• Nenhum resultado encontrado

A Fotografia como ruína

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A Fotografia como ruína"

Copied!
122
0
0

Texto

(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO. A fotografia como ruína Elane Abreu de Oliveira. Profª. Drª. Nina Velasco e Cruz Orientadora. Recife, dezembro de 2009.

(2) 2. UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO. A fotografia como ruína Elane Abreu de Oliveira. Dissertação. apresentada. ao. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. da. Universidade. Federal de Pernambuco. como. requisito parcial para a obtenção do. título. de. Mestre,. sob. a. orientação da Profa. Dra. Nina Velasco e Cruz.. Recife, dezembro de 2009.

(3) 3. Oliveira, Elane Abreu de A fotografia como ruína / Elane Abreu de Oliveira. – Recife: O Autor, 2009. 120 folhas: il., fig. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Comunicação, 2009. Inclui bibliografia. 1. Fotografia. 2. Benjamin, Walter, 1892-1940. 3. História. 4. Memória. I. Título. 77 770. CDU (2.ed.) CDD (22.ed.). UFPE CAC2009-106.

(4) 4.

(5) 5. Para meus pais, pela torcida ininterrupta. Para Murilo, pelos momentos de descon(cen)tração. Para Tia Tereza (in memorian), pelas lembranças risonhas..

(6) 6. AGRADECIMENTOS. Sobretudo, à força divina que me acompanha a cada palavra escrita. A meus pais, família e amigos que, de tão perto, compreenderam o isolamento necessário para realização deste trabalho: Eliane, Firmino, Marilane, Tâmara, Keren, Sandra, Nila, Ibrantina, Camila e Fava. A Paulo Victor, pela companhia e paciência (ainda que curta) para os lamentos. A Mateus, pelas conversas filosóficas. A Nina, pelas sugestões, livros e estímulos a seguir a carreira acadêmica. Ao PPGCOM - UFPE, que tão bem me acolheu..

(7) 7. Entre os inúmeros gestos de comutar, inserir, acionar etc., especialmente o “click” do fotógrafo trouxe consigo muitas conseqüências. Uma pressão do dedo bastava para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava ao instante um choque póstumo. Walter Benjamin.

(8) 8. RESUMO. Com base no pensamento benjaminiano sobre a imagem e o tempo, traçamos um paralelo entre o conceito de fotografia e a noção de ruína. Evidenciamos o que há de comum nessa analogia com o objetivo de aprofundar a discussão da questão: como a fotografia, ao se caracterizar como ruína, dialoga com a descontinuidade do tempo? Nesse caminho, percebemos no legado de Walter Benjamin pontos-chave para construirmos nossa fundamentação, tais como: o conceito de história, a memória, a ruína alegórica barroca e a própria fotografia. A contribuição do filósofo nos permitiu ligar tais temas aos liames da teoria fotográfica tão discutida por Roland Barthes, Philippe Dubois, André Bazin, dentre outros que balizaram a fotografia sob a ótica do vestígio, do rastro do real. Interessou-nos perceber a proximidade entre imagem fotográfica e o tempo descontínuo que se estabelece na dialética entre passado e presente, aparência e ocultação, morte e vida. Indo além, também relacionamos. fotografia. e. história,. que. põem. em. evidência. duplos. como:. documento/monumento e verdade/mentira. Ao longo do texto, dedicamo-nos a apresentar imagens de fotógrafos que trabalham, de formas diversas, com a fotografia como ruína. São eles: Eugène Atget, Christian Boltanski e Rosângela Rennó. Essa seleção de imagens, sobretudo, reforça temas benjaminianos que abordamos. Buscamos, então, construir e fundamentar um texto com o intuito de chegar mais próximo daquilo que seria, para Benjamin, a imagem fotográfica de seu pensamento. PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Walter Benjamin. História. Memória..

(9) 9. ABSTRACT. Based on Benjamin’s thought about image and time, we delineate a parallel between the concept of photography and the notion of ruin. We showed what is common in this analogy in order to intensify the discussion of the question: how does photography, when characterized as ruin, dialogue to discontinuity of time? So we can view in the legacy of Walter Benjamin key points to raise our basis, such as: the concept of history, the memory, the allegorical baroque ruin and the photography. The philosopher’s contribution allowed us to connect these themes to the photographic theory so discussed by Roland Barthes, Philippe Dubois, André Bazin, among others who have guided the photography under the perspective of the vestige, the trace of real. We are interested on the nearness between photographic image and discontinuous time that is established in the dialectic between past and present, visibility and hiding, death and life. Beyond this, we relate photography and history, which highlight doubles like: document/monument and truth/lie. Throughout the text, we are dedicated to show pictures of photographers who cultivate, in many ways, photography as ruin. They are: Eugène Atget, Christian Boltanski and Rosângela Rennó. This choice of images steps up Benjamin’s subjects we work. So we try building and basing a text with the aim to approach of what would be, for Benjamin, the photographic image of his thought. KEYWORDS: Photography. Walter Benjamin. History. Memory..

(10) 10. SUMÁRIO. INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 1. A CONTRIBUIÇÃO DE BENJAMIN – IMAGEM E TEMPO.....................................15 1.1. Hístor é testemunha ocular, aquele que viu.......................................................................15 1.2. A memória é monádica......................................................................................................26 1.3. A ruína é uma miniatura de mundo....................................................................................42 1.4. Fotografar é revelar............................................................................................................51 2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO........................................................65 2.1. O traço fotográfico e as ruínas...........................................................................................65 2.2. Do efeito Medusa ao instante movente..............................................................................75 2.3. Sob rastros de memória......................................................................................................86 2.4. Da morte à redenção........................................................................................................103 CONCLUSÕES.....................................................................................................................111 As descontinuidades atravessadas...........................................................................................111 Pequenas fotografias do pensamento......................................................................................114 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................119.

(11) 11. INTRODUÇÃO Durante minha trajetória acadêmica, em trabalhos e em conversas informais entre amigos, o tema do “tempo” sempre exerceu determinado fascínio em mim. Seus usos, sua pressa, sua inconstância, seu gasto, suas expressões, sua longevidade, sua fugacidade. Por mais amplo e metafísico que o “tempo” possa parecer, a fotografia foi o “meio” e a “expressão” que mais se afinou com os meus pensamentos na Comunicação. Instigava-me, na fotografia, como o tempo podia “parar” em imagem; ato praticamente impossível de se fazer na nossa vida, tão ativa. Assim, na maioria das atividades (teóricas ou práticas), a serem desenvolvidas na graduação e na especialização, tentava encaminhá-la para um dos dois temas: tempo ou fotografia. A teoria da imagem fotográfica, contudo, estivera mais presente que sua própria produção. Eis, agora, a pesquisa de mestrado. E mais uma vez o tempo. A fotografia/ruína. Debruçamo-nos (orientanda e orientadora), por algum tempo, sobre uma relação que pode, aos olhos de alguns, estar diretamente associada à sujeição ao tempo passado: a fotografia como ruína. Preferimos esse título aberto, ou seja, não muito explicativo, uma vez que tratamos de um tema igualmente aberto, ainda inconcluso, e que, neste trabalho, será esboçado. Sem intuito de exaurir o tema, a versão logo mais escrita, será um passeio de modo a melhor percorrer o terreno irregular da questão: como a fotografia, ao se caracterizar como ruína, dialoga com a descontinuidade do tempo? Para responder a essa pergunta, apoiamonos, primordialmente, no pensamento benjaminiano, que, dentre outros, destaca-se por sua escrita imagética e fragmentária – fotográfica e em ruínas. A própria fotografia como modelo de pensamento. Um teórico que não queria ser visto como doutrinário. É inconcebível falar de Benjamin sem deixar brechas, fendas no ato do texto. Ao refletirmos sobre o seu pensamento, consequentemente, estamos dispostos a mergulhar em sua incompletude e expostos a fazer outras tantas lacunas. Topamos o desafio. Aproveitamos o caráter aberto de sua obra para, quem sabe, esgarçá-la ainda mais. Seus escritos são aqui consultados como ponto de partida para pensarmos a relação de sua filosofia com as imagens e o tempo, já que isso também interessa às nossas questões sobre a fotografia. Fazemos isso, também, sem esquecer a grande contribuição do teórico para o estudo e a crítica dos meios de comunicação, os quais, no raiar do século XX, influenciaram de forma decisiva o modo perceptivo dos habitantes das grandes cidades. Em seus textos clássicos na.

