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Fotografar é revelar

No documento A Fotografia como ruína (páginas 51-65)

1. A CONTRIBUIÇÃO DE BENJAMIN – IMAGEM E TEMPO

1.4. Fotografar é revelar

Já estava ali, submersa há tempos antes de seu advento, o fenômeno da “escrita com luz”. Em 1839, o daguerreótipo é inventado justamente após o incêndio do panorama de Daguerre. Benjamin (2007, p.42) menciona que essa invenção foi um desconsolo para muitos pintores. “A fotografia provoca a ruína da grande corporação de pintores miniaturistas”. Há, neste momento, todo um debate entre os artistas sobre o valor artístico da fotografia. Além das razões econômicas que provocam a ruína dos pintores, os primórdios da fotografia demonstram superioridade artística em relação aos retratos em miniatura. Constatação esta decorrente de uma razão técnica - o fotografado precisava manter-se concentrado por um longo tempo de exposição – e de uma razão social, que era o pertencimento dos primeiros fotógrafos à vanguarda, de onde vinha grande parte de seus clientes. Contudo, “a tentativa de provocar um confronto sistemático entre arte e fotografia era inicialmente fadada ao fracasso.

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Esse confronto só poderia ser um momento do confronto entre arte e técnica, realizado pela história” (id., ib., p.717).

Benjamin, em sua Pequena história da fotografia, ao comentar o frágil conceito antitécnico e fetichista de arte que a nova técnica instaurou, enfatiza o vazio que se deu no longo debate dos teóricos da fotografia que se ocuparam em abominá-la sem chegarem a nenhum lugar. Julgaram-na sob o mesmo pilar que ela havia destruído. O fato de a fotografia estar ligada, diretamente, à representação do real por um meio mecânico foi um dos motivos que a fizeram tomar muito do espaço destinado à pintura. Os pintores que tomavam a realidade como paradigma para suas obras, logo perceberam que, por mais detalhistas que fossem, não iriam ser tão verossímeis quanto a reprodução que uma imagem fotográfica prontamente alcançaria.

Os primeiros clichês, placas expostas na camera obscura, eram como joias, peças únicas. Por volta de 1840, os álbuns de família marcavam o glamour que os retratos de homens influentes faziam questão de possuir. Hill, famoso retratista da época que utilizava a fotografia como auxílio à pintura, teve seu nome transmitido à história pelo uso das fotografias e não pelo seu mérito de pintor. A pintura já conhecia esses retratos. Então, para Benjamin (1994a), interessa mais pensar a introdução da nova técnica a partir de imagens de pessoas anônimas, que a história do primeiro decênio pré-industrial da fotografia ainda não havia mostrado. Imagens essas que não se dirigem ao gênio do autor. Nelas, existe uma magia, “algo de estranho e novo”.

A “magia” estranha que os rostos anônimos passaram a revelar está na possibilidade de neles ser desvendado o “inconsciente ótico” do que é alvo da câmera. Isso quer dizer que, além de um planejamento acurado do fotógrafo ao produzir sua imagem, resta uma “pequena centelha do acaso” em um “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos” (id., ib., p.94). É neste lugar descoberto “olhando para trás” que o observador buscará fixar-se. É o despertar de imagens adormecidas, ocultas no acaso que chamuscou a imagem apreendida pelo fotógrafo - sem que ele tenha planejado. Esses retratos, na visão profética de Benjamin, atestam que “a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós” (id, ib. p.94).

FIGURA 7: Les suisses morts - Christian Boltanski (1990)

Em Les suisses morts, temos vários rostos participando da instalação. Idosos, jovens, criança, lado a lado, compõem um mural fisionômico. As expressões faciais se diversificam. E inevitavelmente, pelo título da obra, associamos a morte a todos esses rostos. “Os suíços mortos” dirigem ao espectador, ainda que com expressões descontraídas e singulares, uma indagação: qual foi a nossa história? Qual nossa individualidade? O anonimato das fotografias nos questiona acerca de suas particularidades.

