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O traço fotográfico e as ruínas

No documento A Fotografia como ruína (páginas 65-75)

2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO

2.1. O traço fotográfico e as ruínas

O novo modelo de percepção instalado pela tecnologia imagética da fotografia muito contribuiu para que se defendesse uma “essência” própria do meio. Buscando uma característica singular a todas às fotografias, Barthes destaca a presença do referente na imagem fotográfica como sendo a sua natureza singular. Nesse propósito, esbarra numa suposta singularidade originada tecnicamente: o traço do real impresso na imagem. Ainda que nomeada de “essencialista” e enfatizar o instante de impressão, a proposição barthesiana é rica como paradigma de um olhar inquieto diante da fotografia. Um olhar que, procurando definir o que é “fotografia”, oscila nos limites de uma definição até hoje incompleta.

Também na busca de uma “ontologia da imagem fotográfica”, André Bazin, em seu ensaio assim nomeado, destaca a “objetividade essencial” da fotografia em relação à pintura. Estaria na gênese mecânica e na fidelidade objetiva o seu poder de nos colocar ante uma credibilidade arrebatadora. Credibilidade ausente na pintura. “A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução” (BAZIN, 1991, p. 22). A semelhança com o objeto capturado, ou seja, o realismo da imagem se deve a essa presença da coisa, que está ali, sem ser necessário o talento de um gênio artístico. Voltaremos posteriormente a comentar outros trechos de Bazin.

Ainda sobre o teor automático da formação da imagem, as definições de fotografia que encontramos constantemente em manuais a caracterizam, muitas vezes, pela descrição técnica da captura da imagem pela câmera e sua sensibilização em papel fotossensível constituído de haletos de prata (e, mais recentemente, pela incidência da imagem em sensores digitais). Também no senso comum, como diz Laura Flores (2005), é recorrente associar a fotografia ao produto da câmera. No intuito de direcionar nossa discussão para um aspecto que não se limita apenas ao aparelho, mas ao fenômeno que se nomeia de “fotográfico” – no qual existe um instante específico de emanação do objeto na superfície sensível -, cremos ser nodal na abordagem da fotografia como ruína partirmos da ideia que Benjamin já anunciara na sua

Pequena história e que Barthes reitera com seu clássico noema do “isso foi”: o traço de

existência do referente – aquilo que estava diante da câmera - persiste na imagem.

Benjamin se dirige à fotografia como vestígio de um instante que se deu na realidade e que chamuscou a imagem. Ao falar da fotografia de Hill, enfatiza: “(...) preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo (...) que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real” (BENJAMIN, p.93, 1994a). Nessa passagem, o quê de real conferido à imagem escapa às intenções artísticas. A foto mostra: ali a modelo está real, ali a modelo existiu. É incontestável essa presença do referente. Ao mesmo tempo, leva o espectador a dar rumos a quem ali está, a desvendar a “faísca de acaso” que, graças ao real presente, queima a imagem. Diríamos que o próprio referente – incontestável – leva à sua transcendência. Não se trata mais da mimese. É por conta da própria fração (e não do espelho fiel) de realidade presente na imagem que a faz dizer e também calar.

Em tom barthesiano, “toda foto é de alguma forma co-natural a seu referente. Mistura duas vozes: a da banalidade e da singularidade” (BARTHES, 1980, p. 114). Em A Câmara

Clara, o autor se refere ao “intratável” na fotografia, ao “isso-foi”, que confere à imagem o

certificado de presença, de emanação de um real passado. Figura, pois, no noema fotográfico de Barthes, não só o “vejam”, “olhem”, o “eis-aqui”, como também a temporalidade do instante (passado) que não se repetirá existencialmente: “vejam, isso existiu”. Esse gesto dêitico da fotografia é um dos aspectos que a aproxima da categoria sígnica do índice, sobre a qual iremos falar mais especificamente mais tarde. Interessa-nos ainda em Barthes seu posicionamento quanto ao acaso, à surpresa na fotografia, àquilo que não está na transparência da imagem e que se desvirtua de uma codificação (como a cultural, que chamou de studium). A esta instância perturbadora da fotografia, ele deu o nome de punctum. “Pois o

punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte. O Punctum de uma foto é esse acaso que nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (id., ib., p.46). Não citaremos os exemplos de punctum que o autor cita durante a obra a partir de algumas fotografias. Portanto cabe destacar que o que punge o observador em determinada fotografia é um detalhe, um objeto parcial.