(12) 12. área de Comunicação (O narrador, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, A pequena história da fotografia), Benjamin é atento a essas mudanças provocadas pelo advento das técnicas reprodutivas. Os ganhos e as perdas nesses novos processos que se impunham ao homem moderno foram destacados pelo filósofo de forma emblemática. Perdas: da aura, da experiência, da capacidade de narrar. Ganhos: do inconsciente ótico, das semelhanças, da arte como fotografia. Como aquele que procura escrever tentando concretizar uma visibilidade através do texto, Benjamin é o “colecionador” dos “fragmentos”, da escrita ensaística, das citações, do minúsculo. Seu conceito de “imagem dialética” percorre insistentemente seus escritos. E quando associamos essa dialética à própria fotografia e o tempo, vem à tona outras manifestações: “dialética parada”, “dialética na imobilidade”, “dialética da embriaguez”. Esse conceito, também, é expresso em sua filosofia da história, que também exploramos com dedicada atenção. Em seu ensaio das teses Sobre o conceito da história, temos diversas formulações do pensamento em imagem. Dele, extraímos o potencial da fotografia se expressar sob o signo do clic, do instantâneo. Nosso estudo, por alguns, poderá ser caracterizado como “essencialista”, uma vez que trazemos, junto a Benjamin, um corpo de teóricos que se dedicaram a responder o que é fotografia, o que ela tem de específico, ou como se dá sua gênese (Barthes, Bazin, Dubois). Entretanto, sublinhamos que nossa intenção é identificar no que esses pensadores auxiliam à nossa questão principal: como a fotografia, ao se caracterizar como ruína, dialoga com a descontinuidade do tempo? Nossa busca por diálogos alargou nosso horizonte para outras áreas (Filosofia, História), o que deu à pesquisa um caráter interdisciplinar. A própria Comunicação já se constrói em um campo de contatos com outras disciplinas. Desse modo, apenas damos ênfase a essa característica. Com base no levantamento bibliográfico, partimos de uma comparação, ou melhor dizendo, de uma analogia entre fotografia e ruína para exprimir os momentos em que essas duas ideias dialogam entre si e como uma pode esclarecer a outra. Em prévias palavras, sem recorrer ao dicionário, ruína implica em resíduo, vestígio, fragmento, resto do que foi, passado, incompletude, ausência presente, morte. Falar de algo arruinado é falar de algo fracassado, malogrado, sem vida. Já no exercício de encontrar sinônimos para o termo, poderíamos destacar várias das possíveis semelhanças à ideia de fotografia. Contudo, o que está no cerne dessa relação e intrínseco às duas é a noção de tempo e, arriscaríamos dizer, de.

(13) 13. um tempo paradoxal: tempo passado/presente, morto/vivo, aparente/oculto; tempo-fragmento, quebrado, descontinuado. Seguimos as pistas que esse duplo fotografia/ruína deixou para nós. Os capítulos que se seguem foram divididos em tópicos e sub-tópicos de forma a melhor apresentar as bifurcações do tema principal. Afirmamos, com isso, que não existe uma divisão arriscada entre “capítulo teórico” e “capítulo de análise”. Toda a dissertação é de cunho teórico e, como tal, todo capítulo é concomitantemente de análise. Mostramos fotografias e as analisamos ao longo de todo o trabalho, no intuito de dar evidência à força do suporte. Não escolhemos apenas um fotógrafo porque a variedade de autorias se adequava melhor à polifonia de nossa proposta. Então, concentramos nossa atenção em obras de três fotógrafos/artistas, que trabalham questões singulares sobre a fotografia como ruína: Eugène Atget (1857-1927), Christian Boltanski (1944-) e Rosângela Rennó (1962-). Eugène Atget, fotógrafo que viveu na França no transpor do século XIX para o XX, esteve atento às ruínas de Paris, seja nos lugares como nas pessoas que ali viviam. Christian Boltanski, artista francês contemporâneo, consagra-se por trabalhar as fotografias como apelo à lembrança. Suas obras devolvem à vida arquivos-ruína, muitas vezes, silenciados pelo encadeamento histórico. Rosângela Rennó, artista visual brasileira ainda em atividade, desenvolve sua obra com base nos vários tipos de imagens-ruína: as midiáticas, as de álbuns fotográficos abandonados, as de arquivos institucionais e pessoais. Assim, com base nesses três modos de apropriação das imagens, buscamos traçar elos entre o suporte imagético e o pensamento fotográfico. No primeiro capítulo, resolvemos tratar especificamente da escrita imagética de Benjamin e justificar como ela se relaciona à visibilidade fragmentária do tempo. Sustentamos nossa abordagem em diversos pensadores do filósofo: Kátia Muricy, Rainer Rochlitz, Paulo Rouanet, Mauricio Lissovsky, Olgária Matos, Flavio Kothe, dentre outros. No segundo, abordamos, de maneira mais específica, as teorias e os discursos sobre a imagem fotográfica que falam mais de perto à sua relação com a ruína: a noção de índice, o “isso foi”, o corte, a morte do referente, o congelamento, o rastro, o instante (Barthes, Bazin, Dubois, Sontag, Kossoy). Também colocamos em evidência os temas da memória, do documento e do monumento, que, pelos historiadores que defendem uma descontinuidade temporal presente no tempo histórico (Le Goff, Foucault, Nora), são discutidos com especial relevo. E claro, não esquecemos de sempre dialogar com o próprio Benjamin..

(14) 14. Nosso interesse é perceber, como a noção de rastro, vestígio, é recorrente, seja na fotografia, seja na história, seja na memória, na noção de instante. A descontinuidade temporal na fotografia como ruína pode ser vista por esses diversos ângulos. O paradoxo que sustenta a “imagem dialética” é encontrado de variadas formas na fotografia como imagem descontínua, imagem-ruína. Incompletude, passado/presente, morte/vida, presença/ausência, congelamento/mobilidade, são alguns dos duplos que apresentamos sob a ótica do rastro/ruína. Não intencionamos, entretanto, assumir uma postura “filosófica”, tampouco “metafísica”. Esse trabalho se dirige aos interessados em pensar a fotografia fotograficamente e àqueles que, de alguma forma, arriscam pensar alguns conceitos benjaminianos. Repetimos que se trata de um diálogo sobre fotografia e suas manifestações em rastro temporal. Ou seja, a fotografia é o meio e o objeto em questão. A ótica e o olhado..

