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Da Propensão para o Mal na Natureza Humana

No documento A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO (páginas 36-40)

3 PRIMEIRA PARTE

2. Da Propensão para o Mal na Natureza Humana

Por propensão (propensio) entendo o fundamento subjectivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concupiscentia), na medida em que ela é contingente para a humanidade em geral9

. Distingue-se de uma disposição por poder, sem dúvida, ser inata; não obstante, é permitido não representá-la como tal, podendo igual- mente pensar-se (quando é boa) como adquirida ou (quando é má) como contraída pelo próprio homem. – Mas aqui trata-se

9Propensão é, em rigor, apenas a predisposição para a ânsia de uma fruição;

quando o sujeito faz a experiência desta última, a propensão suscita a inclinação para ela. Assim todos os homens grosseiros têm uma propensão para coisas inebriantes; pois, embora muitos deles não conheçam a embriaguez e, portanto, não tenham apetite algum das coisas que a produzem, contudo, basta deixar- lhes provar só uma vez tais coisas para neles produzir um apetite dificilmente extirpável. – Entre a propensão e a inclinação, que pressupõe conhecimento do objecto do apetite, encontra-se ainda o instinto, que é uma necessidade sentida de fazer ou saborear algo de que não se tem ainda conceito algum (como o impulso industrioso nos animais ou o impulso para o sexo). Partindo da inclinação, há ainda, por fim, um grau da faculdade apetitiva, a paixão (não o afecto, pois este pertence ao sentimento do prazer e desprazer), a qual é uma inclinação que exclui o domínio sobre si mesmo.

somente da inclinação para o mal propriamente dito, isto é, para o mal moral; o qual, já que é possível só como determinação do livre arbítrio, mas este pode ser julgado como bom ou mau unica- mente pela suas máximas, deve consistir no fundamento subjectivo da possibilidade da deflexão das máximas a respeito da lei moral, e, se tal propensão se pode aceitar como universalmente inerente ao homem (logo, como pertencente ao carácter da sua espécie), chamar-se-á uma inclinação natural do homem para o mal. – Pode acrescentar-se ainda que a capacidade ou a incapacidade do arbítrio para acolher ou não a lei moral na sua máxima - capacidade ou in- capacidade que brota da propensão natural - se denomina bom ou mau coração.

Podem distinguir-se três diferentes graus de tal propensão. Primeiro, é a debilidade do coração humano na observância das máximas adoptadas em geral, ou a fragilidade da natureza humana; em se- gundo lugar, a inclinação para misturar móbiles imorais com os morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máx- imas do bem), i.e., a impureza; em terceiro lugar, a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i.e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano.

Primeiramente, a fragilidade (fragilitas) da natureza humana encontra-se, inclusive, expressa na queixa de um Apóstolo: Tenho, sem dúvida, o querer, mas falta o cumprir, i.e., admito o bem (a lei) na máxima do meu arbítrio; mas o que objectivamente na ideia (in thesi) é um móbil insuperável é, subjectivamente (in hypothesi) quando a máxima deve ser seguida, o mais fraco (em comparação com a inclinação).

Em segundo lugar,a impureza (impuritas, improbitas) do coração humano consiste em que a máxima é decerto boa segundo o objecto (o seguimento intentado da lei) e, porventura, também assaz forte para a execução, mas não puramente moral, i.e., não acolheu em si, como deveria ser, a mera lei como móbil suficiente; na maioria dos

casos (talvez sempre), precisa ainda de outros móbiles além deste a fim de por eles determinar o arbítrio àquilo que o dever exige. Por outras palavras, que acções conformes ao dever não são feitas puramente por dever.

Em terceiro lugar,a malignidade (vitiositas, pravitas) ou, se se preferir, o estado de corrupção (corruptio) do coração humano, é a inclinação do arbítrio para máximas que pospõem o móbil dimanante da lei moral a outros (não morais). Pode igualmente chamar-se a perversidade (perversitas) do coração humano, porque inverte a ordem moral a respeito dos móbiles de um livre arbítrio e, embora assim possam ainda existir sempre acções boas segundo a lei (legais), o modo de pensar é, no entanto, corrompido na sua raiz (no tocante à intenção moral), e o homem é, por isso, designado como mau.

