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A fé eclesial tem por seu intérprete supremo a fé religiosa pura

No documento A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO (páginas 129-136)

numa Escritura sagrada

VI. A fé eclesial tem por seu intérprete supremo a fé religiosa pura

42 Os Mongóis chamam ao Tibete (segundo Georgii, Alphab. Tibet., pg. ll)

Tangut-Chadzar, i. e., o país dos habitantes de casas, para os distinguir de si mesmos enquanto nómadas que vivem no deserto debaixo de tendas; daí vem o nome de Chadzar e, a partir deste, o de herejes (al. Ketzer), porque aqueles eram adeptos da fé tibetana (dos Lamas), que concorda com o Maniqueísmo e talvez tenha neste a sua origem, e difundiram-na nas suas incursões pela Europa; por isso, também durante muito tempo os nomes haeretici e manichaei foram usados como sinónimos.

Observámos que, embora uma Igreja careça da mais importante característica da sua verdade, a saber, a de uma pretensão legítima à universalidade, quando se funda numa fé revelada, a qual, como histórica (embora muito difundida mediante a Escritura, e assegu- rada à mais tardia posteridade), não é todavia susceptível de uma comuni-cação universal convincente; contudo, por causa da neces- sidade natural de todos os homens de, para os supremos conceitos e fundamentos da razão, exigir sempre algum apoio sensível, alguma corroboração empírica e quejandos (a que, de facto, importa aten- der no intento de introduzir universalmente uma fé), deve utilizar- se qualquer fé eclesial histórica, que em geral alguém encontra já diante de si.

Mas para a semelhante fé empírica, que, segundo parece, um acaso pôs nas nossas mãos, juntar a base de uma fé moral (seja ela fim ou apenas meio) exige-se uma interpretação da revelação que até nós chegou, i.e., uma sua explicação geral num sentido que concorde com as regras práticas universais de uma pura religião racional. Com efeito, o teorético da fé eclesial não nos pode inter- essar moralmente se não actuar em prol do cumprimento de todos os deveres humanos como mandamentos divinos (o que constitui o essencial de toda a religião). Esta interpretação pode, inclusive, parecer-nos muitas vezes forçada quanto ao texto (da revelação), pode, com frequência, sê-lo de facto e, todavia, contanto que seja possível que o texto a aceite, há-de preferir-se a uma interpretação literal que ou não contém absoluta-mente nada para a moralidade, ou actua mesmo contra os móbiles desta última43. – Descobrir-se-

43 Para tal ilustrar com um exemplo, tome-se o Salmo 59, v. 11-19, onde

se depara com uma oração pedindo vingança, que chega ao horror. Michaelis (Moral, 2aparte, p. 202) aprova esta oração e acrescenta: "Os Salmos são inspi-

rados; se neles se pede um castigo, não se trata de algo injusto, e não devemos ter nenhuma moral mais santa do que a Bíblia". Atenho-me aqui à última ex- pressão e pergunto se a moral deverá ser interpretada segundo a Bíblia ou antes a Bíblia segundo a moral? - Sem atender sequer à passagem do Novo Testa- mento "Foi dito aos antigos, etc. ; mas eu digo-vos: Amai os vossos inimigos,

á igualmente que sempre assim se fez com todos os modos de fé antigos e modernos, em parte formulados em livros sagrados, e que mestres populares racionais e de bom pensamento os interpretaram durante muito tempo até os trazer pouco a pouco à consonância, quanto ao seu conteúdo essencial, com os universais princípios de fé morais. Os filósofos morais entre os Gregos e, em seguida, entre os Romanos fizeram isso, pouco a pouco, com a sua doutrina fab- ulosa dos deuses. Souberam, por último, explicar o mais grosseiro politeísmo como simples representação simbólica das propriedades do ser divino uno, e atribuir às diversas acções viciosas ou, inclu- sive, às fantasias bárbaras mas, apesar de tudo, belas dos seus po- etas um sentido místico que aproximava uma crença popular (que não teria sido oportuno extirpar, porque poderia assim suscitar por- ventura um ateísmo ainda mais perigoso para o Estado) de uma doutrina moral compreensível a todos os homens e a única salutar. O judaísmo tardio e, inclusive, o cristianismo constam de tais inter- pretações, em parte muito forçadas, mas em ambos os casos para fins indubitavelmente bons e necessários para todos os homens. Os maometanos sabem (como mostra Reland) atribuir muito bem à descrição do seu paraíso, consagrado a toda a sensualidade, um sentido espiritual, e o mesmo fazem justamente os Indianos com a interpretação dos seus Vedas, pelo menos no tocante à parte mais