(15) 15. 1. A CONTRIBUIÇÃO DE BENJAMIN – IMAGEM E TEMPO Elaboramos, neste capítulo primeiro, aquilo que poderia ser chamado de uma ancoragem benjaminiana, em que o texto é seccionado por temas de nosso interesse central. Cada tópico apresentado, no entanto, diferentemente de Benjamin, não se pretende um mosaico, em que os fragmentos são propositalmente descontínuos e desordenados. Não concretizamos essa premissa assistemática. Propomos uma condução de leitura – que, claro, pode ser seguida ou não –, para termos um entendimento mais lúcido sobre cada assunto abordado e, também, para facilitar a lembrança de cada tema quando a ele nos reportamos em outras seções e capítulos. Na primeira seção, trataremos da concepção benjaminiana de história e mostraremos como sua escrita fragmentária consolida seu pensamento. Utilizaremos as “teses sobre o conceito da história” como articulação desses temas. Na seção seguinte, buscaremos esmiuçar o seu pensamento sobre a memória, que está evidentemente ligada à dimensão temporal, apresentando o entrelaçamento de suas ideias às de Proust, de Bergson e de Baudelaire. Na terceira seção, daremos ênfase à visão barroca na constituição de uma história a partir e por meio das ruínas. Por último, esboçamos uma articulação sobre a fotografia e os temas anteriormente apontados. Com isso, não esperamos dar conta da arquitetura do pensamento de Benjamim. É nossa intenção esboçarmos algumas reflexões de temas relevantes que se articulam com a imagem fotográfica. Comprometemo-nos em não ser demasiadamente extensos nem insuficientemente breves. 1.1. Hístor é testemunha ocular, aquele que viu Descontinuidade, heterogeneidade, pormenores. Ensaio, aforismo, fragmento. A forma da escrita de Walter Benjamin muito fala sobre sua postura de expressar nas palavras a experiência do tempo que flui. Ele se dirige às místicas românticas e cabalísticas, de escritores como Hamman, Herder e Friedrich Shlegel, cujos esforços se deram em utilizar a linguagem como expressão de conteúdos mentais, não-verbais. Neste sentido, a linguagem para Benjamin é mágica, pois é imediata no que é comunicável da essência espiritual. E este recurso corporifica o seu “método de desvio”, de “caminho indireto” ou do “mosaico”, como coloca Kátia Muricy (1998), Rainer Rochlitz (2003) e Paulo Sergio Rouanet (1984), ao comentarem a apresentação das ideias na filosofia de Benjamin..

(16) 16. A natureza monadológica das idéias apresenta a verdade, que nunca se totaliza mas, ao contrário, constitui-se como o mosaico, que só existe em razão de sua fragmentação. A escrita é um medium dessa apresentação que atende ao caráter descontínuo do pensamento. (MURICY, 1998, p.183).. Dois esclarecimentos se fazem necessários: o que é mônada e o que é medium. Para Benjamin, a verdade aninhada nas ideias como “interpretação objetiva da história” é também um ser que se mostra no fragmento. “Enquanto contraste entre uma estrutura fechada e a totalidade, a ideia é mônada.” (id., ib, p.152). A mônada, como imagem da ideia, é o “mundo em miniatura”, autosuficiente, carregando a concretude histórica do mundo e a atemporalidade inteligível da ideia. Esta natureza monadológica, visão muito cultivada no período barroco1, precisa ser aqui compreendida para que entendamos como a ideia rompe com o continuum da história e funda uma outra temporalidade. A ideia é origem, um salto, é algo que emerge, uma libertação do vir-a-ser dos acontecimentos. Ao mesmo tempo em que é histórica, é a-histórica ao desvencilhar-se do via-a-ser. A monadologia de Leibniz designa o termo mônada como unidade espiritual indivisível e eterna, componente simples do universo. Sendo parte e também todo, ela é um ponto de vista sobre o mundo ao mesmo tempo em que é todo o mundo sob determinado ponto de vista (ABBAGNANO, 1982). Esse conceito é crucial para compreendermos como Benjamin exprime a ideia de salto na história e também o próprio sentido dado ao fragmento. A mônada sugere uma percepção particular da unidade, do instante. Sua visão é da origem, em que não há começo nem fim, já que é composta por partes e, por partes, começa e acaba. Ela corporifica o instante como tempo de interrupção, ao modelo de um disparo fotográfico. Já o medium não quer dizer, como parece, meio. É o imediato, o que se manifesta imediatamente na linguagem, sua essência espiritual, mágica. A linguagem humana seria um reflexo da essência de Deus, que é o verbo, e chega até nós no nome. “Benjamin irá considerar o nome, como o resumo da ‘totalidade intensiva da linguagem entendida como essência espiritual do homem’ e, simultaneamente, irá propor Deus como o destinatário da linguagem humana:” (MURICY, 1998, p.102). A comunicabilidade do espírito é garantida no ato de nomear as coisas. Nesse aspecto, podemos extrair de Heidegger (2003) o poder de evocação do nome. Nomear é evocar, é aproximar o que se evoca, mas não com o fim de 1. A concepção barroca de ideia como mônada muito influenciou Benjamin para sua concepção barroca de história. O Trauerspiel – drama barroco – é o paradigma para sua análise, como veremos no tópico “A ruína é uma miniatura de mundo”..

(17) 17. tornar as coisas imediatas, mas de convocar, trazer para uma proximidade “a vigência do que antes não havia sido convocado”. Sublinhamos que, para o filósofo, o termo essência carrega o sentido do vigor, do vigorar (wesen). “Evocar é sempre provocar e invocar, provocar a vigência e invocar a ausência” (id., ib., p.16). Na proposição de Heidegger (e também na de Benjamin), no nome das coisas, ligamos mortais e divinos, pois a evocação nomeadora convida as coisas para perdurarem no mundo. “No nomear, as coisas nomeadas são evocadas em seu fazer-se coisa. Fazendo-se coisa, as coisas des-dobram mundo, mundo em que as coisas perduram (...) Fazendo-se coisa, as coisas são gesto de mundo” (id., ib., p.16-17). Entender essa capacidade de evocação do nome é captar que o mundo, para Heidegger, concede às coisas sua essência. Em essência, o homem é linguagem. Heidegger e Benjamin privilegiam o aspecto linguístico não como instrumento, mas como essencial. Essa “virada linguística” da filosofia participa do movimento de pensamento do século XX que privilegiou as formas de expressão da literatura e da filosofia. Rainer Rochlitz (2003, p.34) assinala que Benjamin recusa o caráter instrumental da linguagem, pois ela é “(...) medium de todo o conhecimento anterior a qualquer pensamento e constitutivo de toda consciência”. A concepção da linguagem é mística por dar ao homem um “papel messiânico na Criação”, um papel libertador, capaz de lidar com a experiência fragmentada do mundo. Antes do pecado original, quando as coisas não tinham nome, homem e natureza se comunicavam de forma imediata. Depois da Queda, a fala humana se tornou mediata, uma língua sobre as coisas e não das coisas, como coloca Mauricio Lissovsky (1998). O ato de nomear, então, adquire uma dimensão receptiva da própria língua das coisas e é reparador ao apaziguar a dor da perda desse elo imediato, adâmico. Tendo claras essas formulações, é mais compreensível apreender o que seria o “método” de Benjamin, que embora tenha a linguagem como primordial, leva-nos ao mundo das imagens presente nos textos. Paulo Rouanet (1984) designa esse método como “tratado filosófico” que se propõe a representar as ideias e, por isso, ele se recusa às falsas totalizações, como nas ciências sistemáticas. O sistema se opõe ao tratado. Enquanto o primeiro se baseia em elos, continuidades, coerências, o tratado é como mosaico: é composto de fragmentos de pensamento assim como o mosaico se compõe de fragmentos de imagem. Origem do drama barroco alemão, obra benjaminiana de 1928, é um exemplo dessa primazia do fragmentário. Seu texto é totalmente assistemático: há passagens bruscas, desconexões de um tópico a outro, citações, retomadas de temas constantemente. Passagens é outra obra que.

