• Nenhum resultado encontrado

Do efeito Medusa ao instante movente

No documento A Fotografia como ruína (páginas 75-86)

2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO

2.2. Do efeito Medusa ao instante movente

Decorre do recorte, de perceber a fotografia como fragmento, uma descontinuidade que lhe é característica. Já falamos que a fotografia como ruína enfatiza o motivo da incompletude. Percebemos nos autores clássicos que tratam especificamente do tema, o direcionamento dado à fotografia como recorte, pedaço, vestígio. O cuidado que devemos ter é que, muitas vezes, o reforço nessa caracterização da imagem fotográfica também a minimiza, como apenas um produto da realidade, de prova da existência de algo, o que deixa a desejar quanto à sua possibilidade construtiva de realidades.

Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir. (...) Fotos brincam com a escala do mundo: são recortadas, retocadas, expostas, projetadas, colocadas em álbum, emolduradas, pregadas nas paredes etc. (SONTAG, 2004, p.15)

Susan Sontag denomina as fotos de “miniaturas de realidade” e, ao mesmo tempo, enfatiza a questão do recorte como sendo a brincadeira da foto: jogar com a “escala do

mundo”. Por um lado, a impregnação do real na fotografia. Por outro, a sua possibilidade de brincar com o mundo em cuts. É nesse segundo aspecto que nos aprofundaremos. Lembrando que nossa abordagem benjaminiana da fotografia está imbricada à visão do autor sobre a história, é imprescindível que atentemos ao que faz da fotografia um objeto que favorece a descontinuidade. Aqui, faremos uma abordagem que ainda se relaciona ao motivo da incompletude, mas que não se encerra na sua particularidade indicial. Pois se trata de pensar a experiência fenomênica da fotografia como fundamento à teoria de Benjamin do acontecimento histórico. E, para isso, precisamos ir do corte à instabilidade das imagens.

***

FIGURA 11: Foueur d’orgue - Eugène Atget (1898-1899)

Trazemos aqui essa imagem de Eugène Atget parasublinhar o que nela há de vestígio instável do tempo. O fotógrafo, nessa época, ainda se dedicava a realizar registros para o

álbum “Paris pitoresca, pequenos ofícios” (Paris pittoresque, petits métiers). Inclusive, produzir imagens das ruas tipológicas de Paris tornou-se um hábito entre artistas. E Atget, já que fornecia imagens para a inspiração deles, não podia ausentar-se dessa tarefa. Personagens diversos foram capturados por sua câmera de forma a compor um rico álbum. Dentre eles, músicos de rua, como o da imagem anterior (Fig. 11).

A fotografia foi realizada em uma dessas ruas da cidade em que transitavam os pequenos comerciantes. Contudo, o que se retratou foi uma jovem cantora e seu parceiro, responsável pelo instrumento musical, o barrel organ15, transportado no carrinho (SZARKOWSKI, 2003). Esse clique, além de registrar uma cena “pitoresca”, dá lugar a certa vitalidade da imagem, uma vez que a personagem foi congelada no ápice de uma ação. A pequena cantora, de braços e sorriso abertos, olhando para o alto, destaca-se no quadro. Seu semblante se diferencia nitidamente da seriedade do seu parceiro, que lança um olhar intimidador e direto para a câmera.

Os personagens desse fragmento fotográfico, além de se posicionarem de forma distinta no enquadramento, rompem com a frontalidade dos rostos tão exercitada por Atget nos seus retratos. Ao recorrermos à ideia de corte fotográfico, essa imagem deixa vestígios de que foi paralisada no tempo. É como se Atget tivesse flagrado esse momento no seu desenrolar, sem que tenha havido uma preparação do instante, mas um flagra dele. A ação da cantora, como congelada numa fração de segundo de uma duração, é uma fatia do tempo.

Outro fator que colabora para o destaque desse instantâneo é a expressão feliz da pequena cantora. Segundo Szarkowski (ib.), contrariando a falta de “riso” na obra de Atget, a jovem e seu semblante radiante nos levam a crer que, mesmo não sendo uma famosa cantora, é uma profissional do entretenimento e, tal como seu sorriso radiante, não evidencia uma inautenticidade ordinária. Assim, esse instantâneo fala de um tempo descontinuado, tanto pela captura de um instante do desenrolar da ação, quanto pela ruptura que esse fragmento consiste nos retratos de Atget.

