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NUDESE/FURG

2. Corrida para o último peixe: uma análise da dominância do capital na pesca capital na pesca

2.1 Perspectiva da pesca no mundo

2.1.3 Socioeconomia pesqueira mundial

A pesca continental, ou seja, aquela realizada em águas interiores, como rios, lagos e estuários, é de grande importância para a reprodução social dos pescadores artesanais/familiares. Contudo, práticas de pesca predatórias, associadas ao uso do espaço aquático como sumidouro da descarga de poluentes de setores produtivos (indústria e agricultura) têm contribuído para a diminuição do número de espécies de pescado e do volume capturado.

Isso representa um empobrecimento e a diminuição das proteínas na alimentação de milhares de pessoas em um mundo já caracterizado pela fome e miséria,

onde mais de um bilhão de pessoas passam fome. É oportuno salientar que cem milhões engrossaram as massas de humanos que passam fome, somente nas duas últimas décadas, devido aos interesses dos especuladores financeiros, os quais muito contribuíram para o aumento no preço dos alimentos (BRASIL, 2010).

Os países em desenvolvimento colaboram com a maior parte do volume pescado: cerca de 80%, segundo dados da FAO (2009), o que representa um fator importante em termos de segurança alimentar, visto que nesses países existe um maior número de pescadores artesanais31 que dependem diretamente do recurso, seja para alimentação ou para realizar trocas, com o uso do dinheiro (no mercado tradicional capitalista), ou não (nas trocas comunitárias).

O pescado contribui mundialmente com 15,3% das proteínas animais consumidas e, em países pobres e com déficit de alimentos, o percentual eleva-se para 18,5%. Devido a possíveis falhas nas estatísticas, principalmente com a dificuldade na coleta de informações da pesca artesanal, esses percentuais de dependência no consumo de proteínas, por parte da população pesqueira artesanal de determinado país ou região, pode atingir níveis ainda superiores (FAO, 2009).

A média de consumo per capita de pescado no mundo é de 17,2 kg/hab/ano32 (FAO, 2010), enquanto no Brasil, ela assume o patamar de 9,75 kg/hab/ano (BRASIL, 2012a), sendo que, nas comunidades de pesca artesanal, o consumo é muito maior que o da população em geral. O fato é também observado nas comunidades de pescadores artesanais na região do estuário da Lagoa dos Patos, que é de 52,8 kg/hab/ano (KALIKOSKI e VASCONCELOS, 2012).

O elevado percentual que o pescado representa para a composição de proteínas na dieta das comunidades pesqueiras artesanais é prova inconteste de que a atividade pesqueira artesanal garante a alimentação com qualidade nutricional, além de contribuir na geração de trabalho e renda para um grande contingente populacional.

A produção média de pescado por trabalhador da pesca (considerando os trabalhadores embarcados na pesca industrial e os pescadores artesanais) em regiões onde predomina a pesca artesanal, como é o caso da Ásia, é de 2,4t, enquanto na Europa e América do Norte, onde predomina a pesca industrial, a média de produção por

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Salientamos que a FAO agrega na categoria de ‘pescadores artesanais’ diferentes formas de realização do trabalho da pesca; o que é por ela considerado artesanal (pelo aparelhamento e tecnologia desenvolvidos) pode ser considerado como industrial, segundo legislação própria do país.

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Os dados da China influenciam consideravelmente nesse resultado: quando desconsideramos o referido país, a média de consumo mundial de pescado cai para 13,7 kg/hab/ano (FAO, 2010).

pescador é de 24t e 18t, respectivamente (FAO, 2010). Os dados demonstram um aumento da produtividade do trabalho nos países desenvolvidos da Europa e da América do Norte, pela forma capitalista predominante na pesca por eles praticada, associada à realização da mais-valia relativa, conforme determinam os ditames do sistema do capital.

A rentabilidade na pesca é boa para algumas embarcações industriais europeias, que podem obter lucro líquido na ordem de quinhentos mil euros em um mês, mas os dados gerais da pesca indicam a ocorrência de prejuízos totais no setor, na Europa, entre dois e doze bilhões de euros ao ano (FAO, op. cit.).