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FIGURA 10: Corpo da alma – Rosângela Rennó (2003)

Em imagens em tons de cinza – como a acima – expostas em grandes placas de metal, a série Corpo da alma, de Rosângela Rennó, mostra retratos com pessoas segurando fotografias de entes queridos desaparecidos. Essas imagens, originalmente publicadas em jornais, são editadas pela artista de modo a destacar os entes queridos e manter o tom reticulado das pessoas que os seguram. Não por acaso Rennó retira essas fotografias de um meio de grande circulação – o jornal. Ela coleciona imagens midiáticas, dentre outros gêneros, para dar a elas um destino não tão efêmero quanto o da notícia.

Índice da fotografia impressa, o tom reticulado que encobre a mulher da fotografia faz com que ela apareça com certo apagamento diante da maior nitidez dada às imagens dos entes

desaparecidos. Corpo da alma, assim, encarna o gesto dêitico em relação à presença do referente e ao passado: “olhem, eles estão aqui. Eles desapareceram”. Apontando para o desaparecimento desses corpos, Rennó sublinha a tênue relação entre aparência e ocultação tão presente no trabalho fotográfico. Desvirtuando esses corpos de um código cultural (studium), como a imprensa, essas pessoas que são trazidas na obra não são situadas em uma marcação cronológica, em um contexto espaço-temporal. Pelo contrário. Apesar de indicarem visualmente que foram retiradas de um meio anterior – o jornalístico -, na obra, acenam para a desmobilização de sentidos.

As imagens reivindicam uma percepção mais vigilante, um desvendamento. Onde estão essas pessoas? O que aconteceu com elas? Vítimas de violência, desaparecimento ou mesmo mortos por atos terroristas ou de guerra, as pessoas cujos retratos são segurados por parentes parecem ecoar um estado de impotência, como comenta Herkenhoff13. Não há, também, contentamento por parte do familiar da vítima. Este agarra a fotografia como um apelo à esperança, seja por justiça, por saudade ou por lembrança. Sabemos que a imagem fotográfica tem esse poder de indicar a presença da ausência. Corpo da alma dá ênfase à presença do vestígio de seres humanos. A obra recoloca o “isso-foi” barthesiano.

É no anonimato desses corpos-imagens, tão cotidianamente tornados lixo, fadados às intempéries do nosso esquecimento, que Rennó problematiza o código fotográfico. Fotografias são limitadas ao studium que lhe deu origem? São provas de acontecimentos deixados no passado? O índice fotográfico é questionado na própria constituição da obra. Arrancadas de uma clareza e objetividade – buscada na imprensa -, de provas vão ao estatuto de ficção, de intencionalidade simbólica vão à atemporalidade extraimagética. A artista explora a elasticidade do corpo-imagem para apontar para alma existente dele.

A fugacidade estampada nas imagens de Corpo da alma adverte para dispersão emergente nas fotografias. Não só dispersam o tempo, os acontecimentos, em uma descontinuidade histórica, mas também os fazem de forma a recuperar a potência material e visual de sua apresentação. Retículas, apagamentos, nitidez, tons de cinza, juntos, são índices do que pode sumir e emergir em imagem, em experiência fotográfica.

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Ora, esse estalo que uma fotografia me proporciona, e outra não, detém-me, como uma ferida: “vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES, 1980, p.46). Esse corte, essa

picada, não pertence à objetividade da câmera, mas ao espectador, à sua subjetividade. Diante da foto do Jardim de Inverno (foto de sua mãe), Barthes se deixa levar pelos sentimentos e lembranças, mas reitera que esse campo aberto e não-codificado só se manifesta dada a presença do referente, constituinte do “isso foi”.

Na fotografia a presença da coisa jamais é metafórica. A imobilidade da foto é como o resultado de uma confusão perversa entre dois conceitos: O Real e o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que eterno. Mas ao deportar esse real para o passado ela sugere que esse real está morto (id., ib., p.118).

