• Nenhum resultado encontrado

Sob rastros de memória

No documento A Fotografia como ruína (páginas 86-103)

2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO

2.3. Sob rastros de memória

Tempo que passa, que congela. Acontecimentos esquecidos e outros lembrados. Fotografar para lembrar faz do ato de tirar fotos um exercício de não se fazer esquecer. Se registramos por meio de fotos é porque queremos lembrar, mesmo que, hoje, com a difusão em larga escala da fotografia digital, nossas recordações possam não se materializar em papel.

18

Sob a ótica do aspecto, Lissovsky analisa o conjunto de fotografias modernas não só de Bresson, mas também de Diane Arbus, Sebastião Salgado e August Sander.

E ainda que essa atividade não garanta “eternidade” ao tempo registrado, pelo menos, deixa rastros para ativar lembranças. Ao nos referirmos ao termo “memória” e sua relação com a fotografia, muitos desdobramentos são sugeridos. Contudo, é comum percebermos a proximidade que o próprio ato de registrar tem com o tempo passado (interrompido) e, paralelamente, ao tempo presente, que corre. É disso que iremos nos ocupar nesse primeiro momento.

A memória se liga à fotografia, para autores como Laura Flores (2005, p.139), pela própria condição indicial dela advinda. Trazendo algo do passado ao presente da percepção visual, ela se constitui como imagem-rastro evanescente. “Ambas, fotografía y memoria,

tienen como objetivo principal almacenar algún tipo de esencia inmaterial, instantánea y volátil”. Tanto a percepção como a imagem só existem como instantes frágeis. Uma vez

materializada, a fotografia funciona como “equivalente físico e mental” da memória. Não foi à toa que o uso de imagens fotográficas como forma de “documentar” o passado, no século XIX, foi também uma forma de mantê-lo presente.

Caracterizadas como “voláteis”, fugidias, fotografia e memória, embora preservem algo do passado, são meios por quais as lembranças tomam forma de rastro. Vamos perceber essa analogia ao longo do texto. Entretanto, sem descrever uma “equivalência” entre os dois termos, Benjamin ressalta a noção de memória como “meio” e não “instrumento” de aproximação com o passado. Em seu texto Escavando e recordando, faz questão de sublinhar que

(...) a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava (BENJAMIN, 1995, p.239).

O passado, assim, não está explícito, não vem à memória em acontecimentos transparentes. No trabalho de escavação, está o empenho em revelar os “fatos” passados como camadas, como aquele que revolve o solo para espalhar a terra. O escavador é aquele à procura de ruínas do passado. Daí a memória agir como meio dessa exploração. No ato de escavar, recordo do que antes havia ali e do que ainda pode estar submerso, desconhecido. Os vestígios do passado, “as antigas cidades soterradas”, só se tornarão visíveis por essa tarefa mnemônico-escavadora. Lembramos, nesse momento, o que Benjamin (1994a, p.224) expõe sobre a tarefa do historiador dialético. A articulação do passado não significa conhecê-lo

“como ele de fato foi”. “Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

Recordar, então, é lidar com rastros de um tempo sobre o qual não conheço em integridade. A memória como meio de perscrutação do passado lida com as obscuridades de um terreno repleto de “achados”, ruínas. Por tudo que já falamos acerca da noção de índice em fotografia e na ruína, estabelecemos um paralelo, aqui, com a memória como meio. Meio, segundo Benjamin, onde se investiga os resquícios de tempo passado. Ou seja, mais do que encontrar uma exatidão dos acontecimentos passados, as lembranças informam, revelam seus destroços que até hoje ressoam. A “verdadeira lembrança” deve, ao mesmo tempo, “fornecer uma imagem daquele que se lembra” e indicar as camadas que “foram atravessadas anteriormente”.

Desse raciocínio, identificamos na memória do escavador algumas semelhanças com a atividade da memória em Bergson. Como que acionando “camadas”, a memória, no entender bergsoniano, atualiza-se nas virtualidades do objeto. Ela está sempre presente e em reconstrução constante, uma vez que a própria percepção transcorre diferentes níveis. As camadas da memória, desse modo, rondam em torno do objeto percebido. Assim, “essa memória, que sua elasticidade permite dilatar indefinidamente, reflete sobre o objeto um número crescente de coisas sugeridas – ora os detalhes do próprio objeto, ora detalhes concomitantes capazes de ajudar a esclarecê-lo” (BERGSON, 2006, p.119).

