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3.3 Princípio da Precaução: um princípio biojurídico

3.3.1 O estatuto jurídico do Princípio da Precaução

As primeiras menções ao Princípio da Precaução, conforme anteriormente visto, não possibilitaram, inicialmente, a sua caracterização como regra jurídica, uma vez que consagrado em documentos internacionais que nem sempre traziam o condão de obrigar os seus signatários, nem tampouco se irradiar de maneira efetiva sobre as legislações nacionais.

Todavia, após décadas de profundas reformulações, o Princípio da Precaução vem sendo inserido e adotado progressivamente, no âmbito internacional, como regra de direito costumeiro, sendo necessário verificar-se de que maneira tem se incorporado em textos de alcance normativo com capacidade para obrigar seus destinatários, especialmente no cenário nacional.

124 Para Bobbio, “os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou

generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas. Pra mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras.” BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento

jurídico. 10.ed. Tradução de Maria Celeste C. Leite dos Santos. Brasília, DF: Ed. UNB, 1999. p. 158. 125 Isso ocorre, de fato, porque em muitos casos a menção ao princípio é feita de forma vaga e

genérica em algumas declarações (as chamadas soft law ou soft norm), valendo como meras recomendações para comportamentos éticos dos Estados ou como código de conduta em determinadas atividades por eles praticadas e capazes de afetar o meio ambiente e a saúde pública. Cf. nota n.º 7 do Capítulo 2.

Nesse sentido, o que se tem apontado, no entanto, ao analisarem-se as declarações e convenções internacionais126 em que sua

menção é expressa, ora como princípio, ora como “abordagem de precaução”, é uma certa ausência de aplicabilidade imediata. Por vezes sua menção surge tão somente no preâmbulo destes documentos, servindo, desta maneira, como mera “inspiração” para obrigações jurídicas entre os seus signatários.

Por outro lado, alguns doutrinadores têm afirmado que referido princípio está revestido de um caráter de regra internacional costumeira. Porém, tal tese choca-se com o entendimento de algumas instâncias jurisdicionais internacionais que relutam em reconhecer esse status ao Princípio da Precaução127.

Deve-se reconhecer, no entanto, que a sua reiterada previsão em dezenas de protocolos, declarações e convenções internacionais, em diferentes áreas relativas à proteção ambiental, demonstra a sua vocação para que em um lapso curto de tempo passe a se constituir em princípio de direito consuetudinário, desde que constatada a sua adoção constante, imutável e efetiva, em um nível universal e regional, por parte dos Estados, ao verificar-se determinadas condutas capazes de ameaçar o equilíbrio ambiental e a saúde humana128.

Ainda no plano internacional, pode-se questionar se o Princípio da Precaução enquadrar-se-ia dentre os chamados princípios gerais de direito das nações civilizadas, passíveis de serem aplicados pela Corte

126 Cf. SADELEER, Nicolas de. O Princípio da Precaução no Direito Internacional. In: VARELLA, Marcelo

Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 47- 74. (Direito ambiental em debate). Dentre estas, a Convenção de Londres, de 30 de novembro de 1990, sobre a preparação, a luta e a cooperação contra à poluição por hidrocarburetos; a Convenção de Paris, de 22 de setembro de 1992, sobre a proteção do ambiente marinho do Atlântico; a Convenção de Helsinque, de 17 de março de 1992, sobre a proteção e utilização de cursos de água transfronteiriços e de lagos internacionais; a Convenção de Helsinque, de 2 de abril de 1992, sobre a proteção do meio marinho, na zona do Mar Báltico; a Convenção de Cheleville-Mezière, de 26 de abril de 1994, sobre a proteção do rio Escaut e do rio Meuse; a Convenção de Sofia, de 19 de junho de 1994, sobre a Cooperação para a Proteção Sustentável do rio Danúbio; o Protocolo de Barcelona, de 10 de junho de 1995, na Convenção de Barcelona de 1976, sobre as zonas especialmente protegidas e a diversidade biológica, no Mediterrâneo; a Convenção de Roterdã, de 22 de janeiro de 1998, sobre a Proteção do Rio Reno.