A sugestão de morte do real na fotografia também está associada à inconclusão do que é apreendido pela câmera. A emanação do referente se dá numa fração de tempo e, claro, essa fração imobilizada em imagem nos é parcial, deixa brechas, pede complementos. Nesse aspecto, a vida da fotografia se desenrola aos olhos do observador, ainda que parta de uma constatação de morte. O acaso que me conduz na fotografia – o punctum barthesiano – “é o que acrescento à foto e que todavia já estava nela” (id., ib., p.85). Já está na foto o “isso foi”, a certificação de presença, o rastro, a marca, o indício.

O peso do real em Barthes, assim como em Benjamin, não é absoluto. Em algum momento – e só nesse momento, já passado – é que o referente deixou seu vestígio na imagem. Contudo, a crença na vida dessa realidade capturada, imobilizada, ainda nos confunde. Absolutizar esse real foi por muito tempo a tese defendida nos primórdios da técnica fotográfica. Como já apontamos no capítulo anterior, o advento da fotografia no século XIX foi acompanhado de uma longa discussão sobre o seu êxito enquanto espelho, representação do real de natureza automática. E até hoje, ela está impregnada da ideia de prova, de constatação da existência daquilo que ela mostra. Contudo, no que implica a relação da fotografia com a ruína, por exemplo, para um entendimento do tempo fotográfico? Essa é uma das questões que nos direciona.

Destaquemos três motivos que ligam a fotografia à ruína: a presença/ausência do objeto (que é apontada quando a fotografia é tratada como rastro do real – a coisa está ali, mas ao mesmo tempo, não está), a incompletude (pois não temos uma totalidade presente, mas um

pedaço, uma sobra do que já passou e persiste) e a morte/vida (pois estamos falando de uma aniquilação do tempo, mas também de sua persistência em parte). Para permear esses três motivos, parece-nos inevitável um mergulho na categoria sígnica do índice, proveniente das teorias de Charles Sanders Peirce, que foi abordada e discutida por Philippe Dubois (2009). Está vinculado à noção de índice, a propósito, um dos discursos apontados pelo autor, que é o da fotografia como traço de um real. Embora esse discurso trate também da questão do realismo, a mimese não é mais central. O traço nos dá a ideia de marca, vestígio, incompletude. E por ele ser originário de um real – notemos aqui a ênfase no artigo singular -, é um traço particular, único, determinado exclusivamente por seu referente - o real que

queima a imagem e não mais se repetirá.

Índice é “representação por contiguidade física do signo com seu referente” (DUBOIS, 2009, P.45). Ele se distingue do ícone e do símbolo (outras duas categorias) por ser o primeiro uma “representação por semelhança” e do segundo por ser uma “representação por convenção geral”. Ambos (ícone e símbolo) são representações mentais, não possuem ligação física com o referente. A fotografia, por ser uma emanação, uma impressão do objeto, caracteriza-se como índice. Nessa categoria, estaria a fumaça – índice do fogo, a ruína – “traço do que havia ali”. O denominador comum a esses exemplos é serem signos afetados por seus objetos. Sem se demorar em detalhar o exemplo da ruína como índice, mas sim, na fotografia, Dubois reforça que sendo a foto uma impressão luminosa, não quer dizer que ela, necessariamente, tenha que passar por um aparelho, nem que se pareça com o objeto que lhe deu origem. Para essa distinção, ele fala do fotograma, que é uma imagem obtida pelo decalque direto do objeto exposto à luz em papel sensível, sem passar por um aparelho fotográfico e sem, praticamente, possuir semelhança com o referente – dada a falta de clareza nos contornos de luz e sombra. Prevalece apenas o princípio do traço. Traço esse de um momento único – o de inscrição na imagem.