“Os suíços mortos” são pessoas humanas, cotidianamente esquecidas, e que, pelo trabalho de Christian Boltanski, vêm novamente à tona, em uma outra construção. Percebemos, inclusive, como ele trabalha a disposição das imagens para compor sua obra - compilando as expressões e iluminando-as, ocultando e revelando-as. Faces fadadas ao esquecimento, entretanto, como obra, inverte-se sua banalidade em significância, em imaginação.

Esses rostos não se tratam das primeiras fotografias, como coloca Benjamin quando expõe sobre o caráter mágico das primeiras pessoas fotografadas. Boltanski coletou esses semblantes de obituários de um jornal suíço e, eliminando dessas imagens qualquer tipo de identificação, os sentidos para elas são reelaborados. O deslocamento de um contexto midiático para um contexto artístico retira desses “mortos” informações sobre a vida de cada um. Isso faz com que suas vidas sejam imaginadas por quem os vê. É recorrente em Boltanski trabalhar com os temas da morte e do anonimato de forma a devolver um despertar às imagens. Nisso, identificamos um empenho benjaminiano. Do acaso que chamuscou as fotografias em um dado momento passado, vem à tona um futuro não previsto.

E por que mortos suíços? Qual seria a diferença deles? Boltanski responde que: “porque os suíços não têm razão de morrer, em todo caso não por razões históricas” 9. O artista, assim, aponta para uma morte que independe de país, raça, religião. Morte que independe de guerra ou identidade. Por razões históricas ou não, muitas pessoas comuns morrem e são esquecidas. A obra também acena para o grande número de judeus mortos, durante a segunda guerra, dizimados por “razões históricas”. Inclusive, Boltanski é de família judaica e dedica vários de seus trabalhos à memória do Holocausto.

O artista faz questão de mexer na amnésia das imagens e, consequentemente, naquela de quem vê. Os indivíduos esquecidos, sem identidade, transformam-se em matéria incorpórea, pois não mais são os do jornal suíço nem os possíveis judeus dizimados. Eles são a própria ausência de um tempo que os identifica. Se resta alguma individualidade para os rostos apresentados, ela não está no lugar de onde vieram, no contexto em que viveram, nem no veículo midiático em que foram publicadas suas imagens. O que Boltanski sublinha com esse trabalho é a humanidade que se desprende das barreiras cronológicas e historicistas.

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A natureza que fala à câmera – o consciente - é diferente da que fala ao olhar observador. Essa última “(...) é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente” (BENJAMIN, 1994a, p.94). Ou seja, a fotografia dá a ver um mundo pelo congelamento dele na sua “exata

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Tradução livre de “parce que les Suisses n'ont pas de raison de mourir, en tous cas pas de raisons historiques”. Disponível em: <http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-boltanski/ENS-boltanski.htm>.

fração de segundo”. Percebemos na imagem congelada aquilo que não perceberíamos sem ela (graças às suas possibilidades de ampliação, controle de tempo). Esse é seu “inconsciente ótico”.

Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grande e formuláveis, mostram que a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica (id., ib., p.94-95).

Cabe aqui resgatar o porquê dessa variável histórica. Como expomos anteriormente, o historiador dá fisionomia às épocas e, para isso, atenta para os resíduos ignorados pelo curso contínuo do tempo. Ao articular uma nova construção histórica, ele dá relevo, significado, a fenômenos que o passado da historiografia tradicional oculta. Nesse sentido, Benjamin percebe a força mágica ou “messiânica” que a fotografia pode trazer à tona. Essa força inconsciente, onírica, habita o minúsculo que a técnica mais exata apreende em “instantes únicos”. Não foi por acaso que sua atenção se voltou para os rostos anônimos. Eles eram ruínas. Ruínas da história, do tempo instantâneo moderno e progressivo que a fotografia passou a representar com o advento das técnicas de reprodução. O que Benjamin percebe e quer reforçar são os acenos, as centelhas de um futuro que relampeja nas imagens, a presença do antigo no novo.