(18) 18. retoma esse caráter fragmentário do Trauerspiel (drama barroco) nos seus temas heterogêneos e citações, construindo-se pela montagem. É como se Benjamin, no intento de representar a natureza da verdade como ideia, mostrasse sua construção descontínua, estilhaçada. Na sua filosofia da história, Benjamin traz à tona tanto a sua abordagem fragmentária do tempo, como a sua rejeição a um tempo cronológico, linear, homogêneo, causal, herdado pela historiografia tradicional burguesa (o historicismo). Sua defesa é de que o historiador materialista, dialético, pode fundar uma outra concepção de tempo, calcado na intensidade relampejante do “agora” (jetztzeit), baseado na tradição messiânica e mística judaica. E isto, mais uma vez, carrega a visão de mônada de que falamos. (...) o historiador dialético deve libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua, salvando-o, sob a forma de um objeto-mônada: fragmento de história, agora intemporal, que o olhar de Medusa do historiador mineraliza, transformando-o em natureza, e que como tal dá acesso à préhistória do objeto, e à sua pós-história (ROUANET, 1984, p.19).. Há, dessa forma, uma temporalidade fundada no instante fixado pelo historiador. Ao mesmo tempo em que recorta o objeto da continuidade histórica, ele o salva do vir-a-ser enquanto mônada, que é intemporal. A partir dessa quebra na linearidade histórica, o objetomônada se estabelece como origem, salto, dando acesso à sua pré e pós-história. Esse salto é atual, emergente, libertador das amarras cronológicas. Ele inaugura um momento. É neste raciocínio que Benjamin escreve as suas “teses sobre o conceito da história”, de 1940. O filósofo expressa essa imagem do tempo, em que a visão verdadeira do passado é relâmpago, neste trecho da “tese” 5: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994a, p.224). Há um movimento veloz em jogo, que deve ser imobilizado. A imagem relampejante do passado só pode ser fixada no ato de seu reconhecimento. Temos, no trecho citado na “tese” 5, a imagem enquanto fugacidade, latência. O historiador dialético deve “mineralizar” esse instante imagético, pois o movimento historicista tradicional é o da marcha linear, progressista, que abafa essas possibilidades de congelamento e ruptura, fugidias. O passado enquanto “verdade”, “ideia”, na reflexão de Benjamin, não morre nas relações causais de passado, presente e futuro. Ele é atual, desde que salvo enquanto fragmento, mônada. Na “tese” 9, temos a imagem do anjo, quadro de Paul Klee descrito por Benjamin, como elucidativa dessa visão do passado. Aqui é ressaltado o aspecto catastrófico com que o anjo olha os fragmentos..

(19) 19. Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade (...) o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto um amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é chamada de progresso. (BENJAMIN, 1994a, p.226).. A “cadeia de acontecimentos” a que se refere o filósofo, nessa passagem, corresponde à concepção de um tempo histórico contínuo, homogêneo, sequencial (passado-presentefuturo). O anjo da história, boquiaberto, de olhar fixo, espantado com o acúmulo dessa cadeia, parece querer reverter esse momento e “acordar os mortos” em uma nova escrita histórica, que é descontínua. Nessa iminência do despertar, no entanto, a tempestade do progresso lhe arrasta para o futuro, vetando-lhe as possibilidades de transformar o passado. A visão relampejante do anjo (todos os tempos em um só), para Benjamin, deve impelir o historiador à ação, consciente da catástrofe. Aos nossos pés, há ruínas dispersas, que só o anjo vê. Seu olhar é iconoclasta. O congelamento de sua visão catastrófica dá uma dimensão de como o continuum da história progressiva procura silenciar acontecimentos que fogem à sua cadeia, à sua marcha. A força tempestiva do progresso torna homogêneo o tempo, pois o detém em uma sequencia linear em que as ruínas são ignoradas. É um esforço enxergar o tempo da história como saturado de “origens”, possíveis de libertação. Contudo, é tarefa da história (do historiador materialista) libertar esses fragmentos silenciados no passado, pois é no despertar das possibilidades abafadas que se pode mudar o presente e libertar o futuro que o passado não teve. “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”, como Benjamin (ib., p.229) ressalta na “tese” 14.. ***.

(20) 20. FIGURA 1: Romanichels, groupe - Eugène Atget (1912). Consagrado por fotografar construções e ruas de Paris vazias, Eugène Atget não esteve sensível apenas a registrar a cidade extinta do movimento de pessoas. Dentre seus registros, ainda que em menor número, destacam-se imagens como essa (acima, Fig.1), que retrata um grupo de pessoas em uma moradia provisória, isolada da agitação de um grande centro urbano. Trata-se das margens ao sul da cidade, em que estrangeiros e ciganos procuravam acomodar-se, uma vez que sua presença era ameaçada pelo exército. Nessa zona, assim nomeada até a Segunda Guerra, como destaca Szarkowski (2003), distante a uma milha do centro da cidade como forma de defesa, era proibido construir moradias de estruturas permanentes. Talvez a maioria dos residentes da zona fossem ciganos, que, não tendo interesse na permanência naquele lugar, pareciam invisíveis e, das minorias.

(21) 21. étnicas, os menos discutidos. Contudo, aos olhos de Atget, eles não passaram despercebidos. Da invisibilidade e vulnerabilidade as quais estavam sujeitos, o fotógrafo agiu contra a marcha progressiva, retratando-os e mantendo com eles uma troca de olhares que, ainda que provisória, possibilitou-lhes a visibilidade. Estando também atento à periferia da cidade, Atget rompeu com o olhar tradicional e historicista, que silencia as possibilidades de um desvio das amarras contínuas do tempo homogêneo. A fotografia acima é uma ruptura com a sequencia de acontecimentos que Paris seguia com o objetivo de se defender das ameaças externas. Nessa imagem, estão seres humanos, que à margem de um grande centro, viveram na incerteza da permanência. E ainda que alheios aos acontecimentos para além da zona, não foram sujeitos menos históricos. Ruínas de uma Paris em expansão, os residentes da zona, região provisória, foram alvo de um olhar incerto de Atget. Ao mesmo tempo em que a imagem capta um momento fugidio, o olhar fixo do fotógrafo para as pessoas estabelece um contato também incerto e arredio. Aquelas pessoas pouco compreendiam a escolha do fotógrafo, assim como o fotógrafo desconhecia a vida que ali se passava. Poderíamos dizer que Atget, ao congelar sua visão das ruínas, parece estar entre a tempestade que o leva e a possibilidade de salvá-las, bem ao modo do anjo da história. Esse momento de reconhecimento, é instantâneo, relampejante, tal como uma fotografia. Assim, essa imagem destaca-se não apenas de um fluxo histórico que o exército de Paris tinha a missão de manter, mas também de uma linearidade que a maioria das fotografias de Atget registrava, que eram as ruas, parques e cafés de Paris vazios de pessoas. Esses lugares o fotógrafo já conhecia com certa familiaridade e já realizava seus registros de forma metódica. A zona, contudo, para ele, era tão imprecisa quanto o confronto de olhares com aqueles que ali estavam. Sua fotografia interrompe um fluxo para dar visibilidade a uma minoria esquecida, de futuro incerto. A imagem permaneceu como pegada, poderíamos dizer, desse confronto de olhares entre ruína e anjo da história.. *** O “agora” a que Benjamin se refere implica a ideia de “origem”, que como já dito anteriormente, é o salto no curso do vir-a-ser. Os acontecimentos, como massa homogênea, abafam esses possíveis “agoras”, saltos e cristalizações. Esse abafamento reforça o princípio.

