• Nenhum resultado encontrado

2 MARCO TEÓRICO

2.4 Saberes Docentes: de sua origem, definição e aplicação

2.4.1 Da Origem do Conceito

É no interior do movimento de profissionalização do ensino, iniciado na década de 80 do século XX, e de um período de crise no sistema educacional, que surge o debate acerca dos saberes dos professores. Segundo Tardif (2000, p. 6), o movimento de profissionalização docente “buscou renovar os fundamentos epistemológicos do ofício de professor”. Isso ocorreu inicialmente nos países da América do Norte e países de cultura anglosaxã, seguido dos países europeus, imprimindo caráter internacional ao movimento. Ainda segundo Tardif (2000), dentre as questões que orientavam os trabalhos sobre a profissionalização docente estavam aquelas que procuravam conhecer quais seriam os saberes profissionais dos professores e como estes se diferenciavam daqueles conhecimentos produzidos pelos pesquisadores da área educacional. Também se buscava explorar relações entre os conhecimentos profissionais dos professores e os conhecimentos elaborados pelos pesquisadores.

Como foi dito acima, outro fator que impulsionou os estudos sobre saberes docentes foi a crise do sistema educacional que se apresentou nos países citados acima. Diante de

resultados negativos de avaliações do sistema de ensino, passou-se a se repensar o papel do professor, sua formação e os conhecimentos necessários ao exercício da docência.

É a partir desses dois elementos, portanto, que os estudos sobre saberes docentes surgem, procurando conhecer e refletir sobre o fazer do professor em ação, buscando entender a sua prática não como mera aplicação de uma teoria produzida por acadêmicos mas, sim, como uma prática cheia de meandros que devem ser explicitados. Como apontam Gauthier et al. (2006), ainda se sabe muito pouco acerca dos saberes inerentes ao exercício da docência. Desta forma, aqueles que discutiam e pesquisavam sobre políticas educacionais foram chamados a refletir sobre o papel do professor diante de novos desafios decorrentes da sociedade chamada do “conhecimento”.

Como nos aponta Nóvoa (1995), as pesquisas, convocadas pelas políticas e pelos gestores dos sistemas de ensino, voltam seu olhar para o professor. Tais estudos procuraram dar voz a essa figura, considerando os saberes que estes constroem desde sua prática e tentando aproximar a produção do conhecimento à realidade cotidiana.

Os estudos sobre saberes docentes buscavam, porém, não apenas observar a prática dos professores, mas também entender suas concepções e crenças e como estas, por sua vez, se relacionavam com a prática. Emergia, assim, o reconhecimento de que a profissão docente se caracteriza por saberes específicos. É a partir desse reconhecimento que as pesquisas educacionais têm buscado apreender quais elementos compõem os saberes dos professores, incluindo aí os aspectos subjetivos, valores, crenças e representações que se apresentam na prática do professor. Tal entendimento, no entanto, também é alvo de críticas por parte de alguns estudiosos como Duarte (2010), que argumenta que essa proposta desconsidera os saberes teóricos necessários à formação do professor.

Acreditamos que a tentativa de explicação de um fenômeno ou objeto não se dá no vazio e que o conhecimento decorrente de tal explicação traz avanços em alguns pontos, deixando outros obscuros. Assim, não podemos deixar de reconhecer que os estudos sobre saberes docentes trouxeram e trazem importantes contribuições ao campo da pesquisa educacional. O fato de reconhecer o professor como sujeito ativo que reelabora seus conhecimentos a partir de determinada realidade é, sem dúvida, algo extremamente relevante. Por outro lado, não podemos deixar de observar que o contexto em que surgem os estudos sobre os saberes docentes vem como resposta a uma crise do sistema educacional de uma sociedade, cujo modelo econômico tem bases capitalistas e, como tal, dará respostas para atender aos problemas dessa sociedade.

É importante pontuarmos que, no momento em que surgem os estudos sobre saberes docentes, as pesquisas em educação orientavam-se, predominantemente, pelo modelo da racionalidade técnico cientifica e que tal racionalidade ainda mantém forte presença. As pesquisas referenciadas neste paradigma concebem o professor como mero instrumento de transmissão de saberes produzidos por outros e a prática do professor restringia-se à competência técnica, havendo uma cisão entre os saberes teóricos e práticos. A formação docente, por sua vez, baseava-se em orientações e prescrições de comportamentos desejáveis ao professor. As pesquisas, nessa perspectiva, procuravam observar o comportamento dos professores e identificar quais seriam os mais adequados e aqueles que conduziriam aos melhores resultados com respeito às aprendizagens dos alunos.

Como apontam Almeida e Biajone (2007), podemos situar os estudos sobre saberes docentes dentro do modelo da racionalidade prática, cujo marco inicial seria o trabalho de Donald Schön (1983). Nessa perspectiva, entende-se que, por meio da ação docente, o professor constrói um conjunto de saberes, saberes estes que não estão relacionados apenas a aspectos teóricos e acadêmicos, mas ligados a dimensões históricas e subjetivas da vida do professor. O saber do professor é visto como “saberes-na-ação” (knowing-in-action) (SCHÖN, 1995).

