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1.2 NOVAS MANEIRAS DE PRODUZIR, CONSUMIR, APRENDER, ENSINAR

1.2.1 DA MAIS-VALIA AO MAIS-DE-GOZAR: CAMINHOS DA ICONOMIA

Chamados por uns de globalização, por outros de pós-modernidade e ainda, de modernidade líquida, as muitas controvérsias sobre qual termo melhor traduz este momento parecem apontar para a complexidade desta nova ordem mundial.

Nunca antes avanços tecnológicos foram tão profundos, abrangentes, sofisticados e acessíveis. Limites e barreiras são quebrados a todo momento. Marcas de uma nova era que traz a promessa inquietante de uma suposta completude, de acesso a algo que falta e de satisfação do desejo - e que se delineia no registro do imaginário. E para dar conta desta voracidade e agilidade consumir surge como o caminho mais atraente. Eugênio Bucci (2002a) traz essa reflexão ―Assim, o consumo da mercadoria tem sua raiz no desejo inconsciente. Na mediação dessa busca é que incide o valor.‖ (p. 58).

Estando a noção de valor obrigatoriamente ligada ao trabalho humano, na medida em que este é alienado do trabalhador confere à mercadoria o valor de troca, capaz de regular as relações entre indivíduos (mais-valia). A mercadoria deixa de ser significado, passando a significante.

Ao longo de sua obra 12 Jacques Lacan tem um olhar atento aos cenários em que o sujeito transita. E a cada novo contexto estabelecido a forma como este sujeito irá buscar a satisfação de seu desejo refletirá não só a sua busca individual, mas estará toda ela influenciada e sustentada pelas regras e demandas sociais que dizem a este sujeito o que fazer e por onde ir.

12 O livro de Elisabeth Roudinesco ―Jacques Lacan – Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento‖ (1994) auxiliou em diversos momentos na construção de uma visão global da trajetória do autor

O autor no Seminário 16 (1968-1969, 2008), fazendo uma aproximação entre psicanálise e marxismo coloca a mais-valia em relação ao mais-de-gozar (plus de jouir); uma maneira de atribuir um valor ao gozo. No sujeito há sempre algo que falta; aquilo que o sujeito busca está representado pelo objeto a; trata-se então, daquilo que terá valor para ele, algo que se destaca, mais-de-gozar.

Quando Lacan assinala esta vertente de um valor do gozo, está considerando o cenário do capitalismo em que regras de mercado regem a construção do saber.

A partir do saber, percebe-se, enfim, que o gozo se ordena e pode se estabelecer como rebuscado e perverso. Isso não é novo, mas só se revela a partir da homogeinização dos saberes do mercado. Nessa situação, portanto, o que representa o mal-estar da civilização, como se costuma dizer? É um mais gozar obtido através da renúncia ao gozo, respeitado o princípio do valor do saber. (Lacan, 1968-1969, 2008, p. 78).

O sujeito que em Freud ouvia: Reprima - e ao qual agora é imposto: Goze! Instaura-se o império do gozo.

E neste processo, a mercadoria - inicialmente apenas configurada em sua materialidade – foi impregnada pelo caráter imagético, icônico. O signo, o ícone ganha valor no imaginário. O que importa é ter acesso ao que promete completude, felicidade (mais-de- gozar).

Mas a imagem não é o sujeito. Lacan (1998, p. 520, apud Bucci, 2002b, p. 204) colocava a questão ―Não se trata de saber se eu falo de mim conformemente ao que sou, mas se, quando eu falo de mim, sou o mesmo que aquele de quem falo.‖ Não caberia agora perguntar: o sujeito que (se) vê, vê qual sujeito?

Eugène Enriquez (apud FREITAS, 2000, p. 45) diz ser a sociedade do olhar e da imagem - em que se privilegia a aparência, a visibilidade dos signos de sucesso, do sujeito movido por impulsos e desejos - a sociedade da vergonha na qual o indivíduo ―será perseguido pela vergonha de não ter conseguido, em condições normais, ir além dos limites. A vergonha não toca o indivíduo na sua intimidade, mas o toca em seu ser social, em sua aparência.‖

Segundo Bragança de Miranda (2008) a imagem surge quando o homem se depara com a natureza (pyshis); cria a imagem para lidar com essa situação, sendo então, o primeiro

registro humano. Atua como uma espécie de filtro invisível que age no real, o transforma; algo que se coloca entre as pessoas e o mundo.