Mesmo assim, na lógica de desenvolvimento do capital, a pesca torna-se artificialmente um mercado atrativo, pelo menos no curto prazo, haja vista que um exemplar adulto do atum vermelho (Thunnus thynnus), por exemplo, pode atingir valores quase irreais no mercado de Tóquio/Japão. Em janeiro deste ano, foi amplamente alardeado pela mídia internacional o maior valor que um exemplar dessa espécie, com 222 kg, atingiu, num leilão em Tóquio: EU$ 1,58 milhão de euros33(G1.GLOBO, 2013).

Apesar de ser denunciada como ilógica a atividade de pesca realizada indiscriminadamente e com o apoio financeiro e político de muitos estados-nação, essa racionalidade se materializa ao defender-se como provedora de alimentos e de trabalho, mas que, na verdade, ocorre e se mantém pela extração da mais-valia.

É realmente expressivo o número de trabalho que gera no setor de industrialização: cerca de 170 milhões, segundo a FAO (2009). Considerando os indivíduos dependentes desses trabalhadores, o número se amplia para 520 milhões de pessoas, o que significa a dependência de cerca de 8% da população mundial do setor industrial pesqueiro (FAO, op. cit.).

Por outro lado, o setor capitalista da pesca não consegue se sustentar sem o volume de subsídios que recebe dos estados-nação e, pelos dados de sobrepesca apresentados, não conseguirá se sustentar como atividade de produção, pois sua racionalidade, que é puramente econômica, tem extrapolado os limites de uso da natureza.

33 Esse é um exemplo limite de fetichização da mercadoria, neste caso, do pescado. O valor de EU$ 1,58 milhão representa cerca de R$ 3,58 milhões, ou 5.280 salários-mínimos a preços de mar/2013 no Brasil. Considerando que o rendimento médio mensal dos pescadores artesanais do estuário da Lagoa dos Patos, situa-se entre um e dois salários-mínimos (média de 1,5) e que os trabalhadores citados praticam sua atividade por 35 anos (em média), esse único exemplar de peixe vendido no leilão de Tóquio equivale ao rendimento de 8,4 vidas de trabalho dedicadas à pesca artesanal na região deste estudo.

A Tabela 03 apresenta o número de pescadores por continente, considerando os embarcados na frota industrial e os pescadores artesanais conjuntamente. A maior parte dos pescadores (85,5%, em 2008) vive no continente asiático, onde os pescadores artesanais constituem ampla maioria.

TABELA 03. Número de pescadores por continente (1.000) e os anos selecionados

2000 2005 2008

África 3.657 3.683 4.187

Ásia 35.242 36.860 38.440

Europa 746 662 641

América Latina e Caribe 1.250 1.271 1.287

América do Norte 343 338 337

Oceania 49 54 56

Total mundial 41.287 42.868 44.946

Fonte: Adaptado de FAO (2010)

Nos últimos anos tem ocorrido um aumento na oferta de empregos no setor pesqueiro industrial como um todo nos países mais pobres, enquanto nos desenvolvidos existe uma tendência oposta, devido à crescente mecanização, ao aumento no uso de tecnologias de ponta (ampliação do trabalho morto) e à consequente redução nas capturas. Segundo dados da FAO (2009), em 2006, o número estimado de pescadores embarcados na pesca industrial de países desenvolvidos era de 860 mil, o que representa uma diminuição de 24% em relação a 1990.

Na Noruega, por exemplo, o emprego no setor pesqueiro diminuiu nos últimos anos. Em 1990 aproximadamente 27.500 pessoas trabalhavam na pesca marinha, mas em 2008 esta cifra havia se reduzido em 53%, para 12.900 pessoas. No Japão o número de pescadores na pesca marinha diminuiu de 549.000, em 1970, para 370.600, em 1990 e continuou caindo até alcançar um mínimo de 200.000 pessoas em 2008. (FAO, 2009, p. 31).

