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3.3 Princípio da Precaução: um princípio biojurídico

3.3.2 O Princípio da Precaução e a ordem jurídico-constitucional

O ordenamento constitucional, considerando a existência de diversas atividades humanas, em sua constante relação com o meio ambiente, capazes de trazerem riscos para a vida humana, fauna e flora, relega ao Poder Público considerável parcela de responsabilidade para a sua proteção.

Assim, prevê direitos, garantias e princípios imprescindíveis à proteção da vida e do meio ambiente, sendo possível verificar que esta considera de imperiosa relevância a adoção de medidas protetivas e de caráter preventivo, especialmente quando há uma potencial irreversibilidade do danos gerados com a prática de atividades perigosas.

Nesse sentido, norma expressa contida no texto constitucional determina como incumbência ao Poder Público a adoção de medidas para o controle da produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem

risco à manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial a uma sadia qualidade de vida132.

O que se nota é que a preocupação do legislador constitucional não foi apenas no sentido de conservar a vida humana, mas garantir a todos o direito a uma efetiva “qualidade de vida”. Isso significa dizer que não basta que se evitem doenças possíveis de serem diagnosticadas no presente, sendo essencial a manutenção de um meio ambiente equilibrado, com todos os seus elementos (águas, solo, flora, fauna, etc.) em estado de sanidade e com o acesso seguro a todos133.

E, por essa razão, uma vez que na atualidade diversas são as atividades capazes de ameaçarem esses ideais, em decorrência do avanço da biotecnologia, não se deve relegar o controle dos riscos que destas decorrem. E se estes existirem a ponto de ameaçarem os referidos valores constitucionais protegidos, medidas deverão ser tomadas, mesmo que nestes casos existam incertezas científicas quanto à relação de causa e efeito destas.

Isso demonstra de maneira indubitável a necessidade e importância de se adotar o Princípio da Precaução, porque se uma determinada atividade passa a gerar riscos ao meio ambiente e, conseqüentemente, à saúde das pessoas, ameaçando a qualidade de vida em sociedade, medidas devem ser tomadas no sentido de se minimizarem os seus efeitos. Eventuais imprecisões científicas no momento de se determinar a relação entre estes não poderão ser usadas como argumento para se postergarem tais medidas, sob pena de que tais riscos concretizem-se em danos irreversíveis.

Essa responsabilidade, como claramente resta demonstrado no texto da própria Constituição, é incumbência do Poder Público, o que significa que, em

132 Segundo o § 1.º, V, do art. 225, CF: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. [...] § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente [...]”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição

da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em: 12 fev. 2007.

133 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed., rev., atual. e ampl. São

caso de omissão deste, poderá ser caracterizada, inclusive, a violação aos princípios da Administração Pública, como bem ressalta Machado134.

Dessa forma, evidenciada a possibilidade de riscos irreversíveis à saúde humana e ao meio ambiente, a inércia em se adotarem medidas de precaução atingirão diretamente a moralidade e a legalidade administrativas, cujo exercício não está submetido à conveniência e livre escolha da autoridade administrativa.

Além disso, caso haja projetos, licenciamentos, estudos prévios que tratem de atividades capazes de colocarem em risco os valores acima referidos, estes deverão ser submetidos ao conhecimento do público para que setores interessados possam participar das decisões a serem tomadas135. Em caso

contrário, fica evidentemente violada a observância aos princípios da publicidade e impessoalidade, tendo em vista que os atos da administração devem sempre atender a um caráter educativo, informativo ou de orientação social, visando, ainda, garantir a participação pública na administração de forma ampla e irrestrita, sob pena de não se permitir a sua devida fiscalização.

Por fim, contraria o princípio da eficiência administrativa a omissão por parte do Estado ao deixar de buscar medidas de precaução, permitindo que se coloquem em risco a saúde das pessoas e o equilíbrio ambiental, tornando-se, com isso, co-responsável pelos eventuais danos que possam deles advir136.