(22) 22. aditivo do historicismo. Já o princípio construtivo do materialismo histórico admite as fixações do tempo, as interrupções no fluxo da história, presentes nos momentos de tensões. Quem escreve a história, para Benjamin, deve considerar o presente como pensamento tensivo, que inclui não apenas o movimento das ideias, mas também suas imobilizações, tal como a “tese” 17. “Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada”. Cristalização, mineralização, fragmento, mônada. O exercício de escrita histórica implica em considerar esse modo de apresentação das ideias. O movimento concomitante à paralisação e a incompletude paralela à totalidade, evidenciados nas “teses”, levam-nos à compreensão de uma ambivalência presente na visão fragmentária e construtiva da história. No fragmentário, nos destroços, também está a “força messiânica”, de salvação. “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. (...) foi-nos concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo”, como diz Benjamin (1994a, p.223), na “tese” 2. O salto no tempo, pelo historiador marxista (materialista) está diretamente ligado ao atual, assim como a moda cita o antigo. Na “tese” 14, a noção temporal do salto na moda é associada à dialética de Marx. E como sabemos, salto é origem. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o céu livre da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx (BENJAMIN, 1994a, p.230).. Nesta direção, apreendemos uma atitude histórica marxista voltada para a atualidade, independentemente do período temporal em que ela acontecer. A sua atualidade é “livre”, sem as amarras de uma visão dominante. Nisso, ela se distingue da moda. No entanto, a ideia do salto para a moda afirma a atemporalidade presente na origem. É a ideia de uma emergência que pode ser atual a qualquer momento, mesmo que cite um momento passado. O “agora” está disperso e pode explodir do continuum. Há uma força revolucionária nesse “agora”. Essa irrupção no tempo é messiânica, salvadora, como é colocado por Benjamin em alguns trechos de suas teses, os quais citaremos. O materialista histórico aproveita a oportunidade de cristalização do tempo de natureza monadológica, “(...) reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido” (id., ib., p.231). A tarefa da.

(23) 23. história enquanto salvadora é arrancar o passado da opressão dominante, assim como Messias, na tradição judaica. “O ‘agora’, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana” (id., ib., p.232). Nesse trecho da “tese” 18, há uma comparação da abreviação da história humana com o “agora” messiânico. É como se esse “agora” nos desse uma noção do ínfimo tamanho da história que conhecemos e da imensidão que ainda desconhecemos. É uma proporção em escala: enquanto um salto messiânico nos dá a ver toda história da humanidade, essa mesma história corresponde a um ínfimo lugar no universo. O “agora”, ao mesmo tempo em que abrevia, age como mônada. Traz à tona a ideia do todo no minúsculo, no fragmento. O nexo causal existente entre os vários momentos da história contenta o historicista. Contudo, o historiador consciente desse nexo, não se conforma em tomá-lo enquanto verdade. Ele capta essa configuração causal, em que sua época “(...) entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltram estilhaços do messiânico” (id., ib., p.232). A determinação de uma época, o seu enclausuramento entre limites temporais da história dos vencedores, em nada perturba ou apela, pois é preenchida pela “massa dos fatos”, homogênea, contínua e vazia. Já o presente enquanto “estilhaço messiânico” é carregado de uma força redentora, “uma experiência única”, como o ímpeto do anjo da história. Neste presente, “ele mesmo escreve a história”. (id., ib., p.230). Como na crença judaica, “cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias” (id., ib., p.232). Encarar esta emergência permanente do tempo coloca o historiador materialista em um estado de alerta constante, pois o “estilhaço” é, muitas vezes, imperceptível. “Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história” (id., ib., p. 224). Nessa metáfora, Benjamin descreve o momento tênue, sutil, em que o historiador materialista pode salvar o passado em um “estilhaço”. O perigo é outra forma do passado se apresentar enquanto ameaça, catástrofe. A visão do anjo ressalta esse aspecto. Ela relampeja perigosamente. Na “tese” 6, é evidenciada essa ameaça da imagem do passado, a qual o materialismo histórico deve fixar e apresentar ao sujeito histórico, sem que ele seja consciente disso. “O perigo ameaça tanto a existência da.

(24) 24. tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento”. (id., ib., p. 224). Cabe ao historiador impedir que esta entrega se perpetue. Benjamin, na “tese” 7, também fala da aderência ao “método de empatia” por parte do investigador historicista e que é rompido pelo materialismo histórico. Essa empatia é com os vencedores. Sua origem é a inércia do coração, a acedia2, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. (...) A empatia com o vencedor beneficia sempre (....) dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. (BENJAMIN, 1994a, p.225). Os vencedores de hoje são herdeiros dos que dominaram antes. Nesta herança, o triunfo de cada dominador carrega o preço da opressão dos dominados, “seus corpos espezinhados”. Vale destacar aqui a apatia, a inércia, com que os vencedores contêm o desespero do “relampejar fugaz” do passado. É nesta inércia diante do desespero que faz com que o passado homogêneo seja transmitido de forma empática. A atenção do materialista histórico é decisiva nessa relação, pois ele deve olhar também para os mortos nesse triunfo, rompendo a empatia da vitória herdada ao longo das gerações. A barbárie em que se caracterizou o processo de transmissão cultural, ou, em outras palavras, os bens culturais resultantes do “espezinhamento” dos vencidos, leva o materialista histórico a refletir o “cortejo triunfal” com horror. A cultura carrega em si a barbárie. “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (id. ib., p.225). Neste sentido, Benjamin agrega um caráter negativo à cultura que, no caso, está aliada aos valores burgueses, das classes dominantes. A tarefa do historiador consciente é se distanciar dela, escovando a “história a contrapelo”. Nesta visão da barbárie, temos também a visão catastrófica do anjo da história. Como já citado, o anjo “(...) vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés” (id., ib., p.226). Redimir o passado, colher seus fragmentos relaciona-se também com a descontinuidade da cultura. História e cultura são alvos do ato de “despertar os mortos”. Para ambas, é necessário um olhar iconoclasta, que escape do progresso e resgate “os corpos prostrados no chão”. “O dom de despertar no passado as 2. Na sua concepção medieval, a acedia é a “preguiça do coração”, mal da alma, o abandono da busca de Deus. (MATOS, Olgária. Aufklärung na metrópole: Paris e via láctea, in: BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa oficial, 2007)..