É desse instante paralisado a uma instabilidade presente na imagem a trajetória que enfatizamos nessa fotografia. Um instante – tomado no seu acontecimento – deixa rastros do seu antes e seu depois, ainda que se desenvolvam imaginativamente. É um instante que se move na sua instabilidade, no jogo entre o congelamento e o movimento. Por ter sido a

15

O barrel organ se trata de um grande instrumento que toca música mediante o acionamento de uma manivela. Costumava ser utilizado para entreter as pessoas na rua.

cristalização temporal de um acontecimento, esse instantâneo ainda se move aos olhos do espectador. A pequena cantora salta em um corte na continuidade.

***

A ideia de corte é particularmente descrita por Dubois. Temporalmente e espacialmente, a fotografia é uma tomada, uma fatia, cortada ao vivo, subtraída de uma continuidade. O gesto do corte, para o autor, é um golpe, uma jogada. Nesse jogo, a “fotografia é uma partida sempre em andamento, onde cada um dos parceiros (o fotógrafo, o observador, o referente) vem arriscar-se tentando fazer a jogada certa” (DUBOIS, 2009, p.162). São relatadas três reflexões sobre a descontinuidade na temporalidade fotográfica. Com elas, faremos paralelos com o modelo teórico do acontecimento histórico de Benjamin.

A primeira se trata da “detenção da memória” provocada pela imagem fotográfica, sobre a qual o autor exemplifica com uma foto sua que foi tirada enquanto corria, quando criança. Ele diz que parou de correr no momento do clique de seu pai, ficando congelado, parado diante da câmera: a foto (me) detém. “Eu parei, a foto imobilizou-me de uma vez por todas” (id. ib. p.163). Pego no golpe,

torno-me como suspenso, enregelado, fixado numa imagem que hoje me parece, quando a olho, não como uma lembrança de corrida (a-corrida-que- eu-poderia-ter-vencido), mas como uma lembrança de parada, de congelamento, de escapada do mundo que continua sem mim (id. ib. p.163- 164).

Essa experiência, em que o autor se percebe mais em uma “parada” que em uma “corrida”, mostra como o momento fotográfico irrompe de uma continuidade, salta como um tigre para uma temporalidade que não mais se inscreve no fluxo, mas se destaca dele – para fora dele. O corte, como uma detenção, uma parada, no continuum vem expressar muito o lampejo benjaminiano enquanto mônada. Relembrando Benjamin: “quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada” (BENJAMIN, 1994a, p.231).

Não é por acaso que as articulações que Benjamin faz sobre a ideia do “agora” como origem diz respeito à interrupção de um fluxo, a um salto. A cristalização desse salto, além de histórica, é fotográfica, levando em conta o “choque” com que o movimento do pensamento é detido. E só por essa paralisação é que o “anjo da história” pode ter uma visão catastrófica dos

acontecimentos. A fotografia que consideramos, aqui, como uma forma específica de temporalidade encontra expressão nessa “dialética na imobilidade” formulada por Benjamin. Contudo, é bom relembrar que, como expomos no capítulo anterior, o autor admite não só o congelamento, mas uma mobilidade nas suas imagens.

Golpear, cortar. De uma só vez, o instante que o fotógrafo captura passa do movimento à petrificação. Fotografar implica nessa passagem, nessa mudança de estado. A experiência fotográfica da detenção vivenciada por Dubois nos esclarece o exato momento de deslocamento provocado pela interrupção temporal, a qual ele mesmo descreve como “experiência de corte radical da continuidade, corte que fundamenta o próprio ato fotográfico” (DUBOIS, 2009, p.164). Fazendo um diálogo com o “estilhaço” benjaminiano, a imagem fotográfica como um corte no tempo da história é catastrófica, já que golpeia a linearidade dos acontecimentos. Nesse momento-estilhaço, em que, pelo clique, sou pego, desperto pelo relampejar.