“As primeiras pessoas reproduzidas entravam nas fotos sem que nada se soubesse sobre sua vida passada, sem nenhum texto escrito que as identificasse” (id., ib., p.95). Os jornais e revistas ainda não faziam dessas fotografias seu instrumento. Esses rostos não tinham contato com a vivência dos choques urbanos, não carregavam consigo informações dadas da atualidade, estabelecidas por quem se interessa pela venda de notícia. O olhar repousava no silêncio que rodeava o rosto humano. Silêncio este, possível pelo distanciamento, pela falta de vínculo da fotografia com os eventos e burburinhos da atualidade da época. Nesses primeiros retratos, a fraca sensibilidade para fixar a imagem exigia um tempo longo de exposição e imobilidade do modelo. Nelas, a expressão humana tinha tempo para crescer dentro do momento da fotografia.

Como crítico, na busca das melhores obras que falem de forma autônoma sobre o sido e o não-sido da história, Benjamin via nos rostos anônimos captados por Hill uma suspensão do tempo. Neles, resvalava um tempo persistente, durável, que impregnava a imagem em que o modelo vivia dentro do instante, devido à longa duração de sua pose. Esse tempo persistente

e, por assim dizer, mais durável das fotografias, evocava no observador uma impressão também mais duradoura, diferente do instantâneo10. Estaria nessa impressão mais durável, também, a fisionomia da época.

Tudo nessas primeiras imagens era organizado para durar; não só os grupos incomparáveis formados quando as pessoas se reuniam, e cujo desaparecimento talvez seja um dos sintomas mais precisos do que ocorreu na sociedade na segunda metade do século, mas as próprias dobras de um vestuário, nessas imagens, duram mais tempo (id., ib., p.96).

O que se mostra nessas imagens duradouras está também no que nelas se prenuncia da época. Benjamin aponta, nessa passagem, o desaparecimento do senso comunitário, coletivo, ou seja, a morte da experiência na segunda metade do século XIX que se anunciava. É como se essas imagens nos comunicassem um apelo, para que se olhe para elas à procura do “rosto” do tempo. Estaria abrigada nos rostos fotografados a faísca do acaso, escondida no pequeno detalhe, que persiste, mesmo na dobra de um vestuário. Há neles algo de definitivo, não datado, feito para ficar.

O invisível, escondido no continuum entre o claro e o escuro, ou entre a luz e a sombra, era, vale ressaltar, fruto da convergência entre objeto e técnica, que foi tão completa nesses primórdios quanto sua dissociação, no momento de decadência. O “equivalente técnico” das primeiras fotografias as distinguia claramente dos instantâneos, pelo já citado longo tempo de exposição, assim como a técnica do mezzo tinto, “uma florescência única” advinda da pintura. “O mesmo pode se dizer do condicionamento técnico do fenômeno aurático” (id., ib., p.99). Fotógrafos, a partir de 1880, esforçaram-se em “criar uma ilusão de aura” e, para isso, utilizaram os mais diversos recursos, dentre os quais se destacou o retoque por off-set. Caiu na moda um “tom crepuscular”, artificial, que “apesar dessa penumbra, distinguia-se com clareza crescente uma pose cuja rigidez traía a impotência daquela geração em face do progresso técnico” (id., ib., p.99).

No retrato de Kafka criança, Benjamin reforça essa ligação dos fotógrafos ao “simulacro”. Os álbuns de família burgueses da época eram produzidos por ateliês que, com cenários de palmeiras, colunas de mármore, tapeçarias, submetiam os modelos a uma torturante representação diante da câmera. Vestido com uma roupa sufocante, adornada com rendas, segurando um grande chapéu do tipo espanhol na mão esquerda, sob um fundo com palmeiras tropicais imóveis, Kafka quase desaparece na fotografia se não fosse seu olhar triste

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Benjamin opõe a durabilidade das primeiras fotografias ao instantâneo, que se trata das fotografias modernas. O instantâneo era tirado em uma “fração de segundo”.

que domina a cena. “Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido” (id., ib., p.98).