(25) 25. centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer” (id., ib., p.224-225). A história é tarefa que nunca se conclui de geração para geração. Sua construção e sua sujeição a novas origens são características que fazem com que a cada época se construa simultaneamente passado e futuro. O futuro está no presente de cada época, na origem, como futuro do pretérito. Essa forma anterior de futuro, contida no presente, é expressa na “imagem da felicidade”, colocada por Benjamin na “tese” 2. São resgatadas possibilidades do que “poderia ter sido”: (...) nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à salvação” (id., ib., p.222-223).. Esse futuro do pretérito, que nos liga a um momento messiânico, de felicidade salvadora, retoma uma imagem de um passado invejável, em que poderíamos ter agido de maneira diversa. Esta relação temporal, original, em que passado e futuro se entrecruzam, não valoriza uma espera pelo que virá, mas uma atuação no presente, no “agora”. Falar de uma “inveja” atrelada ao que já vivemos é, dessa forma, acender “centelhas de esperança” no já vivido. Despertar, perigo, estilhaço, “agora”. É inegável que, nas suas “teses”, Benjamin quer revolucionar nossa maneira usual de pensarmos o tempo. Somente com essa transformação, há possibilidade de formular outra concepção de história. Nesse intento, o filósofo nos envolve com escritos que se apresentam como imagens. Imagens do seu pensamento. Da mesma forma como acena para uma dimensão da história cujo todo resulta do descontínuo, ele, enquanto escritor, incorpora o modo fugaz de apresentar as ideias. Já que a verdade assim se apresenta no seu método. As imagens, para Benjamin, são dialéticas, quando coexistem nelas ambiguidades, ambivalências como passado e presente, antigo e agora, sonho e despertar. A linguagem é o imediato, o medium dessa “dialética parada” ou “dialética na imobilidade”. Lembremos da imagem descrita do anjo. Sua construção é dialética pelo potencial das palavras que o descreve como ambígua: “passado”, “futuro”, “mortos”, “acordar”, “encara fixamente”, “impele irresistivelmente”. O anjo é heterogêneo, descontínuo, imóvel movente..

(26) 26. Para Rochlitz (2003, p.329), “a dialética da detenção opera um corte transversal no processo histórico, a fim de extrair dele uma imagem às ambiguidades reveladoras”. O autor reforça a característica que Benjamin (2007, p.48) aponta neste fragmento de “Paris, a capital do século XIX”: “a ambiguidade é a manifestação imagética da dialética, a lei da dialética na imobilidade. Esta imobilidade é utopia e a imagem dialética, portanto, imagem onírica”. No entanto, mesmo onírica, a imagem dialética é decisiva para o despertar. Muricy se refere à “dialética parada” presente nas “teses” pelo encontro das palavras para a construção do relampejar. “A fugacidade desse encontro – expressa na reiterada da metáfora do relâmpago – e o perigo que o apelo do passado ao presente não seja por este entendido, são indicados, nas teses, por diferentes formulações” (MURICY, 1998, p.226). Referendar essas formulações do relâmpago seria redundante, já que, ao longo do texto, citamo-las. O caráter ambíguo da imagem dialética (sonho-despertar, movimentoimobilização, passado-presente) está presente na imagem relampejante e é nele onde deve investir o materialista histórico.. 1.2. A memória é monádica Está ali, nas “teses sobre o conceito da história”, apesar de não ser claramente detalhada, a questão da memória. É das “teses” que retiramos um ponto de partida para falarmos de tempo e memória. Nas palavras de Benjamin (1994a, p.224), “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Na reminiscência está o germe da memória. Para os gregos, Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era a musa da poesia épica. Em seu ensaio O narrador, de 1936, Benjamin fala de uma tarefa fundante da reminiscência. “Ela funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. (...) Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. (...) Tal é a memória épica e a musa da narração (BENJAMIN, 1994a, p.211). A tarefa do narrador encarna a reminiscência, pois nela está embutido o ato de lembrar. O narrador seria a figura rara que, em tempos de pobreza de experiências comunicáveis entre as gerações, compartilha, pela narração, suas histórias. É inerente a qualquer narrador a experiência que passa de pessoa para pessoa. Camponeses e marujos são apontados no ensaio como os dois “tipos arcaicos” da arte de.

(27) 27. narrar. Os primeiros por conhecerem as tradições e histórias de sua terra. Os segundos por terem histórias de viagens a contar. Leskov, narrador-objeto do texto, acumulou experiências em viagens pela Rússia, conheceu seitas rurais, marcou a sua narrativa com uma “dimensão utilitária”, ou seja, com conselhos morais, sábios. As histórias, para serem mais facilmente memorizadas, deveriam renunciar aos traços psicológicos. “Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (id., ib., p.205). A característica moderna do desaparecimento da arte de narrar tem seu cerne no isolamento do sujeito que, com a mecanização do trabalho e a difusão da informação, tem acesso fácil a notícias diárias de forma clara, objetiva, não deixando liberdade para a interpretação do leitor. Há uma outra relação com o espaço e com o tempo, já que “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos” (id., ib., p.202). A imprensa é imediata. E foi ela que também favoreceu a produção de livros de romances que, para Benjamin, não se alimentam da tradição oral como acontece na narrativa. Há um desaparecimento da experiência coletiva. “O narrador retira da experiência o que ele conta (...) E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes. O romancista segrega-se” (id., ib., p.201). No romance, o tempo, tomado em seus matizes psicológicos, é constitutivo. É um tempo fragmentado e descontínuo que corresponde à experiência temporal da era industrial. Esta temporalidade rompe com a memória – “a mais épica de todas as faculdades” – que está vinculada a um tempo artesanal ou orgânico, aquele em que, trabalhando em seus teares, os homens podiam, junto ao fogo, ouvir e contar histórias nas quais reconheciam a sua experiência (MURICY, 1998, p.188).. Nesta distinção da memória na vida moderna, são sedimentados dois termos na escrita de Benjamin: experiência (Erfahrung) e vivência (Erlebnis). A primeira se refere ao comunitário, à memória individual e coletiva, à tradição, enquanto a segunda se relaciona ao mundo privado, ao indivíduo solitário. Assim, a memória, “a mais épica de todas as faculdades”, vai perdendo suas forças para o homem moderno que se recolhe em seu mundo particular, em seu trabalho segmentado. Não mais o seduz conservar o que foi narrado. A segurança da reprodução foi colocada nas mãos das técnicas. O atrofiamento da memória na modernidade também é apresentado por Benjamin no seu ensaio Experiência e pobreza, de 1933. É reforçada a subtração da experiência no período em que o hábito de contar histórias foi substituído pelo silêncio do pós-guerra, que assolou a geração que viveu de 1914 a 1918. Os combatentes calaram. Voltaram pobres em.

(28) 28. experiências comunicáveis. “O frágil e minúsculo corpo humano” foi desmoralizado pelas “explosões destruidoras”, já que “uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” (id., ib., p. 115). Não mais limitada ao privado, a pobreza de experiência passa a ser a barbárie de toda a humanidade. Porém, uma barbárie positiva, para Benjamin. O lado positivo deste novo conceito de barbárie está no fato de impelir o bárbaro “a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, sem olhar nem para direita, nem para esquerda” (id., ib., p. 116). Nesse aspecto, a barbárie aqui não se apresenta do modo negativo, pois se fundamenta no princípio da “tabula rasa”, sedimentador do empirismo, em que se cria a partir do branco. “Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total felicidade a esse século” (id., ib., p. 116). Nessa dialética, não há saudosismo aos vestígios do que foi, mas um nascimento no atual. Com esta visão moderna da barbárie, Benjamin destaca o pintor Paul Klee, o arquiteto Adolf Loos e o romancista Paul Sheerbart. É Sheerbart que se preocupa em acomodar seus personagens “em casas de vidro ajustáveis e móveis, tais como as construídas, no meio tempo por Loos e Le Corbusier. (...) O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade”. (id., ib., p. 117). A cultura de vidro abordada por Sheerbart elimina os rastros, os vestígios, tão protegidos nas moradias burguesas. O vidro era a atitude contrária ao hábito burguês do interior cujos adornos se ajustavam mais ao ambiente do que ao próprio morador. Tudo no salão burguês era rastro, vestígio de seu dono. A cultura de vidro elimina os rastros. Nada nela se fixa. Ele não tem aura. Tudo é frágil, quebradiço. A vida moderna deveria se ajustar à sua própria sobrevivência “em troca da moeda miúda do ‘atual’” (id., ib., p. 119).. ***.