Vemos que Dubois quer resguardar a fotografia do discurso da mimese e da gênese automática. Para isso, recorre a Peirce e os princípios que interessam a um recorte, a um traço de realidade próprio à fotografia. Do índice, ele retira as premissas de uma pragmática da fotografia (fazendo questão de opor à semântica). Não interessa o sentido atribuído à imagem (“isso quer dizer aquilo”), mas a existência do que ela representa. “Como índice, a imagem

fotográfica não teria outra semântica que não sua própria pragmática” (id., ib., p.52). Não

contribuem para um melhor entendimento dos três motivos (apontados por nós) que sustentam a fotografia como ruína.

A condição de índice da imagem fotográfica implica, caso quisermos sintetizar nesse ponto as aquisições de Peirce, que a relação que os signos indiciais mantêm com seu objeto referencial seja sempre marcada por um princípio quádruplo, de conexão física, de singularidade, de designação e de

atestação. (id. ib., p.51).

O princípio de conexão física, como já mencionamos, refere-se ao fato de podermos inferir da imagem o seu traço do referente, a sua impressão (como no caso do fotograma). Notemos que o momento de impressão se dá por uma fração de todo o processo fotográfico: é o momento em que o objeto se transfere para a imagem, que se enquadra entre um antes (da escolha feita pelo fotógrafo, do tipo de material em que a imagem vai ser impressa, do ponto de vista escolhido) e um depois (a revelação da imagem, a difusão, a imersão em códigos culturais). Como diz Dubois, é só nesse instante em que a fotografia é “puro ato-traço”. Desse principio, ao levarmos em conta o motivo de presença/ausência da fotografia como ruína, identificamos claramente o traço como certificado de presença. A ausência só se dá depois desse instante “puro” de emanação, já na quebra da ligação física, ou, quando só temos dela o vestígio, a sobra. A ruína é esse traço do instante, passado e não mais em estado de conexão pura. No entanto, quando pensamos em ruínas como objetos materiais, uma separação temporal vem à tona: há um antes completo, original, e um depois, que são os vestígios dessa completude. É justamente na ausência que o segundo motivo se mostra: o da incompletude. Ruínas são incompletas; as fotografias também são.

Na singularidade, Dubois destaca a unicidade do traço fotográfico. “O traço (fotográfico) só pode ser, em seu fundo, singular, tão singular quanto seu próprio referente” ou “esse princípio de singularidade indiciária encontra de fato sua origem na própria unicidade do referente” (id., ib., p.72). O peso da singularidade, assim, remonta à referência material – o objeto que estava diante da câmera naquele momento de conexão física é único. Esse princípio é problematizado quando fazemos um paralelo entre matriz (original) e cópia em nossos dias. Podemos distinguir com melhor precisão uma matriz quando ela é física – um negativo fotográfico, por exemplo. Mas em tempos de hoje, com o advento da imagem digital (numérica14), já não temos esse discernimento. A singularidade indicial fica dispersa, pois a

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François Soulages diz que a fotografia digital é uma imagem da imagem e não mais uma imagem da realidade. “A ruptura com o real é infinitamente maior com a imagem numérica, que pode tornar-se totalmente autônoma – se modificamos a matriz numérica - em relação ao real que lhe deu origem, passando da esfera que em algum

“prova” física se evanesce com a lógica numérica dos sistemas digitais – temos inúmeros “originais” e “cópias”.

A matriz física, entretanto, é, por assim dizer, um testemunho de presença única, quando pensada enquanto índice. E a essa afirmação se relaciona também ao princípio da atestação. A foto, traço de um real, é atestado desse real. “Enquanto índice, a fotografia é por natureza um testemunho irrefutável da existência de certas realidades” (id., ib., p.74). Ruínas também indicam a existência de que algo havia ali. Mesmo em uma implicação mais genérica, partimos da noção de que ruínas e fotografias atestam a existência de um momento pregresso. O noema barthesiano do “isso foi” enfatiza essa relação de testemunho de um momento passado-ruína. O que vejo na fotografia já aconteceu. Fotos são, elas mesmas, ruínas. Designam a existência do que foi e do que é.

