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SEGUNDA SECCÇÃO D O DIREITO DO PRINCÍPIO MAU

No documento A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO (páginas 92-98)

AO DOMÍNIO SOBRE O HOMEM,

E DA

LUTA DE AMBOS OS PRINCÍPIOS ENTRE SI

A Sagrada Escritura (na parte cristã) expõe esta relação moral in- teligível na forma de uma história, em que dois princípios entre si opostos no homem, como céu e inferno, representados como pessoas fora dele, não só testam o seu poder um contra o outro, mas também (uma parte como acusador, a outra como advogado do homem) querem fazer valer por direito as suas pretensões, por assim dizer, diante de um juiz supremo.

O homem foi originariamente instituído como proprietário de todos os bens da Terra (I Moisés I, 28), mas de modo que os de- via possuir só como propriedade sua em dependência (dominium utile) relativamente ao seu Criador e Senhor, como proprietário su- perior (dominus directus). Estabelece-se ao mesmo tempo um ser mau (não se sabe como ele chegou a ser mau até se tornar infiel ao seu Senhor, pois primigeniamente era bom) que, pela sua defecção, perdeu toda a propriedade que podia ter possuído no céu e pretende agora apossar-se de outra na Terra. Ora, visto que os objectos ter- renos e corpóreos não lhe podem proporcionar a ele, como ser de índole superior, como espírito, nenhuma fruição, procura alcançar um domínio sobre os ânimos levando os progenitores de todos os homens a apostatar do seu Senhor e a aderir a ele, conseguindo en- tão estabelecer-se como dono de todos os bens da Terra, i.e., como

príncipe deste mundo. Poderiam decerto levantar-se dúvidas a este respeito: porque é que Deus não se serviu do seu poder contra este traidor30 e não aniquilou, nos seus primórdios, o reino que

ele intentara fundar? Mas a dominação e o governo da suprema sabedoria sobre os seres racionais procede com eles de acordo com o princípio da sua respectiva liberdade, e o bem ou o mal que os devem afectar terão eles de a si mesmos o atribuir. Por conseguinte, não obstante o principio bom, erigiu-se aqui um reino do mal a que se submeteram todos os homens que descendem (naturalmente) de Adão, e decerto com o seu próprio consentimento, porque a ilusão dos bens deste mundo desviou o seu olhar do abismo de perdição, para que ficaram reservados. Sem dúvida, o princípio bom reservou-se o direito ao domínio sobre os homens mediante a erecção da forma de um governo ordenada simplesmente à vener- ação pública exclusiva do seu nome (na teocracia judaica), mas, em virtude de os ânimos dos súbditos desta não estarem dispostos para quaisquer outros motivos excepto os bens deste mundo e, portanto, não quererem ser governados de outro modo a não ser mediante recompensas e castigos nesta vida, não sendo, aliás, aptos para out- ras leis senão aquelas que, em parte, impunham cerimónias e usos molestos e, em parte, eram decerto morais, mas unicamente leis em que tinha lugar uma coacção externa, por conseguinte, leis somente civis, em que não se tinha em consideração o íntimo da disposição de ânimo moral, por isso, tal ordenamento não suscitou qualquer interrupção essencial ao reino das trevas, mas serviu somente para manter sempre na memória o inextinguível direito do primeiro pro- prietário. – Pois bem, neste mesmo povo, numa época em que ele sentia plenamente todos os males de uma constituição hierárquica,

30 O P. Charlevoix refere que, ao contar ao seu catecúmeno iroquês todo o

mal que o espírito mau introduziu na criação, inicialmente boa, e como intenta ainda constantemente frustrar as melhores disposições divinas, aquele perguntou com indignação: "Mas porque é que Deus não mata o diabo?", pergunta para a qual confessa com franqueza que, na pressa, não conseguiu encontrar resposta alguma.

e em que tanto por isto como, porventura, pelas doutrinas morais da liberdade – que abalavam o espírito de escravidão –, enunciadas pe- los filósofos gregos e que pouco a pouco alcançaram influência so- bre este povo, ele próprio fora em grande parte levado a reflectir e, portanto, estava maduro para uma revolução, surgiu de súbito uma pessoa cuja sabedoria era ainda mais pura do que a dos filósofos até então existentes, como que descida do céu, e que se anunciava tam- bém a si mesma, no tocante às suas doutrinas e ao exemplo, segura- mente como verdadeiro homem, mas no entanto como um enviado de tal origem, que, na inocência originária, não estava incluído no acordo em que entrara, com o princípio mau, o resto do género humano por meio do seu representante, o primeiro progenitor31 e,