O excerto do texto redigido pela FAO (2010) demonstra exemplos da diminuição da oferta de emprego para pescadores embarcados no setor industrial da pesca em países desenvolvidos, o que representa bem a situação de crise que envolve o setor, pelo menos para os trabalhadores que servem ao sistema vigente. O capital tem as condições para fugir desta crise, pela mobilidade que possui, seja mudando sua estrutura produtiva para outros países que ‘ainda’ possuem em suas águas cardumes para serem

pescados ou, até mesmo, migrando para outra atividade, investindo em segmentos produtivos mais lucrativos, sendo que, para o capital, a cultura existente é a do lucro, sem importar os laços formados. Fatos ocorridos na pesca e que vêm a corroborar o alto poder de adaptação que possui o sistema do capital, conforme salienta Mészáros (2003). De acordo com as informações apresentadas pela FAO (2010), apesar da ocorrência da sobrepesca e do consequente declínio das capturas mundiais, as trocas comerciais envolvendo produtos da pesca entre os países se ampliaram em 50% entre 1998 e 2008, representando, atualmente, cerca de 10% das exportações agrícolas e 1% do valor total do comércio internacional de mercadorias (FAO, 2010). Ou seja, a pesca é uma atividade que se mantém, à custa da sobre-exploração da natureza e da desconsideração da reprodução social de seus trabalhadores.

Uma possível extinção das espécies de pescado não representa somente um problema ambiental, mas também social. Em geral e equivocadamente, os pescadores aparecem no cenário como culpados pelo problema da sobre-exploração pesqueira, uma vez que a sua produção é a fonte de seus rendimentos e a sobreprodução (o excedente) não fica com o trabalhador/pescador, mas com o proprietário dos meios de produção da pesca, principalmente no caso da pesca industrial. Na modalidade artesanal, as relações de produção se dão muito mais diretamente dentro das necessidades de consumo do trabalhador/pescador, e o excedente de sua pesca, na verdade, não é uma “mais-valia especial”, mas aquilo que tomará como valor de uso nos produtos que vai trocar pelo pescado capturado.

No entanto, as magnitudes dos volumes pescados pelos pescadores artesanais e industriais, assim como os efeitos sobre a natureza de cada uma dessas modalidades de pescaria, no curto, médio e longo prazos, precisam ser confrontadas e problematizadas. Isso porque existem grandes diferenças quanto à magnitude das capturas mundiais de pescado, pois, como já comentado, 1% (apenas) das embarcações de grande porte pertencentes à pesca industrial capitalista, é responsável por 50% do total capturado (FAO, 2009). Por outro lado, 60% das embarcações existentes no mundo são tão pequenas que não possuem qualquer espécie de abrigo para o pescador; trata-se de embarcações que permitem apenas a pesca em águas próximas de onde vivem os pescadores, considerados como artesanais (REVISTAGEO, 2009).

Segundo a FAO (2010), a pesca artesanal é responsável por mais da metade das capturas mundiais de pescado (marinhas e continentais), servindo, em sua maioria, para o consumo humano direto. Envolvem-se com a pesca artesanal 90% do total de

pescadores que atuam na captura ao redor do mundo, e essa modalidade de pesca mantém outros 84 milhões de pessoas empregadas indiretamente (elaboração, comercialização e distribuição). A ampla maioria desses pescadores (artesanais) vive em países em desenvolvimento onde as desigualdades sociais são mais fortemente sentidas, a pobreza é latente e a fome, muitas vezes, amenizada justamente com a pesca.

Dentre as 2,1 milhões de embarcações motorizadas no mundo, apenas 23 mil pertencem à frota industrial, número que sinaliza a realização da atividade pesqueira por um grande contingente de trabalhadores da pesca artesanal (REVISTAGEO, 2009).

Procuramos apresentar nesta seção, com a investigação realizada, fatos que indicaram a grande concentração da produção pesqueira e da renda da pesca nas mãos de poucos, daqueles que não participam das lidas da pesca, mas apenas das lidas do capital.

Apesar dos benefícios econômicos, sociais e nutricionais da pesca, é possível percebermos que está estabelecida uma espécie de ‘corrida do ouro’ ou, adequando a expressão ao nosso tema, está estabelecida a ‘corrida do peixe’ e, conforme tratado nesta seção – somado já à problematização da situação dos estoques e da ganância instituída pelo sistema capitalista/industrial pesqueiro –, podemos afirmar que se trata da ‘corrida para o ÚLTIMO peixe’.