As imagens do pensamento de Benjamin, claro, vão além dessas relações, já que se dirigem a uma percepção instantânea e não, estritamente, à fotografia como natureza de imagem. Entretanto, cabe ressaltar os momentos em que a imagem fotográfica se torna a maneira mais próxima da sua construção histórico-filosófica. Para isso, ressaltamos a segunda reflexão de Dubois sobre o corte: a brincadeira de “estátua”. Aludindo à infância, ele descreve o jogo em que, numa olhada brusca para trás, aquele que conta deve flagrar o participante que se mover. “Nesse jogo, o movimento, tal como aparece aos olhos do que conta, não passa de uma série de posições fixas, recortadas, fora do fio da duração” (id., ib., p.165). O movimento é recortado em imobilizações, por “brancos”, já que é na ausência do olhar que ele se perfaz.

Da petrificação do movimento, como um perigo, pensamos na própria Medusa, aquela que “não é possível olhar sem morrer, sem ser petrificado em estátua” (id., ib., p.148). Aqui o instante é uma ameaça, já que ser capturado implica em uma passagem: do mundo dos vivos para o dos mortos; de um lado da fatia ao outro. Pelo ato fotográfico se passa “de um tempo evolutivo a um tempo petrificado, do instante à perpetuação, do movimento à imobilidade, do mundo dos vivos ao reino dos mortos, da luz às trevas, da carne à pedra” (DUBOIS, p.168, 2009). Essa passagem, o autor enfatiza que, certamente, é feita com medo, angústia, ao olhar de Medusa. Afinal, ela demanda encarar a morte. Nada mais benjaminiano do que essa proposta. Na visão relampejante da história, ao mesmo tempo em que se destaca uma ruptura

na linearidade temporal, ruínas se amontoam aos nossos pés. Há uma passagem da totalidade aos fragmentos.

Sobre esse momento de perigo, mineralizado pelo olhar de Medusa do historiador, apreendemos uma importante ligação entre a fotografia e a história em Benjamin: o signo do

clic. Mauricio Lissovsky (1998), mencionado no capítulo anterior, desenvolve, com especial

atenção, essa relação:

O historiador e o fotógrafo são ambos regidos pelo signo do tigre – o totem interruptor, o animal sagrado do clic. No salto do tigre sobre a presa, o acontecimento é imobilizado, ‘cristaliza-se como mônada’: ‘uma configuração saturada de tensões (...) Benjamin persegue no ‘objeto histórico’ o ‘sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos’. Também o disparo do fotógrafo pertence à ordem das interrupções: ‘A máquina comunicava ao instante, por assim dizer, um choc póstumo’. (LISSOVSKY, 1998, p. 23).

Nesse trecho, temos a clara associação da imagem fotográfica à imagem relampejante, do salto de tigre. Lissovsky evidencia que o objeto histórico que Benjamin persegue é construído aos saltos, ao modo imobilizante, assim como um corte fotográfico. O salto, vale lembrar, é perigoso, chocante. Não por acaso historiador e fotógrafo têm uma relação tensa com seus objetos. Ao congelá-los, arrancam do vir-a-ser dos acontecimentos. São fragmentos que, distanciados de uma ordem cronológica, aguardam uma decifração diversa. Uma outra temporalidade é instaurada a partir da interrupção e exige uma interpretação atenta. Sendo a fotografia o modelo de imagem dialética benjaminiana, deixemos claro que nela não temos ligação simplesmente com a morte, mas também com a salvação; não só com o passado, mas também com o futuro. Voltaremos a esse assunto ainda nesse capítulo.

Sobre a descontinuidade característica que o ato fotográfico faz eclodir, vale lembrar o que Boris Kossoy (1999) destaca, em uma perspectiva similar a de Dubois, como a relação fragmentação/congelamento: a fotografia é um recorte espacial e uma interrupção temporal. “Na realidade a técnica permite ao fotógrafo articular a relação fragmentação/congelamento cultural e expressivamente – em seu processo de criação - no ato de tomada da foto” (KOSSOY, 1999, p.30). Ora, já que falamos de recorte do tempo e do espaço, não podemos tomar o ato fotográfico como captura da verdade absoluta. Ele é um constructo, uma criação, que pressupõe escolhas do próprio fotógrafo, não explícitas no documento. Sugerindo não mais uma realidade restrita da fotografia, Kossoy a aponta enquanto binômio

à imagem seu caráter ficcional, de construção de realidades. “O índice iconográfico comprova a ocorrência/aparência do referente que o fotógrafo pretendeu perpetuar” (id., ib., p.34).