Agindo por expansão, a memória não é estanque. Unindo, e assumindo os riscos dessa ponte bergson-benjaminiana, a tarefa da memória oscila conforme o sujeito, que potencializa os desdobramentos daquele objeto, e o próprio objeto, que sugere detalhes ao sujeito, ajudando a esclarecê-lo. Considerando a fotografia como esse possível objeto, chegamos a uma consideração importante: como alvo de uma reconstrução constante da memória, meio de esclarecer o passado, ela sugere informações sobre esse passado, contudo, somada à atualidade do próprio sujeito que a investiga. Pela memória, escavadora de camadas, a fotografia, ainda que imagem interrompida pelo golpe temporal, é objeto em crescente estado de atualização.

Exemplifiquemos com a lembrança de Barthes (1984) ao olhar a imagem de sua mãe. Diante da foto do Jardim de Inverno, ele se deixa levar pelos sentimentos e lembranças, percorrendo um campo aberto que não se limita ao código fotográfico, mas se expande e se atualiza ao revisitar a imagem. O sentimento do autor, ao ver a fotografia, é descrito como

uma aparição na memória, uma lembrança involuntária, viva e completa. Por meio da foto, assim como Proust, Barthes se deixou levar pelos tempos memoráveis, reminiscentes. Tempos esses não explícitos na fotografia em si, mas evocados no acontecimento lembrado, que tece seu próprio caminho, do presente para o antes e o depois.

Ainda que saibamos que Barthes identifica na foto uma presença incontestável do referente, já passado, a sua atividade mnemônica, no momento da lembrança, desvenda camadas outrora encobertas. É como se a fotografia fosse a ponta de um iceberg que esconde muitos porvires. Da premissa barthesiana do “isso foi”, desprende-se, pela memória, um instante instável. Entretanto, esse desprendimento acontece conforme a tarefa do escavador. Barthes, ainda que reconheça na atualidade da lembrança uma “aparição na memória”, designa nessa experiência “o real no estado passado”. Um atestado da presença e não das virtualidades dele ressonantes.

É dessa relação testemunhal com o real que Kossoy (1999) fala do documento fotográfico como memória. Da aparência do referente, desdobram-se realidades além da exterior, mais explícita. As outras faces do documento não podem ser vistas. “É o outro lado do espelho”. Da constatação, detecta-se o oculto, pois nem tudo está ali. A realidade interior da imagem perturba a imobilidade fotográfica. Em um trabalho mental de reconstituição, mergulhamos no conteúdo da foto, tentando articular as circunstâncias que envolveram a situação documentada. Visitamos o passado ao rememorá-lo. Isso, para Kossoy (ib., p.132) implica no processo de criar realidades. “Fotografia é Memória e com ela se confunde. O estatuto de recorte espacial/interrupção temporal da fotografia se vê rompido na mente do receptor em função da visibilidade e ‘verismo’ dos conteúdos fotográficos”.

A reconstituição oriunda da ruptura do estatuto do recorte, para o autor, pode ser dirigida tanto à articulação histórica quanto à recordação pessoal. Um aspecto interessante apontado aqui é que, a partir da ideia de corte defendida por Dubois, tem-se, no ato da criação de realidades para o documento, não a característica do congelamento, mas do seu contrário. “Na tentativa de ‘descongelarmos’ o documento poderemos, talvez, devolver aos cenários e personagens sua anima, ainda que seja por um instante” (id., ib., p.135). Esse instante, em que a fotografia ganha vida imaginativamente, é dedicado a explorar o oculto do documento. Possível instante-escavação.

