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Uma das dificuldades em se delinearem os contornos do princípio da precaução está, justamente, na variedade de conceitos e definições a seu respeito, nas diversas legislações e declarações internacionais. Tal circunstância deixa evidente, de início, que a definição do princípio da precaução ainda se encontra em processo de construção, o que torna ainda mais relevante, porém não menos dificultoso, o trabalho de pesquisa e investigação a seu respeito.

Uma das primeiras menções ao princípio da precaução pode ser encontrada no sempre vanguardista Direito Alemão. Ali, denominado

69 Cf., no Capítulo 3, a subseção 3.1 A necessidade do resgate da perspectiva ético-científica no

Vorsorgeprinzip, já no ano de 1970, surgiu pela primeira vez no bojo de um projeto de lei para assegurar a qualidade do ar, cuja implementação só veio a se dar quando da aprovação desta, no Ato de Poluição do Ar de 1974. A idéia então disseminada sobre tal princípio implicava em se evitarem os danos ambientais a partir de prévios e zelosos planejamentos que diminuíssem as atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental, ao lado de outros princípios como o da cooperação e o do poluidor-pagador70. Expressamente, a legislação

alemã acima citada estipulava que o responsável técnico por determinadas atividades seria obrigado a tomar medidas de precaução para evitar um possível dano ao meio ambiente, utilizando-se de determinados procedimentos para se limitar a emissão de gazes poluentes71.

Todavia, essa interpretação dada pelo direito alemão é apenas uma das muitas existentes acerca deste princípio, uma vez que este passou a ser invocado por diversos documentos internacionais que buscavam controlar atividades classificadas como potencialmente causadoras de graves danos ambientais, sobretudo naqueles casos em que não haveria uma posição definida e pacificada, de caráter científico, acerca da real vinculação entre essas atividades e os danos que delas se pudessem presumir.

Sendo assim, uma tentativa de delineamento de seu conceito foi dada pela denominada Declaração de Londres, elaborada por ocasião da realização da Segunda Conferência Internacional sobre a Proteção do Mar do Norte (Second International Conference on the Protection of North Sea), em novembro de 1987. Visando-se proteger a água do mar no hemisfério norte da poluição causada pelo lançamento de substâncias tóxicas, considerava-se necessária a adoção de determinadas medidas de precaução que pudessem propiciar o controle da emissão destas substâncias mesmo antes de se definir com critérios absolutamente científicos serem estas a causa dos males produzidos72.

70 MACHADO, P. A. L., op. cit., p. 62.

71 HEY, E. The precautionary concept in environmental policy and law: institutionalizing caution. In: Georgetown International Environmental Law Review, Washington, n. 4., 1992, p. 308 apud

CEZAR, Frederico Gonçalves; ABRANTES, Paulo César Coelho. Princípio da Precaução: considerações epistemológicas sobre o princípio e sua relação com o processo de análise de risco.

Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, DF, v. 20, n. 2, p. 225-262, maio/ago., 2003.

72 DECLARAÇÃO. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON THE PROTECTION OF NORTH SEA, 2nd,

Londres, nov. 1987. Disponível em: <http://www.demokratitorget.gov.se/content/1/c6/05/78/43/4ffaa7cc.pdf..> Acesso em: 24 ago. 2004.

Posteriormente, no ano de 1992, foi realizada no Rio de Janeiro a ECO 92, organizada pelas Nações Unidas, quando então nova definição foi dada ao princípio da precaução. Segundo a declaração ali formulada, o princípio da precaução seria uma forma de garantia contra eventuais danos que, de acordo com o nível atual de conhecimento, ainda não podem ser completamente identificados. Assim, segundo o princípio 15 da chamada Declaração do Rio:

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental73.

Verifica-se que a Declaração do Rio foi bem mais direta na utilização de expressões como “precaução”, “danos sérios ou irreversíveis”, “ausência de absoluta certeza científica”, “medidas eficazes e economicamente viáveis”, dando ao princípio da precaução um significado mais específico e criando os meios necessários para a tomada de decisões quando identificados esses elementos em um determinado caso concreto.

