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NUDESE/FURG

2. Corrida para o último peixe: uma análise da dominância do capital na pesca capital na pesca

2.1 Perspectiva da pesca no mundo

2.1.1 Dados de captura e impactos ecológicos da pesca

Entre 1950 e 1990, houve um constante acréscimo na captura mundial de pescado. Nesse período, as capturas passaram de pouco menos de 20 milhões de toneladas/ano para atingir aproximadamente 90 milhões de toneladas/ano (DIAS NETO, 2002).

Logo a seguir, durante a década de 1990, a captura mundial de pescado também se elevou, mas com um ritmo menos intenso, chegando ao volume total pescado de 95 milhões de toneladas/ano, já demonstrando sinais de suplantação da capacidade de recuperação dos estoques (FAO, 2009). O fenômeno é conhecido como sobrepesca e representa o principal problema enfrentado pela atividade pesqueira no mundo.

Conforme dados da FAO (op. cit.), o volume de capturas mundiais de pescado de origem marinha atingiu seu ponto máximo no ano de 1996, com 86,3 milhões de toneladas, diminuindo, desde então, para atingir 79,5 milhões, em 2008. Neste mesmo ano, o volume total de capturas continentais (água doce) atingiu 10,2 milhões de toneladas, valor 18,6% maior que no ano de 2004; diferentemente, portanto, das capturas em águas marinhas, cuja ocorrência tem revelado um decréscimo.

Atualmente a China é o país que apresenta as maiores capturas de pescado: aproximadamente 15% do total da pesca marinha e 20% da pesca continental (FAO, 2010). As capturas mundiais apresentaram certa estabilidade a partir deste século, conforme demonstra o Gráfico 01, o qual apresenta os dados relativos à China em evidência, devido a sua importância no cenário da pesca mundial.

Gráfico 01. Produção pesqueira mundial continental e marinha, 1950-2008 (em milhões de toneladas)

Fonte: FAO (2010)

O que tem ocorrido é um aumento da exploração pesqueira em razão do processo de desenvolvimento das forças produtivas, no qual se sobressai a inserção de novas tecnologias na pesca e no setor de processamento industrial de pescado. Nesse ínterim, o mundo sentiu o avanço das relações capitalistas em escala globalizada e globalizante, pela adoção de modelos produtivos caracterizados pela produção em massa e diminuição dos custos de realização do trabalho (trabalho vivo e trabalho morto somados), sobrevivendo apenas aqueles produtores mais aptos.

No que se refere ao avanço do sistema do capital no mundo, tornando o capitalismo um ‘processo civilizatório’, assim afirma Ianni:

A mesma dinâmica do capitalismo cria e recria as forças produtivas e as relações de produção, tanto nas colônias, nos países dependentes e associados, como nos próprios países dominantes, metropolitanos ou imperialistas. As formas de organização social da produção, traduzindo ciência em tecnologia, provocando o aumento da composição orgânica do capital, sofisticando a divisão do trabalho social e a especialização da força de trabalho, robotizando e informatizando organizações e atividades econômicas, sociais, políticas e culturais, tudo isso expressa o dinamismo do capital, o desenvolvimento intensivo do capitalismo. (IANNI, 1997, p. 54).

Às contradições inerentes ao modo de produção capitalista (superprodução, queda da taxa de lucro, monopolização etc.) soma-se, na pesca, a contradição máxima entre a prática humana e a natureza. Prática mediada pela ciência que serve ao capital com aporte de tecnologia, visando à máxima exploração dos recursos pesqueiros; no entanto, o sistema do capital, ao se deparar com a natureza das espécies de pescado, cujas condições biológicas são suficientes para atender sua reprodução (no que

poderíamos incluir as condições de não poluição do ambiente em que vivem), busca subterfúgios para se manter economicamente, sem se preocupar com a continuidade de qualquer espécie da vida marinha. Se determinada espécie não ‘rende’ mais a esse modo de produção, busca-se outra, e assim tem se construído a história das pescarias mundiais. Pois em nossa retrospectiva da pesca em nível mundial, conforme dados disponibilizados por Lima e Dias Neto (2002), observa-se que, no ano 1995, 69% das espécies comerciais de pescado no mundo apresentavam sinais de sobrepesca e, em 1999, esse percentual elevou-se para 75%, mantendo-se até a atualidade.

Ainda no que se refere à contradição máxima entre a prática de pesca alicerçada no modo de produção capitalista e à natureza dos recursos pesqueiros, podemos somar o fato de que as espécies de pescado marinhas com possibilidade de crescimento no volume de capturas (consideradas como infraexploradas ou moderadamente exploradas) representavam 40% das pescarias nos anos 70, diminuindo para apenas 15% em 2008.

Por outro lado, as espécies consideradas sobre-exploradas, esgotadas ou em recuperação (de esgotamento anterior) representavam apenas 10% nos anos 70 e, em 2008, ampliaram-se para 32% do total das espécies de pescado no mundo (FAO, 2010).

O gráfico a seguir demonstra a variação da situação dos estoques pesqueiros marinhos mundiais entre os anos de 1974 e 2008, dividindo as espécies em categorias conforme o grau de exploração que apresentam.

Gráfico 02. Tendências mundiais da situação das populações de peixes marinhos, conforme seu grau de exploração, 1974-2008

Conforme os dados apresentados no Gráfico 02, atualmente, cerca de 15% das espécies de pescado marinho avaliadas pela FAO (2010) ainda podem ter suas capturas ampliadas ou mantidas, sendo que o percentual diminuiu consideravelmente, já que, em 1974, 40% das espécies de pescado marinho podiam ter suas capturas ampliadas ou mantidas. Portanto, podemos observar que, num período de trinta anos, a forma hegemônica de exploração pesqueira reduziu a possibilidade de manter-se como uma atividade produtiva, revelando uma contradição entre a ‘forma’ de realização do trabalho, intensificada pelo aporte de novas tecnologias (forças produtivas) e a natureza de seu objeto, que não é matéria-prima, mas dotado de ‘sua’ natureza, que necessita de condições para reproduzir-se, as quais não são consideradas pela modalidade de pesca industrial.