Advertir-se-á que a propensão para o mal se estabelece aqui no homem, inclusive no melhor (segundo as acções), o que deve também acontecer, se houver de se demonstrar a universalidade da inclinação para o mal entre os homens ou, o que aqui significa a mesma coisa, se houver de se comprovar que tal inclinação está entrosada na natureza humana.

Mas no tocante à consonância das acções com a lei não há (pelo menos, não deve haver) diferença alguma entre um homem de bons costumes (bene moratus) e um homem moralmente bom (moraliter bonus); só que num as acções nem sempre, porventura nunca, têm a lei como único e supremo móbil, mas no outro a têm sempre. Do primeiro pode dizer-se que segue a lei segundo a letra (i.e., quanto à acção que a lei ordena); do segundo, porém, que observa a lei segundo o espírito (o espírito da lei moral consiste em que ela só seja suficiente como móbil). O que não acontece em virtude desta fé é pecado (segundo o modo de pensar). Com efeito, se para de- terminar o arbítrio a acções conformes à lei, são necessários outros móbiles diferentes da própria lei (e.g. ânsia de honras, amor de si

em geral, ou inclusive um instinto benévolo, como é a compaixão), então é simplesmente casual que eles concordem com a lei; pois poderiam igualmente impelir à sua transgressão. A máxima, se- gundo cuja bondade se deve apreciar todo o valor moral da pessoa, é, no entanto, contrária à lei, e o homem, embora faça só acções boas, é, contudo, mau.

É ainda necessária a elucidação seguinte para especificar o con- ceito desta inclinação. Toda a propensão ou é física, i.e., pertence ao arbítrio do homem como ser natural, ou é moral, i.e., pertence ao arbítrio do mesmo como ser moral. – Na primeira acepção, não há qualquer inclinação para o mal moral, pois este deve derivar da liberdade; e uma inclinação física (que se funda em impulsos sensíveis) para qualquer uso da liberdade, seja para o bem ou para o mal, é uma contradição. Por conseguinte, uma inclinação para o mal só pode estar ligada à faculdade moral do arbítrio. Ora nada é moralmente (i.e. imputavelmente) mau excepto o que é nosso próprio acto. Em contrapartida, pelo conceito de inclinação entende-se um fundamento subjectivo de determinação do arbítrio, fundamento que precede todo o acto, portanto, ele não é ainda um acto; haveria, pois, uma contradição no conceito de uma simples propensão para o mal se tal expressão não pudesse, porventura, tomar-se em dois significados diferentes que, no entanto, se deixam unir com o conceito da liberdade. Mas a expressão” um acto” em geral pode aplicar-se tanto ao uso da liberdade, pelo qual é acol- hida no arbítrio a máxima suprema (conforme ou adversa à lei), como também àquele em que as próprias acções (segundo a sua matéria, i.e., no tocante aos objectos do arbítrio) se levam a cabo de acordo com aquela máxima. A inclinação para o mal é, pois, um acto no primeiro significado (peccatum originarium) e, ao mesmo tempo, o fundamento formal de todo o acto - tomado na segunda acepção – contrário à lei, acto que, quanto à matéria, é antagónico à mesma lei e se chama vício (peccatum derivativum); e a primeira falta permanece, embora a segunda (em virtude de móbiles que não

consistem na própria lei) seja de múltiplos modos evitada.Aquela é um acto inteligível, cognoscível unicamente pela razão sem qual- quer condição de tempo; esta é sensível, empírica, dada no tempo (factum phaenomenon). Ora a primeira, sobretudo em comparação com a segunda, diz-se uma simples propensão, e propensão inata, porque não pode ser extirpada (para tal a máxima suprema deveria ser a do bem, a qual, porém, nessa própria propensão, é acolhida como má); mas sobretudo pela razão seguinte: em relação a porque é que em nós o mal corrompeu precisamente a máxima suprema, embora tal seja um acto próprio nosso, tampouco podemos indicar uma causa como acerca de uma propriedade fundamental inerente à nossa natureza. – No que agora se disse encontrar-se-á a razão por que, nesta secção, buscámos desde o início as três fontes do mal moral unicamente naquilo que, segundo leis da liberdade, afecta o fundamento supremo da adopção ou seguimento das nossas máxi- mas; não no que afecta a sensibilidade (como receptividade).

3.4 ...

No documento A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO (páginas 36-40)