Uma outra definição a respeito foi formulada no ano de 1998, com a participação de um grupo multidisciplinar formado por cientistas, juristas e ambientalistas que ficou conhecida como Declaração de Wingspread74. Segundo esta declaração, praticamente um misto das duas anteriores, quando uma determinada atividade representa ameaça de danos ao meio-ambiente ou à saúde humana, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo se algumas relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente75.

73 NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio sobre ambiente e desenvolvimento. Estudos Avançados, São

Paulo, v. 6, n. 15, 1992. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40141992000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 set. 2006.

74 Em homenagem à sede da Johnson Foundation, local de realização de referida reunião, em

Racine, estado de Winsconsin, Estados Unidos.

75 A Declaração de Wingspread, dentre outros aspectos, afirma que, embora se tenha certeza de que “as

atividades humanas podem implicar em riscos, deve-se proceder com maiores cuidados do que se vem fazendo na história recente. Empresas, órgãos de governo, cientistas e outros indivíduos devem adotar uma abordagem de precaução em todos os empreendimentos humanos. Portanto, faz-se necessário implantar o princípio da precaução quando uma atividade representa ameaças de danos à saúde humana ou ao meio ambiente e medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo se as relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente”. THE SCIENCE AND ENVIROMENTAL HEALTH NETWORK. The precautionary principle. A common sense way to protect Public Health and the Environment. Disponível em: <http://www.sehn.org/ppfaqs.html.>. Acesso em: 23 jan. 2005.

No ano de 2000, a União Européia (UE) também apresentou uma declaração onde buscou traçar a sua concepção acerca do referido princípio, entendendo que a sua aplicação deverá incidir sempre que se constatar uma insuficiente, incerta e não conclusiva evidência de valor científico acerca dos potenciais riscos que poderão ser dirigidos à saúde humana, animal ou vegetal de acordo com determinado padrão adotado pela própria UE76.

Finalmente, temos a definição francesa para o princípio da precaução que não apenas deu-lhe roupagem própria como ainda o inseriu em seu rol de direitos constitucionais, colocando-o, juntamente com outros princípios relacionados ao meio ambiente, no mesmo patamar dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Assim, de acordo com o art. 5.º da Carta do Meio Ambiente (Charte de L’ Environnement), aprovada pelo congresso francês em 28 de fevereiro de 2005:

[...] quando a ocorrência de um dano, ainda que incerto em razão do estado atual dos conhecimentos científicos, possa afetar de maneira grave e irreversível o meio ambiente, as autoridades públicas providenciarão, através da aplicação do princípio da precaução e nas áreas de suas atribuições, a implementação de procedimentos de avaliação de riscos e a adoção de medidas provisórias e proporcionais com a finalidade de evitar a ocorrência do dano77.

Da análise de tais definições, percebe-se que, apesar da diversidade de entendimentos, certos elementos comuns podem ser identificados, de maneira a se ter uma idéia bastante clara sobre o âmbito de incidência, bem como as linhas gerais de aplicação do princípio da precaução.

Dessa forma, pode-se dizer que o princípio da precaução deverá ser observado sempre que presentes os seguintes parâmetros: a) aplica-se naqueles casos em que exista uma considerável incerteza científica acerca das causas, extensão e natureza dos riscos decorrentes de atividades que atentem contra o meio ambiente e a saúde humana, bem como sobre as relações de causalidade entre estas e as medidas a serem adotadas para sua solução; b) sua aplicação fica

76 Cf. em UNESCO. The precautionary principle. World Comission on the Ethics of Scientific

Knowledge and Technology (COMEST). Paris: Unesco, 2005.