Benjamin, como sabemos, em suas teses, dirige-se a uma história fragmentária, descontínua. E, a cargo do historiador, está a tarefa de desconfiança do passado, da sua

verdade. Desconfiar do documento histórico, inclusive, foi uma das tarefas que fizeram de Michel Foucault um marco dentre os pensadores no século XX. Ele se destacou por trabalhar a noção de descontinuidade histórica e também por perceber como os corpus documentais com os quais trabalhava apresentavam regularidades e rupturas discursivas. Esse novo tipo de história – a arqueologia – dedica-se a explorar não apenas as práticas de um discurso único, mas todas aquelas que nele se apoiam. O empenho é de questionar o documento quanto à sua verdade, chegando a tratá-lo como mentira. Logo mais abordaremos essa dualidade verdade/mentira no documento.

O caráter de presença/ausência que parte da ligação da fotografia com o passado é recorrente, principalmente, sob a imagem do rastro, do vestígio. Vimos que o documento, ao mesmo tempo em que certifica uma presença, também o faz com a ausência. Sendo a memória o meio pelo qual o passado ganha vida, fazendo da sua realidade também uma ficção, sua atividade requer uma exploração dos rastros do tempo. Na visão da história benjaminiana, não podemos conhecer o passado com exatidão, mas apenas o articularmos. Não temos acesso a uma totalidade dele, uma vez que só cintila em um instante de perigo. Fotografia, memória e história se entrelaçam nesse momento visionário. Momento-ruína.

A noção de rastro é complexa por unir uma presença do ausente e a ausência da presença. Falamos dessa relação indicial que tanto ruína quanto fotografia carrega. Encontramos no texto da filósofa e professora Jeanne Gagnegin (1998, p.218), Verdade e

memória do passado, um questionamento fundamental: “por que a reflexão sobre a memória

utiliza tão frequentemente a imagem – o conceito – de rastro?”. Movida por essa indagação, a autora identifica uma fragilidade essencial que essa imagem traz para nós.

(...)a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente todo o campo metafórico e semântico da escrita, de Platão a Derrida (id., ib., p.218).

Está na escrita a característica de assinalar a ausência das coisas e, por isso, sua analogia ao rastro. Contudo, a autora, nessa passagem, faz questão de frisar o aspecto frágil que o conceito estabelece. Ele nos dá consciência do quanto a fragilidade percorre a memória. Mais uma vez recorremos a Benjamin quando diz que o passado relampeja perigosamente. É o perigo de uma irrupção em “um presente evanescente”, fugaz. Contrariando o desejo de

plenitude e presença, o rastro e sua fragilidade essencial faz da tarefa do historiador uma luta contra o esquecimento e a mentira, “sem cair em uma definição dogmática de verdade”. Nas palavras de Gagnegin (ib., p.218), “o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente”.

O historiador é desafiado a não se entregar a essa fragilidade. Lutar contra o esquecimento e a mentira, é escavar as camadas desse passado, não deixando de “despertar os mortos” no presente. Ao entrelaçar-se com a história, a memória assume essa “frágil força messiânica” presente na visão relampejante do passado. Por ser evanescente, ou seja, por poder aparecer e desaparecer em apenas um instante, essa fragilidade do rastro é complexa. No rastro, eu vejo e lembro. Contudo, se eu não o vejo, o que significa? Aí está um nó. A ausência do rastro também significa.

Seria mentira o extermínio de pessoas na segunda guerra, por exemplo, pela escassez de arquivos dos campos de concentração? Sabemos que esses “documentos” foram destruídos com a intenção também de aniquilar a expressão da história e da memória de um povo inteiro. Qualquer rastro de existência dele, para Hitler, deveria ser destruído e, em consequência, apagaríamos sua existência também da memória. É manter atual a lembrança do esquecimento um dos principais desafios do historiador. Essa tarefa, para Gagnebin, é “sem glória”, uma vez que se trata de “transmitir o inenarrável”, manter acesa a memória dos anônimos, lembrar que o “inesquecível existe”, mesmo que não se possa descrevê-lo.

***

O Holocausto e, atrelado a ele, o tema da ausência e do esquecimento, são colocados por Christian Boltanski nos dois trabalhos que aparecem na fotografia acima: Reserve Canada (1988), à esquerda da imagem, trata-se de uma instalação com um imenso conjunto de roupas penduradas e expostas de forma amontoada, com iluminação superior, e Reliquaire (1989- 1990), à direita, um conjunto de imagens de rostos que aparecem de forma fantasmática, diluída, sem possibilidade de identificação.

