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3. E DUCAR NA C ULTURA D IGITAL

3.1 N OVAS ESTRUTURAS – NOVOS LAÇOS SOCIAIS

Ao recorrermos à psicanálise de orientação freudiana e lacaniana adotamos a proposição de que é no discurso que se constrói o laço social.

Quando se pensa uma instituição e aqui, no caso, a escola, pensa-se, sobretudo, seus agentes e os lugares que ocupam.

Em geral, ao se falar destes atores atribui-se a eles um ―papel‖, termo originário do teatro da Grécia e Roma antigas que vem sendo utilizado em várias áreas do conhecimento – desde a fisiologia, passando pela sociologia, psicologia, antropologia.

Jacob Levy Moreno (1975), estudioso e divulgador do conceito, apresenta a noção de uma experiência intermediária que visa proporcionar a integração do indivíduo.

26 No original: una tarea interminable.

Os papéis são os embriões, os precursores do eu, e esforçam-se por se agrupar e unificar. Distingui os papéis fisiológicos ou psicossomáticos como os do indivíduo que come, dorme e exerce uma atividade sexual; os papéis psicológicos ou psicodramáticos, como os de fantasmas, fadas e papéis alucinados; e, finalmente, os papéis sociais, como os de pai, policial, médico, etc (...) os papéis psicossomáticos, no decurso de suas transações, ajudam a

criança pequena a experimentar aquilo a que chamamos o ‗corpo‘; que os

papéis psicodramáticos a ajudam a experimentar o que designamos por

‗psique‘; e que os papéis sociais contribuem para se produzir o que denominamos ‗sociedade‘. Corpo, psique e sociedade são, portanto, as partes

intermediárias do eu total. [...] o papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. (MORENO, 1975, pp. 25-27).

O autor também fala da função reguladora do papel:

[...] a função do papel é penetrar no inconsciente, desde o mundo social, para dar-lhe forma e ordem. [...] o papel é a unidade da cultura; ego e papel estão em contínua interação. (Ibid., pp. 28-29 – grifo nosso).

Assim, diversos e simultâneos são os papéis desenvolvidos por cada indivíduo: pai, mãe, filho, marido, esposa, chefe, funcionário, professor, aluno... Ainda que com pequenos espaços de manobra, no qual cada um imprime um pouco de seu estilo pessoal, todos eles partem de um a priori, determinado pelas expectativas e normas sociais. Haja vista o sem número de publicações e cursos orientando ou ―ensinando‖ como ser um bom líder, os dez passos para se tornar gestor, o que deve fazer uma boa mãe.

Aquilo que se convencionou chamar papel refere-se a algo estabelecido, um script a ser cumprido e com um status já definido, hierarquizado e sustentado por regras de um jogo no qual a ação de um determina a do outro. Seria assim, uma resposta automática ao desejo do Outro.

Trata-se, contudo, de um movimento muito mais complexo, posto que o sujeito movimenta-se no mundo a partir dos laços que constrói - ou que deixa de construir.

Não se pode dizer que o sujeito é de determinada maneira. Quando se qualifica alguém está se restringindo a um conjunto de atributos fechados, explicados e definidos. Entretanto, Lacan (1964; 2008) nos diz ―[...] um significante é o que representa um sujeito para outro significante.‖ (p.203). O sujeito nunca é; está entre significantes.

É no discurso que o sujeito cria um jeito de estar naquele lugar, uma vestimenta, um véu que o envolve e lhe confere determinados atributos: o semblante.

No Seminário 18, Lacan (1971; 2009) diz:

Um discurso se sustenta a partir de quatro lugares privilegiados, dentre os quais um, precisamente, ficou sem ser nomeado – justamente aquele que, pela função de seu ocupante, fornece o título de cada um desses discursos. [...] Esse lugar que é como que sensível, o do alto à esquerda [...] esse lugar ainda não designado, eu o designo por seu nome, pelo nome que ele merece. É, muito precisamente, o lugar do semblante. (1971; 2009, p. 24).

O sujeito fala a partir de algo que quer mostrar, ou parecer ser. Um véu que ele tece (nos registros do Simbólico e do Imaginário) com cores, texturas e adereços que lhe pareçam ser os mais apropriados – ou muitas vezes inadequados – para sustentar uma aparência que protege do Real. Se à primeira vista o semblante pode ser pensado como simulação ou enganação ele fala do que é a verdade do sujeito. Nas palavras de Lacan - fazendo referência ao Discurso de Roma - ―... o trovão, que todos sabem muito bem que é um sinal, mesmo não sabendo sinal de quê. Essa é a própria imagem do semblante.‖ (Ibid, p.15).

Há uma frase célebre de Picasso: ―Eu queria ser pintor e tornei-me Picasso.‖ A partir de algo que se deseja – e que quer – é estabelecida uma maneira de se mostrar ao mundo, de ocupar um lugar no mundo. Um semblante.

Ousaríamos dizer que semblante não é lugar que se ocupa e sim que se faz. E que por se constituir no (a partir do) laço social é marcado pelas estruturas externas, pelo espírito de seu tempo – o zeitgest.

Não se trata de um conceito, e recorrendo a Lacan não encontramos uma definição fechada para o termo.