Schön (1995), a partir de observações da prática do professor, nos mostra que o docente utiliza certa quantidade de conhecimento teórico, mas seus comportamentos não são estritamente determinados por tais conhecimentos. O fato da prática pedagógica estar impregnada de problemas complexos e singulares, que não estão relacionados apenas aos aspectos instrumentais, exige do professor não só conhecimentos acadêmicos, mas também saberes que são, muitas vezes, construídos na prática. Falamos de problemas complexos porque estes envolvem não apenas elementos da didática, mas estão relacionados a aspectos mais amplos. Falamos também de sua singularidade, porque são únicos. Nessa perspectiva, cada sala de aula tem sua especificidade e peculiaridade; ainda que tenha algo em comum com outras salas de aula, nunca apresentam problemas inteiramente iguais.

No que concerne ao contexto nacional, os estudos sobre saberes docentes foram largamente difundidos e divulgados a partir da década de 90 e, com maior vigor, nos anos 2000, especialmente a partir dos trabalhos de Pimenta (1999), Geraldi, Fiorentini e Pereira (2001), Lüdke (2001), entre outros. Mesmo tendo aceitação no meio acadêmico, tais trabalhos também foram alvo de críticas, que não podemos deixar de pontuar aqui, mesmo que brevemente.

Duarte (2010) tem sido um dos críticos mais contundentes e sistemáticos dessas ideias. Ele afirma, por exemplo, que os ideais das pedagogias do “aprender a aprender” e da pedagogia das competências estão alinhados aos princípios neoliberais e pós-modernos que buscam, em geral, atender aos interesses econômicos sem fazer a crítica à estrutura da sociedade. O ideário do professor reflexivo, os estudos da epistemologia da prática e as pedagogias do aprender a aprender realçam os aspectos práticos em detrimento dos conhecimentos teóricos e do saber escolar. Segundo Duarte (2003), os estudos de Donald Schön e outros autores, como Tardif e Perrenoud sobre os processos de formação de professor, inserem-se nessa mesma lógica, visto que, nesse contexto, o professor deixa de ser visto como agente de transmissão do saber escolar e passa a ser entendido mais como um formador. Duarte (2003) ainda afirma que tais ideias buscam a valorização de uma formação em que os indivíduos estariam sendo preparados para acompanhar as mudanças da sociedade do conhecimento, ou seja, para aprimorarem sua capacidade de adaptação em detrimento de uma formação crítica, reflexiva que visa promover mudanças na estrutura da sociedade. Dentre as críticas mais recorrentes do autor está a de que tais estudos privilegiam os conhecimentos práticos, experienciais em detrimento de uma formação mais teórica. Duarte (2003, p. 601; 2010, p. 135) faz essa crítica, sobretudo, aos estudos de Donald Schön, uma vez que, segundo o autor, estes se pautariam numa concepção que desvaloriza o conhecimento científico/teórico/acadêmico e numa pedagogia que desconsidera o “saber escolar”. Duarte ainda aponta que tal desvalorização está presente em vários autores que se tornaram referência no campo da formação de professores, a exemplo de Tardif (2000) e Tardif e Lessard (2011).

Duarte (2003) faz críticas ao conceito de “saber escolar” apresentado por Schön (1995)18, afirmando que este tem um caráter fortemente negativo. No entanto, mesmo aceitando tal crítica, não podemos deixar de reconhecer que é esta concepção de saber escolar que vigora e está presente nas escolas, em representações de professores, alunos, pais de alunos e que, portanto, exerce influência sobre os saberes que os professores constroem.

Duarte (2003) também não nos apresenta que outra concepção de saber escolar poderia ser tomada como referência. A esse respeito, acreditamos que Schön (1995) faz uma crítica a determinada concepção de saber, que se firmou dentro da tradição pedagógica. Tradição esta, pautada numa certa organização escolar, onde as teorias produzidas pelas ciências da

18 “Existe primeiro a noção de saber escolar, isto é, um tipo de conhecimento que os professores são supostos a possuir e transmitir aos alunos. É uma visão dos saberes como factos e teorias aceites, como proposições estabelecidas na sequência de pesquisas, tido como certo, significando uma profunda e quase mística crença em respostas exatas. É molecular, feito de peças isoladas, que podem ser combinadas em sistemas cada vez mais elaborados de modo a formar um conhecimento avançado” (SCHÖN, 1995, p. 81).

educação estariam distantes das práticas pedagógicas, desconsiderando aquilo que os professores fazem em seu cotidiano.

