades sociais efêmeras. Quer dizer, o Supremo Tribunal passa a buscar outras fontes de direito em razão da necessidade de fechar o ciclo hermenêutico deixado pelo legislador. A analogia, assim, deixa de apenas arrematar lacunas e se mostra como fonte legítima do direito. Busca-se um caso foco para que o caso discutido (ainda que em controle abstrato) torne-se leading case para os casos futuros.

Caso isso não ocorresse, ou seja, não se abrindo à influência de outras tradições jurídicas, a tutela de direitos a nível nacional não seria isonômica. Pois, não havendo lei que pudesse ser aplicada genericamente, cada tribunal iria decidir com a base motivacional que encontrasse ao seu alcance, divergindo o entendimento e proporcionando decisões solipsistas. Que, em um Estado que pretende garantir a igualdade e a segurança jurídica seria inapropriado ocorrer. Logo, o uso da analogia serve como critério de decisões judiciais, suprindo lacunas e cumprindo o mandamento constitucional de igualdade.

Não estou afirmando que o Supremo Tribunal Federal poderia criar um tipo penal como se legislador fosse. Estou apontando que trata-se de uma omissão legislativa que deve ser enfrentada pela Suprema Corte, como Guardiã da Constituição. Com efeito, deve garantir que os direitos fundamentais sejam realizados na maior medida possível, principalmente o direito de sermos iguais mesmo diante de nossas diferenças. Pensar deste jeito, alimenta a liberdade, bem maior da personalidade.