Retirar a máscara, desnudar a verdadeira face impotente dessa época. Na fotografia, poucos o fizeram como Atget11, segundo Benjamin. Fotógrafo que vendia suas fotos por alguns cêntimos, e anônimo até a descoberta quase póstuma de seu material por Berenice Abbot. Viveu em Paris na sombra de sua modéstia por volta de 1900. Suas fotos, contudo, alcançaram o que ele não imaginara. Sendo precursoras da fotografia surrealista, elas foram mestres em sugar a aura da realidade. Buscaram “desinfetar a atmosfera sufocante” dos retratos convencionais burgueses, na época do seu declínio. Atget purifica essa atmosfera ao começar a livrar o objeto de sua aura. Mérito que a escola moderna surrealista conseguiu movimentar.

Quando o surrealismo se anunciou nas fotografias de Atget, segundo Benjamin, a aura da realidade foi suprimida. As imagens surrealistas buscaram registrar coisas perdidas, transviadas, obsoletas. A fotografia, como mero exercício do retrato convencional, dava lugar a outro olhar, que divergiu da visão romântica e majestosa. É como se vê nas imagens de Atget, que descobre esses motivos primeiramente. Nelas, a cidade se encontra esvaziada. Ruas, pátios, cafés e parques estão na atmosfera do silêncio, da solidão. Atget, como um trapeiro que recolhe os resíduos de Paris na sua “arca”, “(...) não negligenciou uma grande fila de formas de sapateiro, nem os pátios de Paris, onde da manhã à noite se enfileiram carrinhos de mão, nem as mesas com os pratos sujos ainda não retirados, como existem aos milhares, na mesma hora (...)” (id., ib., p. 102). Contudo, a maioria das fotos é vazia.

A fotografia surrealista extingue aquela representação burguesa – tão bem paga e cultuada no gênero do retrato representativo -, preparando “uma saudável alienação do homem com relação ao seu mundo ambiente” e libertando “para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores (id., ib., p. 102)”. Nas obras dos surrealistas, é exercitado o poder transformador da fotografia. Insere-se o homem no mundo à sua ausência. A energia revolucionária passa a ser percebida nas coisas banais e obsoletas do cotidiano da época, nas primeiras fábricas e construções de ferro, nos objetos fadados ao desuso, nas ruínas modernas.

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Só por volta de 1930, Camille Recht publica um volume com uma seleção das mais de quatro mil fotografias de Atget recolhidas por Berenice Abbot.

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FIGURA 8: Untitled [ragpicker] – Eugène Atget (1899 – 1900)

Como um trapeiro em busca de imagens com as quais pudesse ganhar alguns trocados, Atget se destacou por utilizar a fotografia como possibilidade de sobrevivência. Em troca de alguns trocados, vendia suas imagens a artistas. Flagrava cenas mundanas de Paris, dentre as quais poucas são as que aparecem pessoas. Aquelas que aparecem são personagens comuns, como o músico de rua, a prostituta e esse da foto, o trapeiro. Coletando os restos, os destroços da burguesia francesa, tanto o trapeiro, quanto o fotógrafo são personagens alegóricos nessa tarefa. Veem nas ruínas caminhos.

Quando fotografou pessoas, o interesse de Atget se direcionava aos anônimos, aos personagens marginais, que se dedicavam a pequenos ofícios – como os comércios de rua, por exemplo. Assim, por mais que as ruas e parques parisienses vazios tenham marcado sua produção, vale lembrar que o trapeiro da fotografia muito personifica seu modo de registrar a cidade. Diferenciando-se do gênero burguês do retrato, as pessoas fotografadas não estão em

cenários artificiais, especialmente produzidos para o momento da fotografia. Ainda que haja certa preparação ou pose do retratado, Atget o fotografa em plena rua, sem grandes recursos de produção.

Até 1900, o fotógrafo se interessou por registrar pequenos ofícios (petits-métiers). Cada pequeno ofício – ou cada pequeno trabalhador - era registrado de forma a mostrar a roupa, mercadorias, equipamentos ou, mesmo, uma postura de servilismo (SZARKOWSKI, 2003). O trabalhador da fotografia (Fig. 8) é mostrado dessa forma. Puxando seu carro de mão repleto de sacos, vestido de forma humilde e com uma inclinação servil, ele aparece parado para o clique do fotógrafo. Mesmo que esteja posando para a câmera, há no semblante do personagem certa seriedade no olhar, de entrega não tão amigável.