Tradução do mundo contemporâneo, no qual tudo é fixado, registrado. Sociedade do consumo, do espetáculo.

Tudo muito volátil; por vezes, conhecimento se confundindo com enxurrada de informações – quantidade, variedade, visibilidade, impacto, espetacularização – sem necessariamente consistência, substância.

Ainda que seja uma abordagem categórica, por vezes dogmática, em Guy Debord (1997) encontram-se considerações que bem traduzem essa questão:

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A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado. (grifos do autor).

Oferta cria demanda na economia tradicional. Mais e mais esse paradigma vem mudando para atenção cria demanda.

Um mundo em tempo real, com uma nova espacialidade, inundado pela imagem - sociedade do espetáculo, sustentada na reprodução ao vivo, nas relações on line, tornando o sujeito participante dos fatos - e que leva a novas formas de interação entre indivíduos e coletivos, integrando os diversos saberes e experimentações. Novas demandas são criadas, sustentadas e substituídas, de maneira veloz, feroz, fugaz, produzindo múltiplos desejos.

No capitalismo digital conhecer está vinculado à inovação, a lidar – ―dar conta‖ – com o imprevisto, o improvável. É recurso para ter mais agilidade, flexibilidade e inserção em um mundo de muitas mudanças - rápidas e permanentes.

A própria noção de produção – e de economia – adquire novos contornos de algo que não é propriamente material; ultrapassa-se a noção de uma estrutura que se feche e se resolva no equilíbrio, mas sim, de algo que se abre sempre para uma aposta no futuro. (SCHWARTZ, 2006). Essa ―nova economia‖ organizada para produzir, circular, consumir e lucrar com os ícones pode ser reconfigurada conceitualmente como Iconomia. 13 Saída do modelo vertical para relações múltiplas, possibilidade de uma sociedade em rede: a sociedade do conhecimento. Segundo Schwartz (2008) o que gera valor é o invisível, o intangível: credibilidade, capital humano, as marcas (comerciais ou não, com ou sem fins lucrativos).

Informação por si só nunca basta, pois a cada novo dado os padrões existentes são alterados, como num caleidoscópio no qual se constrói cognitiva e socialmente, através de eventos reais e imaginários que se mesclam e se complementam. (SHACKLE, 1992). 14 Uma visão na qual a ―Economia é apenas uma das cores no espectro das questões constituintes do ser humano‖ (p. 5 - tradução nossa), ou seja, há que se considerar os fatores tangíveis e intangíveis, a diversidade das situações e as escolhas das outras pessoas, bem como o conhecimento tácito. Para Shackle, dar valor é sinônimo de ter expectativas: ―Valuation is expectation, and expectation is imagination‖. (ibid, p. 8).

Zigmut Bauman (2009) ao tratar das aproximações das instituições educacionais com as demandas do mercado afirma que neste processo os intelectuais - e aqui se refere especificamente ao ambiente universitário, mas fazendo a ressalva de que ―se aplica à educação como um todo‖ (p.176) - buscam dar um ―ar virtuoso‖ a esse jogo de oferta e demanda. E segue com uma ressalva:

[...] degradados pela competição de mercado, convertem-se em promotores zelosos de critérios de mercado na vida universitária: este ou aquele curso ou projeto é bom se tem uma boa abertura para o mercado, se vende bem [...] deve ser o critério supremo dos currículos, cursos e títulos adequados. A liderança espiritual é uma miragem; a tarefa dos intelectuais é seguir o mundo lá fora, e não legislar pelos padrões de propriedade, verdade e bom gosto. (BAUMAN, 2009, p. 173).

13 Expressão cunhada pelo economista americano Michael Kaplan. O Professor Doutor Gilson Schwartz da ECA / USP vem pesquisando e desenvolvendo o conceito de maneira mais sistemática na disciplina ―Introdução a Iconomia‖ e nas ações do grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento, o qual lidera.

14 O autor, de inspiração keynesiana, questiona o formalismo da teoria econômica tradicional em que o mecanismo do valor é determinístico e, portanto, incompatível com a incerteza, a inovação e a surpresa.

Esta reconfiguração de cenários cria necessidade e oportunidade de propostas criativas de produção e inserção na nova economia. Um dos grandes desafios é a preparação e capacitação das pessoas para lidarem com este novo modo de produção do próprio olhar, condição para uma economia da informação mediada pelo ator-rede. O professor tem que despertar e instigar o desejo de seu aluno. Tal qual um mentor.