31 Imaginar uma pessoa isenta da propensão inata para o mal como possível

de tal modo que se faça nascer de uma mãe virgem é uma ideia da razão que se acomoda a um instinto, por assim dizer, moral difícil de explicar e que, to- davia, também se não deve negar; pois consideramos a geração natural, já que não pode acontecer sem prazer sensual de ambas as partes e parece, no entanto, levar-nos (para a dignidade da humanidade) a um parentesco demasiado próx- imo com o universal género animal, como algo de que nos temos de envergonhar – representação que foi certamente a causa genuína da pretensa santidade do es- tado monacal – o que nos parece ser algo de imoral, de inconciliável com a perfeição de um homem, apesar de tudo, enxertado na sua natureza e que, por isso, se transmite em herança à sua posteridade como uma disposição má. – A esta representação obscura (por um lado, meramente sensível, por outro, moral, por conseguinte, intelectual) é muito adequada a ideia de um nascimento inde- pendente de toda a comunidade sexual (nascimento virginal) de uma criança não afectada por qualquer façlta moral, ideia que, no entanto, não carece de dificul- dade na teoria (mas determinar a seu respeito algo com um propósito prático não é sequer necessário). Com efeito, segundo a hipótese da epigénese, a mãe, que procede dos seus pais por geração natural, estaria afectada por aquela falta moral e legá-la-ia a seu filho, pelo menos em metade, inclusive numa geração sobrenatural; portanto, para que tal não seja a consequência, haveria que supor o sistema da preexistência dos germes nos pais, mas não o do seu desenvolvimento na parte feminina (porque não se evitaria assim aquela consequência), mas ape- nas na parte masculina (não na dos ovula, mas na dos animalcula espermatica), parte esta que desaparece numa gravidez sobrenatural, e assim este modo de rep- resentação podia defender-se teoreticamente conforme àquela ideia. – Mas para que todas estas teorias pro ou contra, se, para o prático, nos basta representar por

portanto, como alguém ”em que o príncipe deste mundo não tinha parte alguma". Assim foi posto em perigo o domínio deste último. Pois se este homem agradável a Deus resistia às suas tentações de entrar também naquele contrato, e se outros homens adoptavam igualmente a mesma disposição de ânimo, o príncipe mau perdia outros tantos súbditos e o seu reino expunha-se ao perigo de ser inteiramente destruído. Por isso, ofereceu a este homem torná-lo feudatário de todo o seu reino, contanto que quisesse prestar-lhe homenagem como ao seu proprietário. Visto que tal intento não foi bem sucedido, não só subtraiu a este estrangeiro no seu solo tudo o que lhe podia tornar agradável a sua vida terrena (até à máx- ima pobreza), mas suscitou contra ele todas as perseguições, pelas quais homens maus a podem tornar amarga, padecimentos que só o homem de boa tenção sente verdadeiramente a fundo, difamação do propósito puro das suas doutrinas (para o privar de todos os adeptos), e perseguiu-o até à morte mais ignominiosa, sem nada conseguir com este assalto à sua constância e franqueza na dout- rina e no exemplo para o bem de gente simplesmente indigna. E agora o resultado desta luta! O seu desenlace pode considerar-se quer como jurídico, quer igualmente como físico. Se se tem em vista o último (que cai sob os sentidos), o princípio bom é a parte que fica por baixo; neste combate, teve de entregar a sua vida32 modelo tal ideia como símbolo da humanidade que se eleva acima da tentação para mal (a este vitoriosamente resistindo)?

32Não que (como imaginou de modo novelesco D. Bahrdt) buscasse a morte

para fomentar um bom propósito graças a um exemplo brilhante que chamasse a atenção; tal teria sido um suicídio. Pode, decerto, ousar-se algo com risco de perder a própria vida, ou inclusive sofrer a morte às mãos de outro, se não se puder evitar sem se tornar infiel a um dever inadiável, mas não dispor de si e da sua vida como meio, seja para que fim for, e ser assim o autor da sua morte. - Mas também não que (como suspeita o fragmentista de Wolfenbüttel) tenha arriscado a sua vida com um propósito não moral, mas apenas político, e ilícito, para derrubar o governo dos sacerdotes e, em seu lugar, se estabelecer a si mesmo com o poder supremo mundano; pois a isso se opõe a sua exortação aos discípulos na ceia, após ter abandonado a esperança de conservar a sua vida, a fazê-lo em sua memória - o que se houvesse por força de ser a recordação

depois de suportar muitos padecimentos, porque suscitou uma in- surreição num domínio estrangeiro (que possui força). Mas porque o reino em que têm poder princípios (sejam eles bons ou maus) não é um reino da natureza, mas da liberdade, i.e., um reino em que se pode dispor das coisas só enquanto se domina nos ânimos, em que, por conseguinte, ninguém é escravo (servo) excepto quem o quer ser e enquanto o quer ser, esta morte (o mais alto grau de sofrimento de um homem) foi justamente a apresentação do princí- pio bom, a saber, da humanidade, na sua perfeição moral, como exemplo a seguir para todos. A representação de tal princípio de- via e podia ser da maior influência sobre os ânimos humanos para o seu tempo, mais ainda, pode sê-lo para cada época, ao deixar ver no mais conspícuo contraste a liberdade dos filhos do céu e a servidão de um simples filho da terra. O princípio bom, porém, não desceu simplesmente do céu à humanidade num certo tempo, mas invisivelmente desde o começo do género humano (como deve confessar todo o que toma em consideração a sua santidade e, ao mesmo tempo, a inconceptibilidade do nexo de tal santidade com a natureza sensível do homem na disposição moral) e tem por di- reito na humanidade o seu primeiro domicílio. Portanto, uma vez que apareceu num homem efectivamente real como exemplo para todos os outros, “veio à sua propriedade e os seus não o acolheram, mas aos que o receberam deu-lhes o poder de se chamar filhos de Deus, que crêem no seu nome", i.e., pelo seu exemplo (na ideia

