• Nenhum resultado encontrado

Da morte à redenção

No documento A Fotografia como ruína (páginas 103-122)

2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO

2.4. Da morte à redenção

Falamos que o signo fotográfico está fadado à morte do referente. Também expomos que a fotografia, ao mesmo tempo em que aparenta uma realidade, esconde outras sob sua superfície. Essas realidades se situam em um invisível da imagem, que podem vir a ser revelados pela proximidade que a representação capturada tem com a história de vida do observador, o qual vai “animar” a cena retratada. Essa atividade mnemônica, que dá vida às superfícies fotográficas, contudo, dá-se por impressões fugidias, uma vez que as lembranças vão perdendo o vigor, engolidas pela distância temporal entre o que está na foto e o que hoje acontece.

Ora, então seria a distância temporal a juíza do destino das imagens? Aquela que decide se vale ou não a pena o abandono ou a preservação de determinados instantes? Ao mesmo tempo em que queremos preservar “congelados” instantes contra a “marcha do tempo” por meio das fotografias, eles parecem sucumbir ao devir temporal. Passamos a perceber a extensão da distância que separa aquele instante, no passado, do atual, o agora. A vida que se tentou preservar na captura de um momento muda de estado, passa a ser pedra. “O momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível”, defende Kossoy (1999, p.139). O que não se enquadra nessa proposição é a própria interpretação do registro, do uso que se pode fazer dele, que pode tomar, sim, outro rumo que não aquele que lhe foi destinado.

O próprio Kossoy (id., ib., p.144) finaliza seu livro com a reflexiva frase-conceito de fotografia: “um signo à espera de sua desmontagem”. Disso, desprendemos dois termos para analisar: “espera” e “desmontagem”. Sobre essas instâncias, veio imediatamente à lembrança uma indagação colocada por Lissovsky em uma conferência recente24, realizada em Fortaleza, no dia 14 de abril de 2009: o que fazem as fotografias quando não estamos olhando para elas? E, dentre citações de Benjamin e do filósofo italiano Giorgio Agamben, demonstrando com

23

Tradução livre de: “Cette petite mémoire, qui forme pour moi notre singularité, est extrêmement fragile, et elle disparaît avec la mort”.

24

O título da conferência em questão era: Viagem ao país das imagens: a instabilidade das fotografias e suas

imagens de arquivo, ele responde: elas esperam. E, claro, aguardam por sua “desmontagem”, seu desvelamento.

Lissovsky mostrou diversas fotografias de arquivo pelas quais demonstra que o arquivo tem lacunas: “eles não falam do que foi, mas balbuciam o que poderia ter sido”. Em menção a Benjamin, o conferencista enfatiza essa relação do futuro com o pretérito. Ele diz que o “futuro habita as imagens”. Como o ovo em seu ninho, o futuro está aninhado nelas. Fica claro o apelo benjaminiano dessa relação. Em Pequena história da fotografia, sublinha que na imagem há um “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos” (BENJAMIN, 1994. p.94).

A descontinuidade histórica reflete diretamente na noção de tempo benjaminiana. O tempo histórico é incompleto. Não é dado em totalidade. Já ressaltamos esse motivo de ligação entre fotografia e ruína. Ambas se apresentam incompletas, são rastros. Porém, o lugar em que o futuro se instala na imagem é “imperceptível”, não se dá explicitamente, mas ainda está lá. Lissovsky (2003, p.144), em um texto específico sobre o tempo na fotografia moderna, fala que foi a maneira como “aceitando o tempo como o invisível da imagem fotográfica, permitiu que ele a atravessasse de múltiplas maneiras. Aceitando o desafio de exprimir a ausência do tempo, a fotografia moderna percorreu seus mais belos caminhos”. O autor se debruça sobre as produções de Sebastião Salgado, Cartier Bresson, Diane Arbus e Auguste Sander para expressar o modo como o tempo que se ausenta atravessa as imagens desses fotógrafos.