77 Article 5 – “Lorsque la réalisation d'un dommage, bien qu'incertaine en l'état des connaissances

scientifiques, pourrait affecter de manière grave et irréversible l'environnement, les autorités publiques veillent, par application du principe de précaution et dans leurs domaines d'attributions, à la mise en oeuvre de procédures d'évaluation des risques et à l'adoption de mesures provisoires et proportionnées afin de parer à la réalisation du dommage”. Cf. FRANÇA. Charte de L’

Environnement. 2004. Disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/html/constitution/const03.htm.>.

limitada, no entanto, àqueles casos em que os danos previstos possuam um alto grau de gravidade ou irreversibilidade, porque dirigidos à vida e saúde humanas, tendo-se em vista os interesses da atual sociedade ou futuras gerações; c) quaisquer intervenções embasadas no princípio da precaução deverão ser adotadas, evidentemente, antes que eventuais danos ocorram; todavia, deverão ser proporcionais ao nível de proteção exigido pelo bem em risco e adequadas à extensão do eventual dano78.

Com tais contornos, parece um tanto mais clara a noção de quão útil pode ser a aplicação de tal princípio, sobretudo quando direcionado às novas tecnologias que tanto tem gerado discussões nos últimos anos. Além disso, considerando-se as críticas que muitos têm lhe dirigido, afirmando falsamente que sua implantação seria prejudicial ao desenvolvimento científico e econômico79, através de tais parâmetros podemos afirmar, com certa tranqüilidade, aquilo que ele claramente não é, sobretudo considerando que ao invés de prejuízos, a implementação do princípio da precaução poderá, na verdade, impulsionar o avanço tecnológico80.

Sendo assim, de bom alvitre ter-se em mente que o aspecto mais preocupante no que se refere à utilização desse princípio está em concebê-lo como ferramenta de harmonização e controle de riscos sem que isso venha a gerar

78 Com base em todas as variantes acima expostas, a Comissão Mundial sobre Ética do

Conhecimento Científico e Tecnológico (World Comission on the Ethics of Scientifics Knowledge and

Technology – COMEST), estabelecida em razão do Programa de Ética da Ciência e Tecnologia da

Unesco, visando também elaborar um conceito para o princípio da precaução, reuniu um grupo de especialistas para que pudessem viabilizar uma versão própria e com isso determinar as suas possíveis aplicações, enfatizando, no entanto, uma abordagem ética a respeito. O resultado desta definição não difere muito da apresentada acima, porém deixa claro o conteúdo moral desta: “Quando atividades humanas conduzirem a danos moralmente inaceitáveis que são cientificamente plausíveis mas incertos, determinadas ações deverão ser tomadas para evitarem ou diminuírem esses danos. Por danos moralmente inaceitáveis entende-se aqueles danos causados em humanos e ao meio ambiente que: a) ameacem a vida ou a saúde humana; b) sejam sérios e efetivamente irreversíveis; b) atinjam injustamente as atuais e futuras gerações; c) sejam impostos em desconsideração aos direitos humanos dos envolvidos”. Cf. UNESCO, op. cit., on-line.

79 Em dezembro de 2003 a Câmara dos Deputados promoveu uma audiência pública para se debater

sobre o então projeto de Lei de Biossegurança, ocasião em que pronunciando-se a respeito do tema, o Sr. Almir Rebelo, representando na época a ONG Amigos da Terra, fez a seguinte afirmativa: “Faz 5 anos que ouvimos falar sobre a impossibilidade do plantio de transgênicos no Brasil, em observância ao princípio de precaução. Mas hoje está aí novamente o famigerado princípio de precaução querendo mais 5 anos. Isso não é precaução, mas estratégia truculenta para impedir o desenvolvimento brasileiro. E os produtores sabem disso.” BRASIL. Câmara dos Deputados. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Núcleo de Redação Final em Comissões.

Discussão sobre projeto de biossegurança. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. Disponível

em: <http://www2.camara.gov.br/comissoes/capadr/notastaq/nt09122003a.pdf.>. Acesso em: 15 dez. 2006.

obstáculos ao desenvolvimento de novas tecnologias, como aquelas que lidam com o código genético humano. Tendo-se em vista que são estas as formas de tecnologia que mais têm gerado insegurança, bem como dúvidas e incertezas em toda sociedade global, dever-se-á, em momento oportuno, analisar com mais especificidade a sua aplicação conforme acima sugerido, oportunidade em que então se analisarão as controvérsias relacionadas a seu estatuto jurídico81.

2.5 Danos irreversíveis ou de difícil reparação: a necessidade de medidas