Dessa indicação característica do signo indiciário, Dubois ressalta o princípio de designação. Voltando ainda a Barthes, fotos sinalizam, apontam com o dedo. “Uma fotografia sempre se encontra no extremo desse gesto [dêitico]; ela diz: isso é isso, é tal! mas não diz nada mais” (BARTHES, 1980, p.14). Contudo, indicar, mostrar, são atribuições de qualquer signo indiciário. O que difere, ao pensarmos na fotografia, é que ela é índice que para com o “isso foi” (existência), ou seja, não vai além com o “isso quer dizer” (sentido). Além disso, Dubois reforça que o instante de “puro ato-traço”, de impressão do referente, é ínfimo em relação a todo o processo fotográfico e que “convém libertar bem o signo fotográfico desse

fantasma de uma fusão com o real” (DUBOIS, 2009, p.87).

No esforço de apartar o índice fotográfico de uma “totalidade” com o real, em que objeto e representação se transformam em um só, Dubois se dedica a argumentar a distância espaço-temporal, o abismo inerente ao dispositivo fotográfico. Espacialmente, essa distância se manifesta no próprio ato do fotógrafo (ele precisa se distanciar do objeto para capturá-lo com a câmera) e também na separação que advém pelo aqui do signo e o ali do referente (“veja, nós que estamos aqui com você olhando essa imagem, fomos até lá”). Até na extrema proximidade do fotograma, em que objeto e representação se tocam fisicamente, o signo não é a coisa; há uma distância entre visível e intocável. “O referente que nos sidera é de fato o

intocável da imagem fotográfica, mesmo que a última emane fisicamente do primeiro.

lugar tratava de uma lógica fotográfica para uma lógica puramente numérica na qual encontram-se também as imagens calculadas realizadas sem nenhuma relação com um real já existente, de um real do qual teríamos como que apreendido em vôo uma imagem pelo viés do cálculo (...)” (SOULAGES, 2008, p. 83-84).

Obrigatoriamente, qualquer chapa só mostra em seu lugar uma ausência existencial. O que se olha na película jamais está ali”. (id., ib., p. 88).

Lembremos o nosso primeiro motivo de abordagem da fotografia como ruína: presença/ausência. O signo ruína implica, necessariamente, em presença do objeto – pois o próprio signo é resto dele. A ausência, porém, não é existencial, já que a ruína pode ser um vestígio físico do que ali havia antes. Mencionamos em outro momento que é na relação temporal que a presença/ausência figura como característica da fotografia como ruína, uma vez que o instante de emanação do objeto é vestígio na imagem. E, seguindo esse raciocínio, é na incompletude temporal e em uma não totalidade da realidade é que podemos falar em fotografia-ruína. Ora, percebemos, com isso, que nos debruçarmos sobre o tempo é fundamental para compreender melhor essa temática.

Temporalmente, a distância fotográfica também se manifesta. Há uma decalagem temporal entre o momento em que a imagem é captada e o momento em que a vejo. “Qualquer foto só nos mostra por princípio o passado, seja este mais próximo ou distante” (id., ib., p.89). Vale reiterar que, em qualquer situação, a ruína também aponta para o passado. Faz parte dela, enquanto signo, dirigir-se a um tempo anterior – antes de sua constituição. Ruínas arquitetônicas, por exemplo, são indícios de uma construção anteriormente em estado íntegro. O motivo da incompletude, já citado, associa-se claramente à distância – de um antes conservado e o seu depois arruinado.

Na fotografia, o desaparecimento do objeto real na imagem reforça o princípio da distância, assim como coloca em cheque o motivo da presença/ausência. Presença da foto, ausência do referente. “(...) no próprio instante em que é tirada a fotografia, o objeto

desaparece. (...) Só lhe resta a foto, frágil, incerta, quase estranha. É a foto que literalmente

vai se tornar sua lembrança, substituir a ausência” (id., ib., p.90). Assim surge a foto, de um instante ao modelo do mito de Orfeu, que morre ao ver Eurídice. Nos Infernos, ele desmaia no exato momento em que a reconhece.

Ainda que pareça oportuno passar, aqui, a abordar o terceiro motivo – morte/vida, é interessante ainda pensarmos acerca da natureza do índice ruína e sua relação com a fotografia. Devemos mencionar a breve distinção que o próprio Dubois faz especificamente dos dois signos (dedica apenas uma página para diferenciá-los). O substrato dessa distinção

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