A invisibilidade está inerente à fotografia, assim como o seu correlato. É mais um duplo do qual participa a fotografia como ruína. Esse lugar invisível, “em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos”, deixa vestígios nas imagens. Contudo, uma maneira de enxergar esses vestígios, ou seja, compreender o que significam, é ao dar mobilidade ao instante capturado, ao colocá-lo em uma duração (LISSOVSKY, 2003, 2008), e, claro, tendo conhecimento de como o fotógrafo trabalhava para essa captura. Destacaremos aqui a fotógrafa americana Diane Arbus, no intuito de demonstrar essa ação do instante. Recorreremos, para isso, às informações que Susan Sontag nos dá sobre o trabalho da fotógrafa.

Em vez de tentar persuadir seus temas a se pôr numa atitude natural ou típica, ela os incentivava a ficar constrangidos – ou seja, a posar. (...) O que torna tão impressionante o emprego da pose frontal em Arbus é que seus temas são, não raro, pessoas que não esperaríamos que se oferecessem tão gentilmente e tão ingenuamente para a câmera. Assim, nas fotos de Arbus, a

frontalidade também subentende, da forma mais nítida, a cooperação do tema. A fim de levar essas pessoas a posar, a fotógrafa teve de ganhar-lhes a confiança, teve de tornar-se “amiga” deles”. (SONTAG, 2004, p.49-50)

A fotógrafa costumava fotografar pessoas com anomalias, das quais costumava conquistar a confiança antes de posar para foto. A pose incentivada por Arbus a seus modelos fazia com que o instante fotografado fosse o resultado de uma “cooperação” entre ela e o fotografado que, gentilmente, fingia para a câmera. Suas fotos não buscam a espontaneidade. O constrangimento a que ela impunha seus modelos antes de disparar, fazia do disparo algo sempre depois. Depois da conquista, depois do constrangimento, depois da pose. O tempo se ausenta nesse após, o qual é totalmente dependente do antes – pré-imagem. Nesse caso, o próprio instante é destruído, já que a foto vem nesse depois, no seu resto.

Para Lissovsky (2003), Arbus é a fotógrafa destruidora do instante. Seu disparo é “resultado de uma ação demolidora”25. Em outras palavras, o instante devém como resto, como um depois. Sendo ele, o instante, “resto de uma demolição”, temos nessa ação de tornar-se ruína o refluir do tempo na fotografia. A imagem incorpora essa instabilidade do tempo. “Ela adquire uma duração que lhe é própria, que toma corpo neste lugar onde o refluir do tempo tem curso, no qual o instante ainda não está dado e onde ele se realiza. Este lugar é a espera” (LISSOVSKY, 2003, p.148). Na espera, Arbus opta pela destruição do instante.

Percebendo a espera como esse lugar onde o instante se prepara, não sendo ainda dado, podemos, pelas fotos (sem desvinculá-la do conjunto da obra) observar de que maneira cada fotógrafo trabalha nesse lugar e o que nele investe. A espera é lugar e também meio. “Por meio da espera, o fotógrafo procura imprimir na imagem o tempo que se ausenta. A espera é a duração própria do ato fotográfico e o modo como os fotógrafos facultam ao instante o seu advento”. (id., ib., p.148). Sendo a impressão de um tempo invisível, já que está ausente, a duração de cada fotógrafo se dá de forma distinta. Cabendo, nesse momento, apenas esclarecer esse caráter invisível do tempo da duração, não nos deteremos a detalhar sua manifestação em todos os fotógrafos analisados por Lissovsky. Todavia, sua análise desse aspecto lacunar do tempo na fotografia moderna demonstra o quão a noção de vestígio se faz presente em termos fotográficos.

25

Diferencia-se, por exemplo, segundo o autor, de Sebastião Salgado, no qual o instante devém por construção, acúmulo.

Até aqui, nossa abordagem da fotografia como ruína seguiu a trilha do que na imagem implica em ausência e presença, em traço, vestígio. Desde as considerações históricas às formulações próprias do campo fotográfico, vimos que a descontinuidade do tempo se impregna na imagem. Quando abordamos a memória, inclusive, a própria ausência de vestígios é significativa, já que implica em não fazer lembrar. Por último, pudemos ver que a duração é também da ordem do ausente. E deixa na imagem seu vestígio (nomeado por Lissovsky de aspecto). De todas as maneiras, vendo-a de fora como suporte, mergulhando em seu interior, pesquisando a sua história, a fotografia é rastro ou deixa rastros.