abençoai os que vos maldizem, " etc. - como esta passagem, que também é inspirada, se poderá conciliar com aquela – tentarei ou acomodá-la aos meus princípios morais por si consistentes (dizendo que, por exemplo, não se entende aqui inimigos corporais mas, sob o seu símbolo, os inimigos invisíveis, que nos são muito mais perniciosos, a saber, as más inclinações, que devemos desejar reprimir por completo)ou, se isto não puder ser, suporei antes que tal passagem não se deve entender em sentido moral, mas de acordo com a relação em que os Judeus se consideravam com Deus enquanto seu regente político; como tam- bém outra passagem da Bíblia onde se diz "A vingança é minha; eu retribuirei, diz o Senhor", que comummente se interpreta como advertência moral contra a vingança por mão própria, se bem que verosimilmente indica só a lei, válida em todo o Estado, de buscar satisfação pelas ofensas no tribunal do soberano, onde a sede de vingança do acusador não pode considerar-se como aprovada quando o juiz lhe permite propor um castigo tão duro como quiser.

ilustrada do seu povo. – Que isto, porém, se possa fazer sem faltar sempre muito ao sentido literal da crença popular deve-se a que, muito antes desta, estava oculta na razão humana a disposição para a religião moral, disposição cujas primeiras manifestações rudes se encaminhavam apenas para o uso do culto divino e, para tal fim, ocasionaram aquelas pretensas revelações, mas puseram outrossim nestes poemas – embora não de propósito – algo do carácter da sua origem supra-sensível. Não se pode acusar de deslealdade a semelhantes interpretações, no pressuposto de que não se pretende afirmar que o sentido, por nós dado aos símbolos da crença popular ou também aos livros sagrados, tenha por eles também sido abso- lutamente intentado, pois isso fica por decidir e apenas se aceita a possibilidade de assim compreender os seus autores. Pois até a leitura dos livros sagrados ou a inquirição do seu conteúdo tem como intuito final tornar os homens melhores; mas o histórico, que em nada contribui para tal, é algo em si de totalmente indiferente, com o qual se pode lidar como se quiser. – (A fé histórica é ”morta em si mesma", i.e., por si, olhada como confissão, nada contém, a nada induz que tenha para nós um valor moral.)

Por isso, embora se tenha aceite uma Escritura como revelação divina, o seu critério supremo enquanto tal será: "Toda a Escritura inspirada por Deus é util para a doutrina, para o castigo, para a mel- horia, etc." e, visto que o último, a melhoria do homem, constitui o fim genuíno de toda a religião racional, esta conterá igualmente o princípio supremo de toda a interpretação da Escritura. Esta re- ligião é ”o Espírito de Deus que nos conduz a toda a verdade". Mas semelhante Espírito é aquele que, ao instruir-nos, nos vivi- ficaao mesmo tempo com princípios em ordem a acções, e refere inteiramen-te às regras e aos motivos da pura fé racional - a única que em toda a fé eclesial constitui o que nela é a genuína religião - tudo o que a Escritura ainda pode conter para a fé histórica.Toda a investigação e interpretação da Escritura deve partir do princípio

de nela buscar tal Espírito, e” somente nela se pode encontrar a vida eterna enquanto dá testemunho deste princípio".

Ora a este intérprete da Escritura está associado, mas subordi- nado, outro, a saber, o erudito escriturista. A autoridade da Escrit- ura como o mais digno – e agora, na parte mais ilustrada do mundo, o único - instrumento de união de todos os homens numa Igreja constitui a fé eclesial que, como crença popular, não se pode des- curar, pois, para o povo, nenhuma doutrina que esteja fundada na simples razão parece ser boa para constituir uma norma imutável, e ele exige uma revelação divina, portanto, também uma auten- ticação histórica da sua autoridade, mediante a dedução da sua origem. Ora visto que a humana arte e sabedoria não pode elevar-se ao céu para examinar a creden-cial da missão do primeiro mestre, mas se deve contentar com os sinais que, além do conteúdo, se podem tirar do modo como se introduziu uma tal fé, i.e., contentar- se com relatos humanos, que importa pouco a pouco buscar em tempos muito antigos e em línguas agora mortas, para os apreciar segundo a sua credibilidade histórica: exige-se a erudição escrit- urística a fim de manter na autoridade uma Igreja baseada numa Escritura sagrada, não uma religião (pois esta, para ser universal, deve fundar-se sempre na simples razão); embora tal erudição de- cida unicamente que a origem daquela Escritura nada em si con- tém que torne impossível a sua adopção como imediata revelação divina; o que seria suficiente para não estorvar os que pensam en- contrar nesta ideia um fortalecimento particular da sua fé moral e, por isso, de bom grado a aceitam. – Não é só, porém, a documen- tação, mas também a interpretação da Escritura sagrada que, pela mesma causa, precisa de uma erudição.De facto, como quer o não erudito, que só a pode ler em traduções, estar certo do seu sen- tido? Por isso, o intérprete conhecedor da língua básica deve ainda possuir um amplo conhecimento e crítica históricos para ir buscar às condições, aos costumes e às opiniões (crença popular) daquela

época os meios graças aos quais se pode patentear a compreensão à comunidade eclesial.