Para o autor, a fotografia não se limita a apenas uma realidade. Ela cruza realidades. Sem corresponder, essencialmente, à verdade histórica, mas sim a um registro da aparência, a realidade fotográfica “(...) reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes ‘leituras’ que cada receptor dela faz num dado momento” (id., ib., p.38). Essas leituras, por sua vez, devem levar em conta tanto as exterioridades quanto as ocultações do documento/representação. Cabe ao exercício do leitor não se deixar iludir pela parcialidade que é inerente à fotografia enquanto verdade histórica.

Kossoy e sua relação entre fotografia e história, ainda que não se proponha a ver a imagem fotográfica como modelo da “imagem dialética”, admite que na imagem fotográfica há um jogo entre verdades explícitas e segredos implícitos ao documento. Daí designar a fotografia como documental, porém imaginária. Desse duplo da imagem, vale dizer: se é inerente à fotografia suas exterioridades e ocultações, não podemos dela extrair a realidade tal como ela é. Dialogando com Benjamin, mais uma vez, a “imagem do passado”, de maneira alguma, corresponde de forma empática à história dos vencedores ou, dito de outro modo, ao passado homogêneo. É no instante de reconhecimento da “imagem do passado” que o historiador vê aquilo que antes não estava explícito - uma história da barbárie.

Susan Sontag (2004, p.92), no entanto, ao comentar o pensamento de Benjamin e sua relação com a atividade do fotógrafo, não é muito otimista. Ela diz que o apelo benjaminiano quanto ao passado falar com voz própria, ao ser generalizado na fotografia, passa a ser a “descrição do passado”, pois o preserva. A nova realidade paralela criada pela fotografia “(...) que torna o passado algo imediato, ao mesmo tempo em que sublinha sua ineficácia cômica ou trágica, reveste a especificidade do passado com uma ironia ilimitada, transforma o presente no passado e o passado em condição pretérita”.

Segundo a autora, a fotografia favorece uma relação instantânea com o passado e isso implica, inevitavelmente, na sua ligação direta com a realidade. Algo como “se isso está na foto é porque aconteceu assim”. Há uma crença maior naquilo que se vê do que naquilo que se oculta. Neste aspecto, o caráter indicial (de presença do que de fato existiu, rastro do referente) da fotografia acaba por fazer com que o mundo deixe de estar fora das fotos para estar dentro delas. “A vida não são detalhes significativos, instantes reveladores, fixos para sempre. As fotos sim” (id., ib., p.96).

O que Sontag afirma sobre a instantaneidade do passado por meio da fotografia atrela a imagem ao espelho do real. E isso corrobora para o desenrolar de uma narrativa imagética irreversível, já que são instantes “fixos para sempre” e, por assim dizer, irrevogáveis. É nesse aspecto que Benjamin faz questão de diferir suas “imagens”. A imagem do passado que ocorre ao historiador se dá em um instante específico – o “agora” da cognoscibilidade -, como no momento de um clic. Contudo, esse clic se dá por congelamento apenas por uma fração de segundo, uma centelha. Ele paralisa para reconhecer tanto as ruínas como suas possibilidades de redenção. É essa fixação do instante que impele o passado ao futuro.

Para termos essa compreensão, porém, além de exigir um mergulho na natureza dialética do pensamento benjaminiano, que nos coube fazer no capítulo anterior, também foi preciso recorrer, em contrapartida, nesse capítulo, à própria natureza fotográfica que os teóricos da fotografia já citados nos descrevem – principalmente, Dubois. Na sua terceira reflexão sobre o corte fotográfico, a imobilidade é mais uma vez anunciada como própria à fotografia. No que ele chama de “a flecha partida ou o pensamento descontínuo”, afirma que o movimento da flecha só existe em ilusão, já que é pelas diferentes posições que o objeto ocupa, a cada instante, no espaço, que somamos momentos de imobilidade em uma ideia de movimento. Assim, “(...) em cada fragmento do tempo, por mais infinitesimal e até teórico que seja, a flecha está fixa. Jamais se pode dizer estritamente aqui-agora que está se

mexendo” (DUBOIS, 2009, p.165-166).

O instante fotográfico, para que lhe seja definida uma fixação ou imobilidade característica, é recorrentemente comparado ou mesmo acompanhado da ideia de movimento. Nas três reflexões de Dubois sobre o corte (“detenção da memória”, “estátua” e “flecha partida ou pensamento descontínuo”), a circuncisão do instante está imbricada a um tipo de congelamento ou parada do acontecimento. O próprio autor, inclusive, afirma que nessas suas reflexões sobre o corte, a noção de instante não é definida de maneira simples.