de um fito mundano fracassado, teria sido uma exortação ofensiva, suscitando a indignação contra o seu autor e, portanto, a si mesma se contradiria. No entanto, semelhante recordação podia concernir ao fracasso de um propósito puramente moral muito bom do mestre, a saber, o de levar a cabo, ainda durante a sua vida, por meio do derrube da fé cerimonial, que reprimia toda a disposição de ânimo moral, e da autoridade dos sacerdotes, uma revolução pública (na religião) (a que se podiam dirigir as suas disposições para reunir na Páscoa os seus discípulos dispersos pelo país), propósito a cujo respeito se pode, sem dúvida, ainda hoje lamentar que não tenha tido êxito. Não foi, porém, frustrado; depois da sua morte, transformou-se numa mutação religiosa que se difundiu em silêncio, e também com muitos sofrimentos.

moral) abre a porta da liberdade a todos os que, como ele, querem morrer para tudo o que os mantém acorrentados à vida terrena em desvantagem da moralidade, e reúne para si entre estes ”um povo que seria diligente nas obras boas, para propriedade sua" e sob o seu domínio, enquanto aos que preferem a servidão moral os aban- dona ao seu próprio.

Por isso, o resultado moral de semelhante luta por parte do herói desta história (até à sua morte) não é, em rigor, a derrota do princípio mau; pois o seu reino ainda persiste e, em todo o caso, há-de ainda ter lugar uma época nova em que deve ser destruído – mas somente uma rotura do seu poder, de modo a não reter con- tra sua vontade os que durante tanto tempo lhe estiveram sujeitos, porquanto lhes foi aberto um outro domínio moral (já que o homem deve estar sob algum) como lugar livre em que possam encon- trar protecção para a sua moralidade, se pretenderem abandonar o antigo domínio. Ademais, o princípio mau continua a chamar- se o príncipe deste mundo, em que os adeptos do princípio bom podem estar preparados para sofrimentos físicos, sacrifícios, mor- tificações do amor próprio, coisas que aqui são representadas como perseguições do princípio mau, porque ele só tem no seu reino rec- ompensas para os que fizeram do bem-estar terreno a sua meta der- radeira.

Se se despir do seu envoltório místico este modo de represen- tação animado, e provavelmente o único popular para o seu tempo, é fácil de ver que ele (o seu espírito e o seu sentido racional) foi praticamente válido e obrigatório para todo o mundo e em todo o tempo, pois está bastante próximo de cada homem para este nele reconhecer o seu dever. Tal sentido consiste em que não há em absoluto salvação alguma para os homens a não ser no mais ín- timo acolhimento de genuínos princípios morais na sua disposição de ânimo; que a este acolhimento não se opõe, porventura, a tan- tas vezes incriminada sensibilidade, mas uma certa perversidade em si mesma culpada ou, seja qual for aliás a designação que se

queira dar a esta malignidade, uma impostura (fausseté) (astúcia satânica, pela qual o mal veio ao mundo); uma depravação que habita em todos os homens e por nada pode ser vencida excepto pela ideia do bem moral em toda a sua pureza, com a consciência de que ela pertence efectivamente à nossa originária disposição, e importa somente zelar por mantê-la isenta de toda a mescla im- pura e acolhê-la profundamente na nossa intenção para, mediante o efeito que ela pouco a pouco tem no ânimo, se convencer de que os temidos poderes do mal nada podem contra ela ("as portas do inferno não prevalecem sobre ela"), e de que, para não suprir su- persticiosamente a falta desta confiança, graças a expiações que não pressupõem qualquer mudança de tenção, ou fanaticamente, por meio de supostas iluminações interiores (meramente passivas), e se manter assim sempre afastado do bem fundado na autoactivi- dade, não devemos atribuir a tal confiança outra característica a não ser a de uma conduta de vida bem orientada. – Além disso, um esforço, como o presente, por indagar na Escritura o sentido que está em harmonia com o mais santo, que a razão ensina, não só deve ter-se por lícito, mas antes por dever33 ; e pode a este re-

speito recordar-se o que o mestre sábio disse aos seus discípulos a propósito de alguém que seguia o seu caminho particular pelo qual, no fim, deveria chegar justamente à mesma meta: "Não o estorveis, pois quem não é contra vós, é por vós."

4.3 ...

No documento A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO (páginas 92-98)