Religião racional e erudição escriturística são, pois, os intér- pretes e depositários genuínos e competentes de um documento sagrado.Salta aos olhos que elas, no uso público dos seus conhec- imentos e descober-tas neste campo, não podem pura e simples- mente ser estorvadas pelo braço secular, nem por ele ser vincu- ladas a certas proposições de fé porque, de outro modo, os leigos obrigariam os clérigos a ingressar na sua opinião, que aqueles, no entanto, só têm pelo ensino destes. Quando o Estado vela apenas por que não faltem eruditos e homens de boa reputação no tocante à sua moralidade que administrem o todo da Igreja, confiando à sua consciência este cuidado, fez tudo o que o seu dever e a sua competência implicam. Mas introduzir estes homens na escola e ocupar-se das suas controvérsias (que, contanto que não se façam a partir dos púlpitos, deixam em plena paz o público eclesial) é uma exigência que o público não pode fazer sem impertinência ao legislador, porque está sob a dignidade deste.

Apresenta-se, porém, ainda um terceiro pretendente ao cargo de intérprete, que não necessita nem da razão, nem da erudição, mas só de um sentimento interno, para conhecer o verdadeiro sentido da Escritura e, ao mesmo tempo, a sua origem divina.Ora não se pode negar que” quem segue a doutrina da Escritura e faz o que ela prescreve descobrirá, sem dúvida, que ela é de Deus", nem que o próprio impulso para as boas acções e para a honradez na conduta, que o homem que a lê ou ouve a sua exposição, o deve persuadir da sua divindade; porque tal impulso nada mais é do que o efeito da lei moral que enche o homem de um íntimo respeito – lei moral que, por isso, se deve igualmente considerar como mandamento divino. Mas assim como, a partir de qualquer sentimento, se não pode in- ferir e desvendar o conhecimento das leis e que estas são morais, assim também, e menos ainda, se pode, mediante um sentimento, inferir e descobrir o sinal seguro de uma influência divina imedi-

ata; pois para o mesmo efeito pode haver mais de uma causa, mas, neste caso, a simples moralidade da lei (e da doutrina), conhecida pela razão, é a causa de tal efeito, e inclusive no caso da mera pos- sibilidade desta origem é um dever dar-lhe a última interpretação, se não se quiser abrir as portas de par em par a todo o fanatismo e, inclusive, fazer perder ao sentimento moral não ambíguo a sua dignidade, aparentando-o a todo o outro sentimento fantástico. – Sentimento, quando a lei, pela qual ou também segundo a qual ele se produz, é antes conhecida, tem-no cada qual só para si, e não o pode exigir a outros, portanto, não o pode também apregoar como uma pedra de toque da genuinidade de uma revelação, uma vez que o sentimento não ensina absolutamente nada, mas contém apenas o modo como o sujeito é afectado quanto ao seu prazer ou desprazer, em que não se pode fundar conhecimento algum.

Não há, portanto, nenhuma norma da fé eclesial excepto a da Escritura, nem outros intérpretes seus a não ser a pura religião racionale a erudição escriturística (que diz respeito ao elemento histórico da mesma), dos quais só o primeiro é autêntico e válido para todo o mundo, ao passo que o segundo é só doutrinal, com o fito de converter a fé eclesial para um certo povo numa certa época num sistema determinado que se mantém de maneira con- stante. Mas quanto a este segundo, é irremediável que a fé histórica venha, por fim, a tornar-se uma simples fé em eruditos escrituris- tas e no seu discer-nimento – o que decerto não redunda partic- ularmente em honra da natureza humana, mas se remediará, por seu turno, mediante a pública liberdade de pensamento; por isso, esta estará para tal tanto mais habilitada quanto só os eruditos ex- põem as suas interpretações ao exame de todos, mas permanecem ao mesmo tempo eles próprios abertos e receptivos a um melhor discernimento, e podem contar com a confiança da comunidade em relação às suas decisões.

5.1.7 ...

VII. A transição gradual da fé eclesial

No documento A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO (páginas 129-136)