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Danos irreversíveis ou de difícil reparação: a necessidade de medidas

riscos decorrentes das atividades biotecnológicas.

A questão que mais tem gerado discussões, quando se está a tratar do âmbito de aplicação do princípio da precaução, é a de se equilibrarem o controle e os parâmetros a serem adotados quanto às novas experiências científicas, notadamente aquelas que possam envolver seres humanos, para que seja evitado ou ao menos diminuído o potencial risco nelas envolvido. O dilema surge exatamente no momento de avaliar se os benefícios obtidos com determinado experimento serão, de fato, significativos e seguros a ponto de justificarem eventuais riscos para a saúde humana. Pode-se dizer, inclusive, que um dos pontos fulcrais a serem discutidos quanto à construção do chamado princípio da precaução, acima já detalhado, reside nesta relação “risco-benefício”82.

Inicialmente, deve-se ressaltar, toda ação que possa, de maneira direta ou indireta, atingir a saúde humana, individual ou coletiva, traz em si certos riscos, mesmo quando o fim seja o bem-estar social. Ora, o complexo das atividades da vida moderna sempre provoca a todos uma certa dose de riscos que devem ser tolerados. Dirigir veículos, caminhar em meio ao trânsito, submeter-se a certas

81 Cf. Capítulo 4 O Princípio da Precaução como fundamento na delimitação da responsabilidade em

biossegurança.

82 Nos termos da Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), risco significa a

“possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente”. Para o Conselho Nacional de Saúde, toda pesquisa envolvendo seres humanos implica em risco. Não obstante, considerando-se a relação risco- benefício de uma pesquisa, esta sempre será admitida quando: a) oferecer elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender, prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indivíduos; b) o risco se justifique pela importância do benefício esperado; c) o benefício seja maior ou, no mínimo, igual a outras alternativas já estabelecidas para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, op. cit., on line.

intervenções cirúrgicas ou praticar esportes são exemplos de atividades comumente praticadas, mas que não deixam de ser arriscadas. No entanto, são elas social e juridicamente permitidas porque fazem parte da dinâmica social moderna. Diz-se que a utilidade proporcionada por tais ações impõe uma certa dose de tolerância aos riscos delas decorrentes. Portanto, a vida humana está naturalmente cercada por riscos.

Dessa forma, deve-se considerar um tanto pretensiosa a intenção por alguns sugerida de se atingir um “risco zero” em toda e qualquer atividade científica envolvendo seres humanos. Além do mais, pensar dessa maneira poderia, inclusive, inviabilizar o desenvolvimento de determinadas pesquisas, atravancando o progresso científico, o que poderia gerar males maiores do que aqueles que se pretende evitar. Portanto, ao contrário do que muitos pensam, não é esta a finalidade a que se destina o princípio da precaução.

Por outro lado, tal constatação não impede que determinados critérios e parâmetros éticos, científicos e jurídicos sejam elaborados e adotados para se evitar que certos experimentos sejam aplicados sem que haja um mínimo de segurança e certeza quanto aos benefícios a serem atingidos e os prejuízos a serem evitados, por mais úteis que venham a ser os resultados pretendidos. Esse é o verdadeiro dilema a ser enfrentado por todos aqueles envolvidos ética, social, legal e politicamente com as pesquisas e atividades de engenharia genética; é justamente, a base para o entendimento do que venha a ser o princípio da precaução e, o mais importante, para se definir o seu âmbito de validade e aplicação prática, servindo como uma forma de se eliminarem ou diminuírem ao máximo os riscos e as ameaças de danos, sem que haja restrição ao surgimento de inovações científicas.

De qualquer forma, torna-se importante ter a noção de que o risco, embora inerente à vida em sociedade, sempre traz em si a representação de algo nocivo, danoso e, dessa forma, prejudicial, podendo tanto ser decorrência de eventos naturais como de atividades humanas, intencionais ou não. E, embora muitos desses sejam toleráveis, como acima mencionado, há aqueles que, evidentemente, são inaceitáveis. Sendo assim, todo e qualquer esforço para evitá- los deve ser privilegiado e buscado. E é justamente isto que, como já se afirmou anteriormente, tem por finalidade o princípio da precaução.

Além do mais, deve-se ressaltar, tal princípio tem por finalidade, precipuamente, a precaução que se deve ter com atividades capazes de gerar riscos que possuam a natureza da irreversibilidade, ou seja, não deverá ser aplicado de forma indiscriminada e desprovida de critérios, tendo em vista que sua aplicação deverá estar voltada tão somente para aqueles casos em que se identifica a possibilidade de ocorrência de danos de difícil reparação. Caso contrário, correr-se-ia o risco de banalização deste e, assim, suas finalidades agiriam inversamente, causando ainda mais prejuízos para a sociedade. Ora, poderia ocorrer que, ante o excesso de medidas de precaução, em hipóteses em que os riscos seriam mínimos ou irrelevantes, determinadas atividades imprescindíveis para o desenvolvimento científico e tecnológico viessem a ser inviabilizadas, contribuindo, dessa forma, para a exacerbação dos males causados, eventualmente, a uma grande coletividade.

Nesse ponto, parece necessário reproduzir a distinção, tarefa esta já implementada pela doutrina e jurisprudência, entre o princípio da precaução e o princípio da prevenção. Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado faz a seguinte diferenciação:

Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção83.

No mesmo sentido está a distinção trazida por Joel Tickner e Carolyn Raffensperger, ao afirmarem que se há a certeza sobre causa e efeito, como é o caso do efeito do chumbo na saúde das crianças, então a ação não é mais de precaução, ainda que esta possa ser preventiva. Isso porque o princípio da precaução, em sua essência, deverá ser aplicado apenas naqueles casos em que não existe uma “certeza científica” sobre determinada prática ou atividade ou mesmo naqueles casos em que existem pesquisas ou estudos científicos ainda em andamento84.

Alexandre Kiss, utiliza-se de outro critério para esta diferenciação. Segundo este autor, o princípio da precaução distingue-se do princípio da prevenção

83 MACHADO, P. A. L., op. cit., p. 72.

84 TICKNER, Joel; RAFFENSPERGER, Carolyn. The precautionary principle in action: a

quanto à avaliação do risco que ameaça o meio ambiente, uma vez que a precaução deverá ser considerada sempre que o risco for significantemente elevado,

[...] tão elevado que a total certeza científica não deve ser exigida antes de se adotar uma ação corretiva, devendo ser aplicado naqueles casos em que qualquer atividade possa resultar em danos duradouros ou irreversíveis ao meio ambiente, assim como naqueles casos em que o benefício derivado da atividade é completamente desproporcional ao impacto negativo que essa atividade pode causar ao meio ambiente85.

E, considerando-se que a questão relacionada à existência ou não de certeza científica torna-se imprescindível não só para o delineamento do princípio da precaução, mas ainda para a distinção existente entre esse e o também relevante princípio da prevenção, passar-se-á, finalmente, à análise deste elemento, sem o qual não será possível identificarem-se com clareza as hipóteses de sua adoção, especialmente no que se refere às atividades biotecnológicas.

2.6 A aplicação do Princípio da Precaução ante a ausência de uma necessária