(29) 29. FIGURA 2: Petit intérieur d'un artiste dramatique. Mr R., rue Vavin – Eugène Atget (1909 or 1910). Benjamin, em seu texto sobre o flâneur, personagem que está no limiar tanto da burguesia quanto da grande cidade, que passeava pelas ruas parisienses sem rumo, anônimo, observando tudo, como em um panorama cuja paisagem é a multidão, diz que o morador do intérieur, em seu mundo privado, reprime as reflexões sociais. Ele tenta despir seus objetos do caráter de mercadoria para dar a eles um valor afetivo, em vez do valor de uso, de utilidade, como faz o colecionador. Todos os seus rastros estavam bem guardados no intérieur. Tanto que sua morada era seu mundo em miniatura, e seus objetos eram guardados em caixas, estojos, protetores etc., dando à sua casa um caráter ainda mais particular. Esse “pequeno interior de um artista dramático” apresentado na imagem (Fig.2) faz. parte de um projeto de Atget de construir um ensaio com diversos interiores parisienses de sua época. Móveis, espelhos, quadros, livros e adornos compõem um cenário tipicamente burguês, em que todos os vestígios de seu dono estão ali protegidos. Manter particulares esses vestígios era o motivo pelo qual a cultura de vidro se colocava como uma atitude contrária ao.

(30) 30. hábito burguês. O risco da transparência, da exposição dos rastros do intérieur, fez com que o próprio Atget, nessa fotografia, não afirmasse se esse lugar era ou não a sua morada. Atget, além de fotógrafo, foi ator. Assim, o título da fotografia poderia ser associado a ele. Szarkowski (2003) comenta que o artista teria sido capaz de incluir no seu ensaio sobre os interiores parisienses fotografias de seu próprio apartamento, subtitulado como do Mr. R., artista dramático, vivendo na rua Vavin. Essa incerteza mistura verdade e ficção que, para um ator (que ele ainda era, até 1913), era agradável. E, por outro lado, misturar realidade e invenção poderia ser uma forma de proteger seus próprios vestígios, como assim faziam os burgueses em suas moradas. Mesmo sendo um artista com pouco financiamento, o fotógrafo-ator chegou a se apresentar em algumas universidades populares com peças de Moliére e Victor Hugo. Era um homem de muita leitura, o que leva a crer que sua vida, mesmo não sendo das mais favorecidas, primava pela intelectualidade. E a fotografia foi também um meio de sobrevivência, já que ele comercializava suas imagens para desenhistas e ilustradores. Assim, pelo que transparece a fotografia acima, como coloca Szarkowski (ib.), não se podia ter certeza se Atget morou ou não ali. A quantidade de livros condiz com o interesse do artista pela leitura, mas ainda não é suficiente para afirmar que ali estão seus vestígios. Berenice Abbott, fotógrafa americana fã do trabalho de Atget, por volta de 1925, fez visitas ao artista e, em nenhum momento, foi convidada por ele para conhecer além de seu quarto de trabalho. A intimidade do artista, assim, era preservada, e não seria uma jovem estrangeira que iria ter a permissão de entrar nos quartos da casa. Entretanto, 50 anos depois, Maria Hambourg provou para Abbott que o apartamento da fotografia acima foi, sim, uma das moradas de Atget. Tratava-se do quinto lugar do artista em Paris, desde que ele havia chegado à cidade há 20 anos antes da data da fotografia. Quando fotografou seus quartos, ele tinha estado lá por uma década, e as imagens parecem refletir uma vida estável e decidida, sem evitar conforto material e intelectual (id., ib.). O “pequeno interior do artista dramático”, então, mesmo no jogo entre verdade e ficção, dá indícios não de um homem arruinado, mas de um fotógrafo e leitor de grande curiosidade, que deixa em seus lugares de morada suas pegadas. Não foi à toa que, mesmo fotografando esses lugares, guardando-os em imagens, Atget não deixou claro que eram seus, ocultando sua verdadeira identidade. ***.

(31) 31. Tanto em O narrador como em Experiência e pobreza, temos a questão da experiência moderna ligada ao aparecimento das técnicas industriais, comunicacionais, literárias e arquitetônicas. A liquidação da memória na modernidade é pronunciada nestes e em outros escritos que falam sobre as transformações por quais passavam a cidade e suas multidões (principalmente nos textos dedicados à obra de Baudelaire).. O tema da atenção e da. desatenção, vale ressaltar, foi predominante em estudos da nascente psicologia científica, como também nas ciências humanas no final do século XIX, conforme indica Jonathan Crary (2007). Isso ocorreu devido ao contexto saturado de informações sensoriais advindas do campo social urbano e industrial, no qual a capacidade humana de síntese perceptiva entrou em crise. Foi nessa época que surgiram técnicas óticas com o intuito de estabelecer sínteses, tais como o estereoscópio e, posteriormente, os primeiros cinemas (cicloramas, panoramas, dioramas, dentre outros). O processo de modernização da percepção “incorpora” a visão, ou seja, dá autonomia ao olho para produzir imagens, reagindo a estímulos internos e externos. Na filosofia, a relação perceptiva do sujeito com o campo visual e a memória foi enfaticamente discutida por Henri Bergson (2006) em Matéria e memória, obra contemporânea ao surgimento da fotografia e do cinema. Nela, o filósofo extrai dessas experiências modernas analogias que deram forma ao seu pensamento. Para ele, a matéria e nosso corpo são imagens e a nossa percepção da matéria são essas imagens “relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu corpo” (id., ib., p.17). Destacamos em Bergson que a percepção é uma seleção de imagens (“imagens virtuais”) e ela implica necessariamente em movimento, em mudança. Em outras palavras, perceber é escolher uma ação possível de meu corpo sobre os objetos e esta percepção implica em se modificar a cada instante. Ela “dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo” (id. ib. p.29). Apontaremos adiante como Benjamin relaciona Bergson à obra proustiana. No romance de Marcel Proust, Benjamin vê uma tentativa de capturar as reminiscências e, com elas, a experiência, no tempo de seu radical dilaceramento. Proust, em Em busca do tempo perdido, privilegia o tempo múltiplo, evocado por lembranças que saltam involuntariamente a partir de reminiscências. São elas que fazem da sua obra não uma vida como ela fielmente foi, mas uma “vida lembrada por quem a viveu”. Benjamin (1994a) assim reconhece a densidade da obra proustiana. Nela, não se quer mostrar a linearidade e finitude do tempo. Pelo contrário. O tempo proustiano é o tempo da lembrança, do cruzamento de.