Já as espécies que, segundo as categorias avaliadas pela FAO (op. cit.) se encontram em situação crítica (sobre-exploradas, esgotadas e em recuperação após terem sido altamente exploradas), triplicaram nas últimas três décadas, com já comentamos, passando de menos de 10%, em 1974, para aproximadamente 30%, em 2008.

Além dessa situação, que aponta alto teor de risco na atividade pesqueira, deve-se alertar que, no mundo, apenas dez espécies de pescado repredeve-sentam 30% do volume total das pescarias, sendo que todas elas são identificadas como sobre-exploradas ou plenamente exploradas, e apenas uma, a anchoveta (Engraulis ringens), pescada no Pacífico sudeste, representa 9,3% do total das capturas marinhas mundiais (FAO, 2010).

Sendo assim, percebemos que grande parte do esforço de pesca é direcionado a poucas espécies e que a dependência destas para a sustentação da atividade pesqueira está com os dias contados. Tais fatos conduzem à incerteza quanto ao futuro da atividade, o que envolve não apenas uma contextualização ecológica, mas social, pelo grande número de pessoas envolvidas.

Enquanto a FAO divulga que 80% das espécies de pescado estão extintas ou suscetíveis à extinção, as capturas pesqueiras mundiais quintuplicaram entre 1950 e 1997. Embarcações pesqueiras industriais varrem os mares e oceanos do mundo, usando redes com aberturas de até 100 metros, nas quais caberiam seis aviões-jumbo, arando locais de reprodução e alimentação de espécies marinhas, como é o caso dos recifes de corais. Na captura, utilizam aparatos modernos de localização de cardumes, como sonares 3-D, helicópteros e potentes jet-skis. Existem verdadeiros navios frigoríficos com grande autonomia de viagem e porões nos quais cabem milhões de

quilogramas do pescado (REVISTAGEO, 2009), que vira matéria-prima da indústria pesqueira.

Outro fato que demonstra a vulnerabilidade do setor é que a prática de arrasto de fundo, modalidade de pesca considerada altamente prejudicial, é responsável por 23% das capturas mundiais marinhas.

O índice de capturas acessórias, ou seja, de espécies que não são o alvo da pescaria e que geralmente são descartadas mortas ou sem possibilidade de recuperação, situa-se entre 17,9 e 39,5 milhões de toneladas (média de 27,0 milhões) ao ano, o que representa cerca de 25% das capturas mundiais (ALVERSON et al., 1994). Os autores comentam ainda que os dados apresentados de capturas acessórias estão relacionados principalmente à modalidade de pesca industrial.

Além das considerações relacionadas às capturas acessórias, se calcula que 1/3 do volume total pescado no mundo é capturado de forma ilegal, ou seja, sem o devido licenciamento. Soma-se a tais fatos, colaborando para a situação de crise da atividade de pesca no mundo, o de as capturas serem realizadas fora do período adequado, ou seja, desconsiderando a ecologia das espécies e o uso de modalidades de pesca tidas como inadequadas, pela degradação causada ao ambiente e às espécies aquáticas que ali vivem (REVISTAGEO, 2009).

Os estados-nação, a fim de evitar a sobrepesca, utilizam legislação específica para controlar a atividade, mas nota-se aí uma contradição: ao mesmo tempo em que é defendida uma adequação ecológica entre prática humana e natureza, são fornecidos, por muitos desses estados-nação, elevados subsídios ao setor produtivo, principalmente ao setor capitalista industrial pesqueiro, tópico discutido na próxima seção deste estudo.

Apesar da tendência de queda nas capturas mundiais marinhas, o que representa uma situação de crise, devido aos dados apresentados para as três últimas décadas, o esforço de pesca e o comércio global continuam se desenvolvendo, com o pescado entrando para o rol das commodities valiosas. E isso ocorre, também, pelo incentivo dado ao consumo de pescado, em razão de suas ricas características proteicas e do forte apelo a uma alimentação saudável. Mas conforme salientado, enquanto se amplia o comércio de pescado, com campanhas de incentivo ao consumo, a fim de melhorar a alimentação de quem tem dinheiro para comprar esse produto (o pescado), diminuem as capturas de pescadores artesanais familiares, o que reduz o acesso deles ao alimento, tendo que buscar as proteínas necessárias em outros alimentos.

E isso ocorre simultaneamente à globalização da pesca e dos recursos que captura, cujos fluxos comerciais entre os países atingem mais de US$ 50 bilhões anuais, amplamente regulamentados por acordos internacionais (FAO, 2009) e atrelados a investimentos de empresas multinacionais. Além disso, o referido fluxo comercial mundial, envolvendo o pescado capturado, possui uma logística de transporte de alto gasto energético (baseado em combustível fóssil), na qual “o resultado é que mais de 75% das capturas no mundo é vendida e consumida em outros países, em vez de nos países cuja ZEE30 os peixes foram desembarcados” (HEMPEL e PAULY, 2002 apud

KHAN et al., 2006, p. 07).

Por isso, compreendemos que o confronto entre o desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção na pesca, no sistema do capital, se estabalece numa lógica economicista que tem levado a uma degradação da natureza sem precedentes na história humana, da mesma forma que tem conduzido à degradação social dos trabalhadores que nela atuam. Percebemos, assim, que a pesca global é desenvolvida numa contradição sobre si mesma.