Por um lado, em Reserve Canada, Boltanki lembra os cadáveres esquecidos no extermínio do Holocausto. Vestimentas penduradas em grande número torna imensa a manifestação da ausência corporal. E remontando essa ausência aos tempos de guerra, são rastros de um tempo sem documento, sem reconstituição fiel, carente de testemunhas. O artista alerta para a ausência de pistas, de rastros – principalmente humanos - deixados da época do extermínio em massa. O vazio evocado pelas roupas enfatiza o desaparecimento da recordação, o aniquilamento da memória.

Por outro, Reliquaire tenta dimensionar a destruição dos documentos desses anônimos extinguidos pelo rumo da história. As fotografias que compõem a obra aparecem de forma irreconhecível, diluídas, quase apagadas. As imagens metaforizam nossa própria memória sobre esses acontecimentos. A inexistência de arquivos tão estimulada por Hitler toma forma na inexatidão desses rostos. Como lembrar se nos fizeram esquecer? Nossa frágil lembrança de uma presença remota corre o risco de apagar-se inteiramente. É essa fragilidade que Boltanski evoca nos rostos de Reliquaire (ver Fig.13, a seguir).

As ruínas trazidas nas duas obras – tanto as peças de roupa quanto os rostos indefinidos – aludem à incompletude, à presença do ausente, temas que são enfáticos ao falarmos de fotografia. Fotografar é tornar lampejos acontecimentos passados, é criar rastros e apropriar-se deles não como verdade, mas como fragmentos de um tempo frágil. Nesse sentido é que, mesmo em trabalhos em que a fotografia não é o material em exposição, Boltanski é fotográfico. Ele trabalha com as relações que se desdobram da relação “fotografia como ruína”.

Roupas e fotografias falam de presença e ausência, de rastro. Nas roupas, a ausência de um corpo e a presença do seu invólucro. Na fotografia, a ausência do objeto fotografado, mas ao mesmo tempo, o traço de sua presença. Boltanski joga com esses duplo. Suas obras põem em questão nossa capacidade fotográfica de ver o mundo, as ruínas dele. E esse jogo de

mostrar e ocultar é também sobre o que fala Benjamin (1984, p.198), em sua visão alegórica da imagem. “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora (...) o falso brilho de totalidade se extingue”.

Reconstituir totalmente as lembranças não é uma tarefa que cabe à fotografia nem ao artista. Entretanto, ambos atuam na escavação das camadas da memória do passado. Ao trazer à tona a inconclusão dos acontecimentos, a ausência de testemunhas do Holocausto, a fragilidade da lembrança, Reserve Canada e Reliquaire lançam luz à sombra sobre a qual persiste um fato histórico. A partir dos fragmentos, mostram que as recordações dos sujeitos mortos, ali representados pelas fotografias e vestimentas, não são reconstituíveis, mas essa impossibilidade convoca a persistir acesa a existência do inenarrável.

FIGURA 13: Reliquaire - Christian Boltanski (1989)

No trabalho histórico, paralelo ao da memória, está em jogo o tempo do “agora”, na relação que esse tempo tem com um tempo passado. Temos conhecimento de que essa relação vai na contramão do historicismo, que lida com o “tempo homogêneo e vazio”. Assim, não sendo possível termos uma exatidão descritiva do passado, já que cairíamos no “dogma da verdade”, devemos olhar para trás com desconfiança. Cabe, então, enfatizar a dualidade verdade/mentira do que herdamos como passado. E, também, questionar o que se coloca como documento-rastro. A fotografia, considerada esse documento-rastro, pelo menos desde o seu uso como tal, participa desse conflito entre o que é falso e verdadeiro na imagem.