Duarte (2003) afirma que, na visão de Tardif (2000), as pesquisas desenvolvidas no âmbito educacional devem voltar seu olhar “quase que inteiramente” para a “investigação dos saberes que os professores utilizariam em seu cotidiano profissional”. Tal posicionamento, acarretaria uma mudança nos cursos de formação de professores que desprezariam o modelo “aplicacionista”, abandonando a “lógica disciplinar” e adotando um modelo de formação baseado numa lógica profissional centrada no estudo da tarefa, ou no estudo de casos, como propõe Shulman (1986). Isso resultaria, segundo Duarte, na desvalorização dos conhecimentos teóricos, acadêmicos e científicos, conhecimentos tidos como pouco importantes do ponto de vista da ação profissional.

Se considerarmos correta a análise de Duarte, acreditamos que o problema reside no fato de que, historicamente, a formação de professores foi organizada em blocos desarticulados, nos quais as disciplinas clássicas (Psicologia, Sociologia, Filosofia, História etc.) presentes no currículo da formação dos professores não traziam respostas aos problemas enfrentados por eles em sua prática. É nesse sentido que Tardif e Lessard (2011) propõem que se olhe para os saberes que o professor constrói desde sua prática a fim de que, a partir dela, se possa encontrar respostas aos problemas presentes no fazer docente, não se limitando apenas à prática pela prática, mas pensando uma teoria da prática educativa.

Além disso, acreditamos que a crítica feita aos trabalhos de Tardif (2000) desconsidera um ponto central. O fato dele conceber o saber do professor como um conjunto de saberes, advindos da formação profissional, das disciplinas, do currículo e da experiência. Desta forma, não há apenas o saber prático, mas um saber que resulta do amálgama de muitos outros e que é validado pela prática. Tardif (2012) conceberia o saber do professor como uma confluência de saberes, não sendo a prática do professor orientada apenas por uma teoria ou composta apenas de um saber, mas por vários. Assim, não haveria uma unidade ou coerência teórica e, sim, uma coerência teórico prática, visto que, no seu fazer, o professor buscaria a coerência a partir daquilo que pode ser vivenciado e validado a partir da experiência.

É importante realçar também a necessidade, anunciada por Tardif, de escaparmos de dois perigos presentes no entendimento dos saberes dos professores. Ele refere-se a tais perigos utilizando-se dos termos “mentalismo” e “sociologismo”. Segundo Tardif (2012), o mentalismo consistiria numa forma reduzida de percepção do saber do professor, entendendo- o como resultante de processos mentais, baseados na atividade cognitiva dos indivíduos. O

sociologismo, por sua vez, tenderia a reduzir o papel dos sujeitos na construção do saber, ou seja, reduziria o saber dos professores a uma produção social, desconsiderando a atividade individual no processo de construção do saber. O que podemos entender é que o saber do professor não se dá descontextualizado das relações estabelecidas com alunos e colegas de trabalho. Por isso, para entendê-lo é importante perceber a relação que este estabelece com o trabalho docente.

Como vimos, na tentativa de se consolidar como uma possibilidade de explicação do trabalho docente, os trabalhos ligados à epistemologia da prática, tal como será detalhado mais adiante, enfatizam os aspectos experienciais do saber do professor. Contudo, sob nosso ponto de vista, este saber não é exclusivamente pragmático e tal ênfase não significa desconsiderar os demais saberes mas, sim, uma tentativa de mostrar que o saber docente não é simples transferência de teorias para prática. Como alertam Gauthier et al. (2006, p. 24), mesmo que os saberes experienciais ocupem um lugar privilegiado no conjunto de saberes que compõem o saber docente, isso não significa que este seja a “totalidade do saber docente”.

Por fim, acreditamos que toda produção intelectual, que visa explicitar e compreender determinado fenômeno, não pode desconsiderar o contexto de sua produção. Desta forma, mesmo não aceitando que a formação do professor não deva estar exclusivamente pautada na prática do professor, não podemos deixar de considerá-la. Acreditamos que os estudos de Tardif e de outros, que advogam em favor de uma formação mais prática, têm um papel importante. Acreditamos, juntamente com Gauthier et al. (2006, p. 24), que os saberes experienciais do professor devem ser “alimentado[s] e orientado[s] por um conhecimento anterior mais formal que pode servir de apoio para interpretar os acontecimentos e inventar soluções novas”.

Nos últimos anos, os estudos voltados a entender os saberes que os professores mobilizam no exercício de sua profissão têm se apresentado de forma bastante plural e com diferentes enfoques. Assim, é importante observarmos as diferenças existentes entre eles, bem como as diferentes tipologias e abordagens. Podemos observar que alguns autores enfatizam os saberes do professor a partir da sua relação com os conteúdos a serem ensinados, a exemplo de Shulman (1986); outros enfatizam os saberes advindos da experiência, a exemplo de Tardif (2002) e aqueles que defendam a necessidade da construção de uma teoria geral da pedagogia, a exemplo de Gauthier et al. (2006). Como podemos ver, mesmo tendo pontos em

comuns, que fazem com que seus estudos possam ser identificados como estudos sobre saberes docentes, cada autor apresenta pontos de distinção que precisam ser explicitados.