127 Ibid., p. 58. 128 Ibid., p. 59.

Internacional de Justiça, além de convenções e costumes internacionais, conforme normas previstas em seu Estatuto129.

Se for esse o caso, conforme adverte Sadeleer, as vantagens são muito maiores do que seriam se identificado com os princípios de direito consuetudinário, pois os princípios gerais poderão ser invocados pelo juiz internacional mesmo quando faltar a sua prática reiterada pelos Estados, possibilitando-se com isso que mesmo princípios já adormecidos ressurjam em alguma de suas decisões ou que princípios recém criados possam florescer e serem alçados à categoria de princípios gerais130.

O Brasil é signatário de duas convenções internacionais131 que

trazem em seu texto, embora com conceituação diversa, o Princípio da Precaução. Apesar disso, apontam a mesma finalidade para a sua adoção, ou seja, evitar ou minimizar a possibilidade de danos ao meio ambiente e, conseqüentemente, à saúde humana. De qualquer forma, uma vez ratificadas pelo Congresso Nacional, passando a vigorar para o Brasil desde então, tem-se como certa a sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, podendo-se afirmar, como outros Estados o fazem,

129 Referimo-nos, aqui, ao art. 38, 1, alínea “c”, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, que diz:

“1) A Corte, cuja função seja decidir conforme o direito internacional as controvérsias que sejam submetidas, deverá aplicar: a) as convenções internacionais, sejam gerais ou particulares, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b). o costume internacional como prova de uma prática geralmente aceita como direito; c) os princípios gerais do

direito reconhecidos pelas nações civilizadas; d) as decisões judiciais e as doutrinas dos

publicitários de maior competência das diversas nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito, sem prejuízo do disposto no Artigo 59. 2. A presente disposição não restringe a faculdade da Corte para decidir um litígio ex aequo et bono, se convier às partes”. Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Estatuto da corte internacional de justiça. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/upload/arquivos/ji_cortes_internacionais/cij- estat._corte_intern._just.pdf>. Acesso em: 28 mai. 2007.

130 SADELEER, N., op. cit., p. 58.

131 A primeira destas, denominada Convenção da Diversidade Biológica, foi assinada pelo Governo

brasileiro, no Rio de Janeiro, em 05 de junho de 1992 e foi aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n.º 02, em 03 de fevereiro de 1994, passando a vigorar a partir de 29 de maio deste mesmo ano. Foi posteriormente promulgada pelo Decreto n.º 2.519/98. Diz, em seu preâmbulo, que “quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medias para evitar ou minimizar essa ameaça.” A segunda convenção, denominada Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima foi assinada pelo Governo em Nova York em 9 de maio de 1992 e aprovada pelo Congresso brasileiro em 03 de fevereiro de 1994 através do Decreto Legislativo n.º 1, passando a vigorar para o Brasil a partir de 29 de maio deste mesmo ano. Diz, em seu Artigo 3, Princípio 3, que “as partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”. O acesso a tais textos poderá ser feito através do site oficial da Câmara dos Deputados em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2519.htm> e <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2652.htm>, respectivamente. Acessos em: 13 mar. 2007.

no âmbito das relações jurídicas internacionais, o seu reconhecimento como princípio de direito consuetudinário.

Porém, no que se refere à determinação de seu estatuto jurídico e à sua inserção no ordenamento pátrio, esta não se reduz às suas menções em referidos documentos internacionais. Deve-se considerar, antes de mais nada, que a Constituição de 1988 traz em seu texto uma série de outros princípios, expressos e implícitos, unanimemente reconhecidos como vigentes e aplicáveis na proteção ambiental e na preservação da vida, dos quais o Principio da Precaução, numa análise sistemática do texto constitucional, é decorrente, conforme se verá.

Além de tudo isso e considerando especificamente as previsões legislativas referentes à biossegurança, este vem a surgir de forma expressa na legislação infraconstitucional, a partir da promulgação da Lei n.º 11.105 de 25 de março de 2005, não havendo o que discutir quanto à sua aplicabilidade como princípio (bio) jurídico, no que se refere às diversas atividades ali previstas envolvendo organismos geneticamente modificados, análise esta que se constituirá na principal abordagem do capítulo final deste trabalho.