Ao falarmos de documento, naturalmente associamos o termo à ideia de prova, testemunho, constatação e, embutida nessa relação, a questão da verdade. Reiterando o que já abordamos no início do capítulo, a fotografia exerce um papel fundamental nessa relação de comprovação dos acontecimentos, e se caracteriza, no senso comum, como documento visual incontestável da existência de um determinado objeto ou fenômeno. Jonh Tagg (2005) assinala que a fotografia pode estar impregnada da ideia de prova, de constatação da existência daquilo que ela mostra, quando acompanhada de um processo social, histórico ou cultural que a assegure.

Que una fotografia pueda ser llevada al estrado de prueba, por ejemplo, no depende de un hecho natural o existencial, sino de un proceso social, semiótico, aunque con ello no intento sugerir que el valor de prueba esté incrustado en la copia impresa, en un aparato abstracto, o en una estrategia de significación concreta (TAGG, p.11, 2005).

Tagg enfatiza que a noção de prova “documental” associada à fotografia está envolta de um aparato social, mais do que do seu vínculo existencial, condicionado pelo índice. Afirma que o problema da evidência fotográfica é histórico e não apenas proveniente de um “feito natural”. Ou seja, é um resultado da história o discurso da fotografia enquanto prova. Não é à toa que ele relaciona as técnicas de representação e regulação social do século XIX (vigilância, arquivos de penitenciárias, manicômios) ao reconhecimento da fotografia como instrumento de “prova” oficial das instituições. Arquivos fotográficos foram montados nessa época com o intuito de guardar “evidências” em investigações judiciais. Só posteriormente, em um contexto capitalista, segundo o autor, é que o “documental” se sobressaiu como discurso, quando a imediatez e a verdade19 tiveram no meio fotográfico um lugar privilegiado.

19

O autor se refere ao um momento de crise (social, econômica e identitária) vivido na Europa Ocidental e nos Estados Unidos que teve como resposta o discurso documental de “expor os fatos”, a “experiência de primeira mão”.

Se, nesse esforço de “provar”, “evidenciar” fatos, a imagem fotográfica é usada pelo corpo social, ela também é, dizemos, manipulável, construída. Kossoy (1999, p.134) nos fala dessa construção em outro momento: a fotografia cria realidades; “é uma representação

elaborada cultural/estética/tecnicamente”. Essas realidades da fotografia fazem com que sua

“essência” puramente técnica e tida como “neutra”, que garante um estatuto de “verdade”, seja questionada. “Sempre houve um condicionamento quanto à ‘certeza’ de a fotografia ser uma prova irrefutável de verdade”. (id., ib., p. 133).

Retomemos o duplo verdade/mentira do documento no que concerne à sua apresentação do passado. Não é apenas a existência documental que garante a apreensão da verdade. Precisamos, também, levar em consideração a ausência como forma de compreender essa “vontade de verdade”. A noção de rastro ligada à memória, ao mesmo tempo em que nos coloca diante de uma “evidência” mutilada do passado, liga-se ao seu correlato, a “ocultação”. Nessa perspectiva é que, mais uma vez, citamos a memória como meio para o escavador/historiador/arqueólogo e, também, para aquele que investiga o passado com base em fotografias. O documento deve ser questionado como a quem interroga um criminoso que mente.

***

Difícil falar de criação de realidades para o documento fotográfico sem citar a Série

Vulgo de Rosângela Rennó. Isso acontece porque, nessa série, são utilizadas fotografias

pertencidas originalmente ao Arquivo do setor de Psiquiatria e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo, e concedidas à artista para a execução da obra. As fotografias foram feitas e arquivadas pelo citado setor com o propósito de identificar os prisioneiros por número, características físicas, cicatrizes, dentre outras marcas. Quando deslocadas de seu contexto original, as imagens são esteticamente reelaboradas.

Esse arquivo penitenciário e seus objetivos de identificação dos detentos põem em evidência o discurso da fotografia enquanto prova. Como forma de vincular às imagens o estatuto de documento-verdade, a penitenciária também está, de certa forma, carregando-as de intencionalidade. Rennó não faz nada mais do que evidenciar esse jogo de intenções que existe na elaboração dos documentos. Trazendo as imagens para o campo artístico, em que o

No documento A Fotografia como ruína (páginas 86-103)

Documentos relacionados