Toda a relação do ato fotográfico com a temporalidade vai começar a atuar aqui em sua extrema complexidade, e veremos que a noção de instante (único, pontual etc.), tantas vezes dada como consubstancial à própria idéia que se tem do ato fotográfico, é de fato uma noção menos evidente e menos simples do que parece, em particular porque não exclui nem uma certa relação com a duração, nem a existência de uma grande mobilidade interior. O instante fotográfico é um instante eminentemente paradoxal (id., ib., p.166).

Se ressaltarmos apenas as palavras assinaladas pelo autor - “instante”, “duração”, “mobilidade” e “paradoxal” -, percebemos que a complexidade já se estabelece aí. Podemos

falar em um instante movente? Em uma duração instantânea? O autor identifica o paradoxo e esboça sua problematização, ainda que se mantenha mais na defesa de uma fixidez própria do instantâneo fotográfico do que na sua “mobilidade interior”. Fala que o ato fotográfico é atravessado por intensos “vaivéns” e até coloca que o instantâneo, mesmo sendo um ponto que instaura uma temporalidade, não deixa de superar essa demarcação, passando desse ponto a uma “nova inscrição na duração”. Essa nova inscrição se dá pela “perpetuação (no outro mundo) do que só aconteceu uma vez” (id., ib., p. 174).

Dubois, ainda na sua argumentação da mobilidade do instante, parece “fixista”, uma vez que admitindo movimento no corte fotográfico, prioriza a “perpetuação”, mesmo que em outro estado, desse instante. Já falamos nesse capítulo sobre essa passagem de um mundo a outro por meio da foto – do mundo dos vivos ao dos mortos. Essa passagem, entretanto, tem como fim perpetuar o instante, dar a ele permanência. Daí dizer que, no tempo, o autor não consegue fundamentar o movimento. Sua tentativa de dinamizar o instante fotográfico, portanto, vai se juntar também ao espaço: “nesse simples ponto fixo abre-se e desdobra-se todo um espaço que autoriza e até suscita o movimento interno, uma corrida que não cessa de fazer o ‘sujeito’ fotográfico correr” (id., ib., p.174). Ou seja, é pelo princípio da distância espaço-temporal (que já comentamos no tópico anterior) que o sujeito vai se mover dentro, entre e pelas imagens.

Querendo circunscrever o instante, Dubois ainda não esclarece totalmente de que modo ele pode tornar-se movente. Cita trabalhos do fotógrafo Denis Roche16 para exemplificar as “idas e voltas” da imagem, mas, por outro lado, o instante parece perder-se no próprio processo de encontrá-lo. Inclusive, tentando discernir bem a descontinuidade peculiar à fotografia, faz um paralelo com a narratividade do cinema, no que diz respeito à relação campo/fora-de-campo.

O fora-de-campo cinematográfico, porque se inscreve no movimento e é capturado na duração – afinal é tudo o que estará no princípio da montagem – é um espaço sempre ativo diegeticamente, investido pelo jogo da narrativa: um personagem que se vê sair do campo à direita é seguido imaginariamente em seu espaço off, pode nele realizar uma ação e voltar ulteriormente para o campo visual. (...) Ao contrário, o fora-de-campo fotográfico, longe de operar por continuidade e narratividade, sempre se dá na parada, num corte temporal estrito, qualquer continuidade apartada, numa convulsão instantânea. (...) em foto, o fora-de-campo é literal, no cinema é metafórico (id., ib., p.180-181).

16

Denis Roche é o fotógrafo que insistiu na repetição do ato de tomada. Para ele, a fotografia se distingue de outras artes por reclamar essa repetição imediata do instantâneo.

A literalidade do corpo é exigida na fotografia. Aquilo que, pela narratividade do cinema, permite o desenrolar da história mesmo na ausência visual do ator, na fotografia só ocorre pela presença. Enquanto no cinema se destaca a continuidade, na fotografia é a descontinuidade um de seus principais aspectos. Sobre a representação do tempo no suporte, o cinema corre em sua própria narrativa. Já na fotografia, nos casos extremos de sua produção

No documento A Fotografia como ruína (páginas 75-86)

Documentos relacionados