Tipos como o trapeiro retratam bem os habitantes de uma Paris além do salão burguês. Os retratistas que se dedicavam a servir a burguesia não tinham interesse nesse gênero de habitante. Aliás, se as famílias abastadas eram fotografadas por poderem pagar um retratista, este não se envolveria com um humilde personagem de rua, que luta para sobreviver com o pouco que ganha. É nesse momento que o próprio Atget se confunde com esses personagens mundanos. Por muito tempo, a fotografia foi a atividade que lhe rendeu algum dinheiro. Não servia a uma burguesia abastada, mas a artistas e ilustradores que precisavam das suas imagens.

O trapeiro, que recolhe o tecido sujo do mundo, é um personagem-ruína que, no raiar do século XX, é soterrado pelo crescimento da burguesia industrial capitalista. Os pequenos ofícios se viram ignorados por um crescente comércio fabril. De uma individualização comercial, passou-se às fábricas, à industrialização. A produção em série assustou não só os pequenos trabalhadores, mas o próprio Atget, que viu a transição de um modo tradicional de comércio para as lojas de departamento. A serialização dos produtos, ainda que ofensiva para o fotógrafo, ressoou nas suas imagens. (ver Fig.9).

Sendo testemunha das mudanças sociais, políticas e econômicas do início do século, o fotógrafo coletou imagens que bem condensam as ruínas que deixaram o século anterior. Não é por acaso que os temas de suas fotografias mudam, já que ele precisa acompanhar o novo contexto capitalista industrial das vitrines de produtos. Vitrines estas em que os inanimados manequins ganham vida pela transitoriedade das mercadorias.

FIGURA 9: Magasin, avenue des Gobelins – Eugène Atget (1925)

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E o rosto humano? Teria ele um outro valor para a fotografia na modernidade? Como essa ruína foi retrabalhada? Sem consistir mais no retrato, foi dada uma nova significação ao rosto pelo fotógrafo alemão August Sander. Benjamin comenta que Sander construiu uma “galeria fisionômica” do povo alemão. Reuniu rostos de diferentes camadas sociais, desde camponeses a membros da alta sociedade, em uma rica variação, alcunhada por alguns da época de “científica”. Entretanto, a atualidade desse trabalho se dá na sua função social de retirar das imagens os “traços fisionômicos” de nós próprios. É este exercício atemporal, independente de raça ou credo, de olhar nos outros nós mesmos e vice-versa que Benjamin (1994a, p. 103) enfatiza:

Sob o efeito dos deslocamentos de poder, como os que estão hoje iminentes, aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos pode converter-se numa necessidade vital. (...) A obra de Sander é mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos.

Ver o “semelhante” em nós mesmos. Não se trata mais da aura artística, o “algo único e distante”. Mas de uma nova experiência, que não limita a fotografia ao seu status de arte. Perceber, de forma inversa, a “arte como fotografia” é reconhecer a sua contribuição decisiva para a experiência humana. Nossa percepção das grandes obras se modifica com o aprimoramento das técnicas de reprodução. Essas obras não são mais frutos de um só indivíduo; “(...) elas se transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos diminuí-las para que nos apoderemos delas” (id., ib., p. 104). Por isso, a fotografia, assim como as demais formas reprodutivas, constitui uma “técnica de miniaturização”, pela qual o homem mantém certo domínio sobre as obras e sem o qual as obras ficariam inutilizadas.

Miniaturizar as obras por meio das técnicas, segundo Benjamin, acaba por desligá-las do culto. Foi neste aspecto que muitos dos teóricos se prenderam ao abordarem a fotografia. No entanto, decorrente da percepção fotográfica do mundo, passamos a acompanhar a mudança na própria natureza da arte, que parece mais dependente da técnica do que nunca antes se tinha dado conta. Torna-se ainda mais desafiante assumir o papel do crítico, já que numa época em que as obras chegam ao público pela reprodução, tanto a fotografia quanto o

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