A imagem fotográfica sendo caracterizada como descontínua deixa brechas, lacunas para apresentação de um tempo histórico incompleto. Benjamin (1994a, p.232), sobre a temporalidade histórica, frisa, inclusive, que “cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias”. Porta tão estreita quanto veloz, já que é no instante que o passado relampeja irreversivelmente. Nesse momento fugaz é que o historiador materialista pode redimir o passado, desde que nele reconheça o “agora” messiânico. A característica fugaz da temporalidade histórica se reflete, inclusive, no modo fotográfico de percebê-la: na espera e no instante.

Nessa visão do passado que prevê futuro, exige-se a habilidade da lontra de impor

espera. “Signo das coisas fugidias, dos ‘confins do zoológico’, a lontra estende seus domínios

pelo território mais vasto: os ‘lugares que têm’ o ‘poder’ de ‘nos fazer ver o futuro’, onde ‘parece ser coisa do passado tudo o que nos espera’”. (LISSOVSKY, 1998, p.24). A lontra, por sua característica fugaz, de aparecer e logo desaparecer, exige que esperemos sua próxima aparição. É assim que, ao interpretar o pensamento de Benjamin e sua ligação aos animais totêmicos, Lissovsky diferencia a lontra do tigre. O tigre é o animal interruptor, a lontra, o fugaz. “A espera pela irrupção da lontra é também a espera pela recuperação do passado” (id., ib., p.24).

A fotografia é atravessada pela dialética do tigre e da lontra. Uma vez que aquilo que é fugaz – o próprio instante -, só pode ser percebido pela interrupção. Contudo a fugacidade é justamente o que não se pode interromper. Esse impasse entre visibilidade e invisibilidade, o qual exemplificamos com a noção de duração na fotografia, monta um paradoxo. “Na fotografia, os dois modos da temporalidade – a fugacidade e a interrupção – evidenciam-se como problema de visibilidade: problemas da aura e da centelha. A foto oscila entre aquilo que lhe escapa e isto que nela se infiltra” (id., ib., p.26).

O uso da centelha, por sua vez, como imagem dialética persiste no pensamento benjaminiano. Associada aos fragmentos do mundo barroco, a centelha se dirige à redenção. Como faísca, que cintila, o fragmento e a ruína esperam por um ato religioso, messiânico. Não é à toa a importância, em suas teses da história, da expressão “estilhaço”, “ruína”, “fragmento”. Dirigindo-se ao barroco, os “estilhaços”, as “ruínas”, têm possibilidade de redenção. Podem ser redimidos pela alegoria, já que esta tem um princípio construtivo (expomos melhor no capítulo anterior, 1.3). Identifica-se na alegoria, contudo, a questão da morte, já que para tornar o fragmento significativo é preciso arrancá-lo, com violência, do fluxo da história-destino. O alegorista, então, mata para significar, para construir, para redimir pelo conhecimento.

Com isso, como na imagem da centelha, a fotografia, como experiência do tempo, se dá nessa espera de um “clarão”, que acontece em um instante particular. A participação nesse instante de fugacidade e interrupção dá densidade ao tempo do “salto”. Trata-se do instante movente, fluido. Lembremos a visão monádica, estabelecendo nela um ritmo. “A monadização rítmica da fotografia, como essa forma de fluido, está a serviço da ‘imobilização do acontecimento’, contrariando em si – segundo sua perceptibilidade singular – uma infinidade de relações” (LISSOVSKY, 1998, p.32). Ou seja, há uma temporalidade fotográfica densa, que não se dá nem somente na fixidez, nem somente na mobilidade. Eis um de seus principais paradoxos.

Vimos, ao longo do capítulo, diversas referências à fotografia quanto ao seu caráter “imóvel”, “congelado”, “morto”, “petrificado”. Entretanto, tomando como referências Benjamin e Lissovsky, podemos ter mais clara outra reflexão sobre a imagem fotográfica, que, sem anular as considerações de Barthes, Dubois e outros autores citados que se alinham no tema, coloca-nos sob outra ótica para pensarmos a mesma temática. Do “isso foi”, da morte do passado, da irreversibilidade do tempo, chegamos à instabilidade das imagens. Vemos, nessa perspectiva, uma relação fotografia/ruína para além do gesto brusco do índice.