A observância de todos estes princípios, evidentemente, não é uma opção, uma faculdade do administrador público, mas um dever imposto pelo cargo público que lhe confere competência para a prática dos atos administrativos, de acordo com a atribuição que lhe é dada pela lei para o exercício de sua função pública.

134 MACHADO, P. A. L., op. cit., p. 75-76. Dessa forma, afirma em complementação que “o princípio

da precaução, abraçado pelo Brasil com a adesão, ratificação e promulgação das Convenções Internacionais mencionadas [Convenção da Diversidade Biológica e Convenção-Quadro das Nações

Unidas sobre Mudança do Clima], com a adoção do art. 225 da CF e com o advento do art. 54, § 3.º,

da Lei 9.605, de 12.2.1998, deverá ser implementado pela Administração Pública, no cumprimento dos princípios expostos no art. 37, caput, da CF.”

135 Ibid., p. 76.

136 Segundo François Ewald, “os governos encarregam-se de organizar a repartição de carga dos

riscos tecnológicos, tanto no espaço como no tempo. Numa sociedade moderna, o Estado será julgado pela sua capacidade de gerir riscos.” EWALD, François et al. apud, MACHADO, P A. L., op. cit., p. 76.

Importante, ainda, salientar que a Administração sempre deverá agir com a observância não apenas da lei formal, mas caber-lhe-á observância do ordenamento jurídico como um todo (sob o prisma constitucional, em especial), o que implica a observância de todos os demais princípios que o compõem. E, nesse caso, evidentemente, não poderia ser diferente com o Princípio da Precaução.

Por fim, não se deve olvidar a importantíssima consagração dada pela Constituição Federal ao chamado princípio da dignidade da pessoa humana, considerando este como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil137.

Além do mais, essencial a sua observância como um dos principais instrumentos que servirão de baliza aos demais princípios e direitos necessários à garantia de uma sadia e harmônica qualidade de vida.

De fato, o avanço científico, conforme tem-se alertado no presente trabalho, muito embora tenha como finalidade a busca pelo bem estar da sociedade, visando o desenvolvimento de técnicas e procedimentos terapêuticos inovadores, especialmente no campo genético, traz consigo riscos ainda desconhecidos, cujos resultados ainda trazem muitas incertezas e insegurança quanto aos reais efeitos para a saúde humana, a fauna e a flora, bem como as inter-relações existentes entre este e todo o meio ambiente.

Em muitos casos, a simples condução de uma pesquisa científica coloca em conflito valores e conceitos antes considerados invioláveis pela sociedade, como nos casos de pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias ou discussões em torno da possibilidade de clonagem, mesmo para fins terapêuticos.

Todas essas questões trazem a possibilidade de violação da dignidade humana, sendo necessárias medidas de precaução na análise das atividades que a ameacem, sobretudo por se considerar ainda incertos os reais riscos que lhe podem ocasionar.

Ao se ignorarem as ameaças de danos de certas atividades, privilegiando-se o desenvolvimento científico a qualquer custo, incorre-se no risco de se submeter o ser humano a um abominável processo de “coisificação”, objeto de

137 Art. 1º, III, CF, in verbis: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos

Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”.

meras especulações científicas, gerando-se graves e irreversíveis prejuízos às futuras gerações, traçando-lhe um caminho rumo ao indesejável limite da desumanização138.

E é por essa razão, que quando a falta de certeza científica implicar na possibilidade de riscos aos seres humanos, ferindo-se de forma direta a sua dignidade, determinadas medidas de precaução necessitarão ser tomadas, sobretudo quando houver a possibilidade de irreversibilidade de suas conseqüências.

Por tudo isso que afirmamos, o Princípio da Precaução assume um relevante papel na atualidade, uma vez que se garantirá à toda sociedade a imprescindível qualidade de vida, bem como o respeito à dignidade humana, especialmente quando as medidas necessárias à sua observância tocarem ao Estado que, conforme é do conhecimento de todos, tem por dever garantir sejam cumpridas com a máxima eficácia, observando-se as emanações principiológicas decorrentes da ordem jurídico-constitucional.