(32) 32. tempos involuntários, imprevistos, oriundos das sinestesias. O exemplo clássico da reminiscência em sua obra é a sensação experimentada pelo autor ao saborear a madeleine (tipo de bolo pequeno), que o leva a lembrar dos anos de sua infância, na cidade de Combray. Estava no sabor, no acaso, as lembranças que evocara. Por se constituir desse modo, a memória encontrada em sua obra é chamada memória involuntária (mémoire involontaire). Diz Benjamin em A imagem de Proust: A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo mais entrecruzada, que se manifesta com clareza na reminiscência (internamente) e no envelhecimento (externamente). Compreender a interação do envelhecimento e da reminiscência significa penetrar no coração do mundo proustiano, o universo dos entrecruzamentos (BENJAMIN, 1994a, p.45).. Ele se deixa levar por acontecimentos lembrados involuntariamente, descobertos. Cabe então reforçar que o tempo proustiano se apresenta ilimitado, aberto, pelos caminhos da lembrança. A textura de entrecruzamentos que ele manifesta é a do fluxo que irrompe da reminiscência (algo que estava ali, passível de ser recordado) e se externa no envelhecimento, no esquecimento da infância. Até sentir o gosto da madeleine, o escritor estaria limitado aos apelos da memória voluntária (mémoire volontaire), aos apelos da atenção, evocados deliberadamente. Uma vez que a memória se lança no abismo da desatenção, abrange perspectivas que se lançam a ela indiretamente. Em termos freudianos, seria o ainda não consciente. Benjamin (ib.) comenta que é uma das habilidades de Proust possibilitar uma reversão na cronologia do tempo. O passado não está morto, não se olha para trás com a sensação de resignação, de conformismo. Quando no instante presente o passado se reflete, a narrativa se rejuvenesce. Há uma espécie de salvamento do que passou, quando o acontecimento é lembrado. Para o filósofo que condena a visão de uma história passada irrecuperável, a obra proustiana se encaixa nessa tarefa de reversão do passado, mesmo que parta de uma experiência vivida pelo próprio Proust. Pois a possibilidade de o passado se atualizar, metamorfosear-se no presente da lembrança, que impele o homem a tatear outros caminhos possíveis para sua história, em tempos modernos, parece realizável apenas artificialmente, nas histórias literárias.. ***.

(33) 33. FIGURA 3: 10 portraits photographiques de Christian Boltanski, 1946-1964 - Christian Boltanski (1972). O artista francês Christian Boltanski, na obra retratada acima, expõe fotografias intituladas como suas, desde a sua infância à juventude. A história narrada por meio dessas fotografias, contudo, embora pareça, não é fiel ao fluxo do tempo, que conduz o pequeno garoto do primeiro quadro ao homem do último quadro. Boltanski fotografa várias crianças em diferentes idades para, depois, montar esse conjunto e mostrá-lo como sendo um registro de sua própria infância. Uma biografia, então, é inventada. Como coloca Entler (2006), o artista sugere que, na insuficiência das imagens testemunharem os fatos reais, há possibilidades de esses testemunhos serem reinventados como ficção. Ainda que não se trate de uma reversão particular do tempo, como fez Proust, Boltanski aponta para a impossibilidade de testemunhar o passado tal como ele aconteceu. As fotografias são testemunhos incompletos, que não dão conta de uma totalidade cronológica. Reside nelas a fraqueza do testemunho. Ao mesmo tempo em que registram a existência de algo, declaram a insuficiência desse registro. Falamos disso para localizar a obra de Christian Boltanski em um novo tipo de realismo: aquele que se liberta da perfeição da mimesis. O artista, então, assume a precariedade de testemunho das imagens para, com elas, inventar narrativas diversas. As crianças fotografadas apenas sugerem uma sequência cronológica de acontecimentos. E, com.

(34) 34. esse teor sugestivo, “os dez retratos fotográficos de Christian Boltanski” trata de uma ficção biográfica do autor. Apropriando-se de vários vestígios de infância, ele encena uma história. Pouco se pode dizer de cada criança retratada. É outra característica das obras de Boltanski trabalhar a questão do anonimato nas imagens. Essa questão, inclusive, influenciou outros artistas contemporâneos (como a francesa Sophie Calle e a brasileira Rosângela Rennó) que, no intuito de utilizarem o documento fotográfico como matéria-prima de suas obras, trabalham com o que a imagem pode sugerir - suas ausências, suas incompletudes. O passado, que na fotografia é ontologicamente tão enfático, passa de uma constatação para uma criação. Esse potencial criativo dos fragmentos imagéticos elaboram uma nova relação com o tempo: tanto o passado quanto o futuro podem ser reinventados. Se assim pensarmos, Boltanski e “seus retratos” colocam para nós a reversibilidade temporal possível dos documentos fotográficos. A reconstrução da realidade por meio das imagens se torna expressão de um tempo não apenas declarado pelo testemunho visual, mas também realizável pela criatividade do artista ao montar sua narrativa. Ainda que não se trate de um entrecruzamento temporal proustiano, a obra de Boltanski convida a ceder a tempos imprevistos.. ***. Outro aspecto que também parte de Proust é a diferenciação entre rememoração e lembrança. Seu objeto de escrita, o romance, limitado à dimensão privada, não conjuga o passado individual e coletivo, que caracteriza a rememoração3. A experiência, no sentido de Benjamin, deve considerar a ligação dessas duas dimensões (individual e coletiva) para que a tradição não morra. Assim, a vivência, voltada ao indivíduo, dá acesso a lembranças que, por sua vez, não interferem na experiência. Contudo, pelo que já expomos, a intenção de Proust de captar as imagens reminiscentes de sua infância fala alto ao leitor moderno cuja faculdade mnemônica está atrofiada.. 3. Há controvérsias sobre a questão da rememoração dentre os estudiosos de Benjamin. Martha D’Angelo (2006) coloca que é inerente à lembrança o “tecido da rememoração”. Muricy (1998) assinala que há distinção entre os termos, pois na rememoração está embutida a ligação com o passado original, a relação do comunitário com o individual, que seria a experiência autêntica, mística. Rochlitz (2003) fala que a rememoração é teológica por transmitir uma força “messiânica”. Pela anamnesis (recordação) é possível, analisando a palavra profana, lembrar-se de sua nomeação original e conduzi-la novamente à ordem do Nome, como ideia, conforme Paulo Rouanet (1984)..

Referências

Documentos relacionados

JFRJ Fls 1775.. vários anos, também exercia a advocacia profissional através de seu escritório ANCELMO ADVOGADOS. Observa o MPF que a investigada Adriana Ancelmo,

Para isso, implantou-se na Estação Ecológica de Santa Bárbara (EEcSB), Águas de Santa Bárbara/SP, uma rede de monitoramento hidrometeorológica para coletar dados climatológicos e

“Os produtores de vinho necessitam de minimizar a entrada de oxigénio durante o enchimento com o objectivo de manter, o mais possível, as características organolépticas do

A Tabela 15 apresenta o valor unitário obtido pelo modelo MGEO (erro espacial) já apresentado e pelos modelos MGEO (erro espacial) obtidos através dos diversos

para computadores, computadores pessoais de mesa (PC Desktops), impressoras multifuncionais, placas de circuito impresso montadas para informática e peças e acessórios

Ainda quanto à exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica, a Constituição assegura aos Estados, Distrito Federal, Municípios e órgãos

Luiz é graduado em Engenharia Elétrica com ênfase em Sistemas de Apoio à Decisão e Engenharia de Produção com ênfase em Elétrica pela PUC/RJ e possui Mestrado

Nesse contexto, este estudo teve como objetivo descrever e analisar as ocorrências dos casos de violência sexual entre os anos de 2007 e 2017, a fim de embasar