Na ótica do alegorista, que da morte traz à vida, a fotografia como ruína, ainda que compartilhe das formulações sobre a imobilização, o passado fixo, o efeito Medusa, pode vir a ser fragmento à espera de redenção. Como rastros do passado, fotografias/ruínas aguardam por escavação, por uma descoberta de futuro. Fotógrafo e historiador precisam dos tempos da lontra e do tigre para decifrarem a densidade do “agora”, o mistério que impele o passado à redenção.

Para finalizar, volto à conferência de Lissovsky, a que me referi no início desse tópico, para citar mais uma de suas frases pensadoras (dessa vez não sendo mais uma pergunta) sobre a fotografia. “Sua atualidade pouco significa diante de sua potência de reencarnação”. O apelo que nos dirige a imagem fotográfica é por essa nova chance à vida, por sua salvação, por seu caminho reversível – da pedra à carne. Isso não depende de sua contemporaneidade. A própria reencarnação é esse refluir do tempo.

***

FIGURA 16: A Última Foto - Paula Trope, formato 9x12, lente Extar – Rosângela Rennó (2006)

A imagem acima foi extraída do trabalho A Última foto, de Rosângela Rennó, em que a artista põe em atividade diversos aparelhos fotográficos antigos colecionados por ela. Ela oferece a 43 fotógrafos, incluindo ela mesma, a oportunidade de clicarem, pela última vez, com esses aparelhos, o Cristo Redentor, ícone do Rio de Janeiro. Por que pela última vez? Pois logo depois desse derradeiro uso, os aparelhos fotográficos utilizados seriam lacrados.

Como na imagem (Fig. 16), cada fotógrafo utilizou uma câmera analógica que variava conforme o formato e a fabricação (de chapa 9x12cm a reflex de 35mm; do início do século XX a década de 80). Câmeras estas colecionadas por Rennó ao longo de 15 anos. Desta vez, Rennó não resgata imagens passadas mas, sim, aparelhos passados e dá a eles o seu último uso. E o tema para as últimas fotografias, não escolhido em vão, trata-se de um dos mais incansavelmente fotografados. O desafio era fazer com que cada fotógrafo, tendo sua derradeira chance de fotografar um clichê, o Cristo Redentor, desse a ele uma nova dimensão. As fotografias que compõem a série26 colocam em questão, em diferentes modos, nosso próprio olhar, contaminado pela exaustiva repetição e difusão do assunto em imagens turísticas e midiáticas, ou seja, o referente já enraizado na mente. As feições, tamanhos, ângulos, enquadramentos e intervenções que o Cristo recebe dotam o assunto das fotos de uma realidade que não se encerra na aparência, mas se oculta nos seus detalhes mais significantes. Elas questionam sua própria existência enquanto registro do real.

Foram dadas aos fotógrafos novas condições de experiência e fruição de suas próprias imagens, uma vez que seus olhares sobre o Cristo, tidos como derradeiros antes da “morte” da câmera, não se conformariam com o lugar trivial e já registrado. Desse trabalho de busca do novo no corriqueiro, de experiência última, é também possível extrair uma crítica ao caráter descartável da fotografia digital em nossos dias, que só cresce em número e pouco deixa espaço para uma fruição reciclável do destino das imagens.

A “morte” da câmera analógica vivenciada por nós hoje, inclusive, é colocada em A

Última Foto como aceno, apelo. Onde foram parar nossas câmeras com filme, as manivelas

que faziam avançar as películas, as fotografias em papel? Ficaram no passado? Nesse trabalho de desafiar nossa amnésia, o aparelho fotográfico está presente não apenas como testemunho de um tempo remoto, quando a tecnologia digital ainda não assustava. Está também como forma de despertar, de ruína. Ao lado de cada câmera, não temos imagens antigas, datadas com o aparelho. Temos imagens atuais. O aparelho capta imagens contemporâneas, independentemente de sua data de fabricação.

Poderíamos ver na fotografia da página anterior, por exemplo, uma cena dos anos 70, dada a própria maneira em que a imagem se encontra: em preto e branco, com recantos desgastados, manchas claras e escuras, dando a impressão de desbotamento com o passar do

26

Para ver todas as fotografias da série, assim como demais trabalhos da artista, acessar <http://www.rosangelarenno.com.br>.

tempo. A associação da fotografia com o modelo antigo do câmera (exposto ao lado da imagem) é irresistível. Entretanto, sua contemporaneidade independe desse passado. Seja do aparelho, seja do próprio garoto. Nessa evocação instável do tempo para o presente, manifesta-se o desejo de permanência das imagens.