Façamos uma breve retomada sobre os quatro discursos que foram apresentados de maneira sistematizada por Lacan no Seminário 17 - O Avesso da Psicanálise.

Partiremos do ensino de Alain Grosrichard.27

Lacan propôs quatro elementos constituintes do discurso: significante mestre (S1), saber (S2), sujeito dividido ($) e objeto a (a); elementos estes que transitam em quatro lugares estabelecidos por uma posição fixa: o agente, que à primeira vista ―organiza‖ o discurso; o

27 O tema foi apresentado no Ciclo de Conferências ―Um primor de curso: O Avesso da Psicanálise de Jacques Lacan.‖ que acompanhei em março de 2010 no Instituto de Psicanálise Lacaniana - IPLA. http://www.psicanaliselacaniana.com/cursos/documents/alaingrosrichardipla2010.pdf

grande Outro ao qual o agente se dirige; a verdade, na qual está a sustentação do discurso; o desejo, lugar que marca o que o discurso produz.

agente Outro

verdade produção

Seguindo o movimento horário, estas posições vão sendo continuamente ocupadas pelos elementos constitutivos do discurso, criando assim as estruturas de cada um dos quatro discursos. S1 S2 $ a $ S1 a S2 a $ S2 S1 S2 a S1 $

Há, porém, um quinto discurso – o do Capitalista – que não segue o movimento estruturante dos discursos.

$ S2 S1 a Discurso do Mestre Discurso da Histérica Discurso do Analista Discurso da Universidade Discurso da Universidade Discurso do Capitalista

No discurso o sujeito (que fala) ocupa uma posição ao mesmo tempo em que coloca o outro em um determinado lugar; algo dinâmico que sempre dependerá das articulações que venham a ser estabelecidas, das circunstâncias nas quais ele venha a estar inserido.

No ambiente da educação o entendimento convencional é aquele que coloca o professor como autoridade, o senhor do saber, e o aluno como o que tem que ser formado, que nada, ou pouco, sabe.

Podemos a partir daí refletir sobre o quanto a educação está sustentada nos discursos do mestre e da universidade, mas também no do capitalista.

Se o sujeito é o sujeito da fala – sujeito falante - é também, sujeito desejante – e faltante.

É sobre essa falta que nos parece estar a possibilidade de ação do professor. Agir sobre ela, sobre o incompleto é agir para provocar o desejo, no caso, o de aprender. Assim, o desejo do professor é o de levar o aluno a aprender. Defronta-se então, com sua própria falta, já que não sabe tudo, nem de tudo pode dar conta. Esta questão e central na relação entre o professor e o aluno, e no processo do aluno como sujeito que vai estabelecer a sua verdade, como colocado por Leny Mrech (2003).

[...] dependendo de como o professor se posiciona, ele pode acreditar que tenha a melhor resposta para as questões propostas pelo aluno. O professor é o transmissor do saber, mas ele não o detém e nem é o saber. Como assinala Marilena Chauí é preciso que o professor esvazie o seu lugar, para que ali o aluno possa realmente criar. (2003, p.82).

Momento de decisão. Qual lugar ocupar no discurso?

Se no lugar do agente é que está o semblante, podemos pensar o professor e os semblantes que faz.

No discurso do mestre o agente demanda que o outro produza algo da maneira que ele, mestre quer. Uma posição de poder e autoridade.

No da universidade há uma ordem ao outro sobre o que ele deve saber; um saber completo, sem espaço para o erro, a dúvida, a criação. O que conta é dar a resposta certa para obter a nota, ou o crédito. Sustenta-se na ideia de um saber pronto; o saber do especialista.

Ao contrário deste, o agente do discurso da histérica demanda ao outro que produza um saber.

No discurso do analista há uma demanda do agente para que o outro produza o que tem sentido para ele. Posição atraente e libertadora. Contudo, o risco, no ambiente da educação formal, de confundir-se com uma posição de laissez faire.

Lacan recusava-se a ocupar o lugar de professor (como lembrado por Grosrichard), uma posição daquele que se identifica com o saber e cujo ideal é ser compreendido. Fazia assim uma provocação à sua audiência, no sentido de forçá-los a se colocarem no lugar do sujeito histérico, ou seja, aquele que coloca o mestre em questão para fazer produzir saber.

Na abertura do Seminário 11 Jacques Lacan ao discorrer sobre a pesquisa científica traz uma frase de Picasso: ―Eu não procuro, acho‖ (1964, 2008, p. 15). Partindo deste ponto segue em suas considerações sobre os movimentos da busca no campo das ciências e, chegando às chamadas ciências humanas (termo por ele abominado), refere-se a ―o que chamarei a reivindicação hermenêutica, que é justamente a que procura – que procura a significação sempre nova e jamais esgotada, mas ameaçada de ter suas asinhas cortadas por aquele que acha.‖ (p. 16).

Nesta reflexão de certa maneira inaugura-se uma discussão que percorrerá sua obra nos anos subsequentes, chegando a outro princípio do autor: não acho, procuro.

A opção por este caminho de reflexão aponta para o interesse em discutir e pensar os movimentos que vêm sendo estabelecidos nessa mudança de Era na qual a constituição dos laços requer outros paradigmas.