É nessa direção que a atualidade do pensamento de Benjamin perpassa o trabalho de Rennó. No arquivo, na coleção, no acúmulo de materiais que guarda ao longo de sua vida, ela desperta as imagens de sua posição cômoda. Afinal, para ela, a constatação de que o tempo passado está morto não tem sentido, já que se pode investir na busca dos possíveis “agoras”, dos caminhos entre as ruínas.

CONCLUSÕES

As descontinuidades atravessadas

Como todo processo de criação, a pesquisa toma caminhos, muitas vezes, imprevistos em seu princípio. Foi o caso desta. E sua concretização é fruto da escolha de momentos que mais tomaram corpo no processo. Falamos disso para lembrarmos que o ato de concluir demanda olhar para o passado e desenhar na mente o que permaneceu, depois das idas e vindas do ato da escrita. Destacar as permanências é uma tarefa não muito difícil, pois, como já diz o termo, elas continuam, persistem. Já as impermanências, os desvios, esses são mais difíceis de resgatar. Começamos nossas conclusões partindo dessa dificuldade: lembrar o que foi deixado para trás para, depois, sublinhar o que permanece.

Partimos, antes mesmo de optar pelo aporte benjaminiano para pensar a imagem e o tempo, de um projeto de pesquisa de mestrado que questionava uma possível “estética da ruína” presente nas imagens do fotógrafo tcheco Josef Koudelka. Esse fotógrafo se destacou por registrar cenas de guerra em imagens que se espalharam pelo mundo, como as da Primavera de Praga. Além disso, registrou os ciganos da Europa Ocidental, etnia itinerante, muitas vezes esquecida, assim como lugares devastados pelas agressões ao meio ambiente. Espaços arruinados, pessoas em situações de catástrofe, vazios de grandes cidades e degradações ambientais são assuntos evidentes em seu acervo. Contudo, falar das ruínas de Koudelka, especificamente, acabaria por não abranger outras questões que nos atingiram na relação de fotografia e ruína. Questões essas que não se limitam à análise do suporte fotográfico e seu conteúdo, mas auxiliam a compreendê-los de forma mais orgânica, ou seja, ligada a questões mais profundas sobre a natureza da imagem.

Por isso dedicamo-nos a desvincular do próprio Koudelka o caráter da fotografia como ruína. Ruína esta não só estampada na imagem, mas trabalhada de diferentes formas por outros fotógrafos e artistas que lidam com a imagem fotográfica como vestígio, traço, de um mundo não tão verdadeiro quanto parece ser. É principalmente nesse ponto que Koudelka se afasta dos fotógrafos/artistas que trabalhamos ao longo do trabalho. Suas imagens, pelo menos as trágicas, de cunho fotojornalístico, parecem assumir o objetivo de documentar cenas fiéis aos fatos ocorridos. E sabemos, até pelo que expomos no segundo capítulo, que é arriscado esse intuito de marcar a imagem fotográfica com o estatuto de “documento-prova”

do que passou. Provar, espelhar a realidade tal como ela é, não faz sentido para aqueles que desconfiam da fotografia como documento calcado no discurso da mimese.

É por isso que, em um desvio proposital e crítico dessa proposta inicial de trabalho do projeto de pesquisa, optamos por extrair conceitos que estavam ali dispersos, sem muito aprofundamento no projeto: documento, monumento, ruína, história. E, dentre os autores citados, Walter Benjamin figurou como um dos que apontavam para uma crítica dessas noções. A leitura do filósofo, considerada enigmática, abriu-nos os olhos para um outro patamar de análise. Sairíamos de um trabalho vinculado especificamente à linguagem fotográfica e seu conteúdo estético, para uma pesquisa teórica e analítica de conceitos, estando esses presentes não apenas em um olhar do fotógrafo, mas em uma maneira fotográfica de lidar com a imagem. Nessa direção, Benjamin foi fundamental para mudarmos o foco para a questão: como a “fotografia como ruína” nos auxilia a entender a imagem como

No documento A Fotografia como ruína (páginas 103-122)

Documentos relacionados