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“Casa é liberdade. Desde o momento em que a casa nos prende, não é mais casa. Hoje já não tenho mais condições de me segurar numa casa com portas e janelas (...) Moradia é um lugar sem tijolos. O povo da rua sonha, não quer se preocupar com paredes. A casa acorrenta. A casa escraviza. Torno a dizer: Liberdade, liberdade...”.

Pensamentos de Cinira, moradora de rua, em

188 O CORPO E AS DEMARCAÇÕES DE ESPAÇO

A situação de morar na rua cria uma desvinculação material e simbólica do espaço da casa nos moldes da “parede, janelas e portas”, tal como Cinira descreve acima. O tempo longo de estada e circulação torna a condição de rua, voluntária ou involuntariamente, uma realidade menos transitória. Na errância contínua que torna essa estada possível, a casa de tijolos pode ainda permanecer como um desejo para alguns, mas passa a ser uma perspectiva menos palpável, e a possibilidade de deslocamento no espaço urbano passa a condicionar seu modo de vida. Assim, é pelos mecanismos instáveis, errantes e moventes do espaço urbano que o morador de rua vai tornando o corpo a teia a partir da qual vai demarcando os limites de seu espaço privado.

Alguns moradores de rua optam radicalmente por essa errância, outros esperam por uma casa nova o tempo todo. Há ainda os que erguem habitações constituídas de uma temporalidade frágil, pois, além de estarem situadas em espaços de intervenção urbana constante e hostil à sua permanência, são vulneráveis. Nas habitações informais da Praça metrô Brás, os cadeados e as paredes de compensado e papelão que moldam a casa de Carmem e Seu Joaquim não são fortes o bastante para impedir a entrada de pessoas, o roubo, a importunação. O uso da peixeira ou de outras facas evidencia uma forma usual de manter a proteção atada ao corpo.

O espaço marcado pelas habitações não é suficiente para incorporar as separações funcionais associadas ao mundo privado e doméstico referenciado nas experiências urbanas contemporâneas. Isso tanto diz respeito aos lugares para exercer funções fisiológicas, como vimos no capítulo anterior, quanto ao espaço para cozinhar, para compartilhar a intimidade amorosa, com seus carinhos e conflitos, para as práticas de sexualidade. Tudo isso, portanto, é feito em limites espaciais precários – com ou sem cobertura de papelão e plástico –, colocando em questão o sentido da casa como espaço da intimidade.

O movimento de expulsão dos moradores de rua para os domínios abertos e públicos do espaço urbano, simultaneamente acompanhado dos procedimentos de subtração de equipamentos que facilitem sua estada na cidade torna essas pessoas superexpostas nas ruas. Nelas, os moradores têm que gerenciar a redução das dimensões pública e privada de sua vida. Levando em conta que o espaço da rua não é formatado, na urbanidade contemporânea, para a exposição e

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realização de práticas do mundo privado, a construção deste último no universo do morador de rua depende de forma inequívoca da corporalidade dos sujeitos que o habitam.

No contexto da rua, há perda do espaço da casa - portanto, do contexto imediato no qual a construção da identidade social costuma acontecer –, e da experiência doméstica tradicional a que normalmente estão relacionados os atos rotineiros de reprodução social. Conseqüentemente, fora da proteção do olhar público, os moradores de rua constroem, na política espacializada entre dois sítios de experiência física, social e política – o corpo e o espaço urbano –, o seu mundo privado1. A casa está, desta forma, contida nas manifestações cotidianas corporais desse segmento: nos gestos que delimitam distâncias, nas dramatizações corporais, na domesticação das calçadas e viadutos.

A marcação dos limites privados no próprio corpo não necessariamente evita as tentativas incessantes de eliminação do mesmo; não previne os moradores de rua das agressões ambientais e humanas nem do perigo da morte. A privação de um abrigo adequado, a exposição ao frio, as possibilidades iminentes de um ataque criam uma atenção constante dos sentidos – particularmente da visão e do ouvido – e contribuem para a enorme tensão emocional e física, gerando diagnósticos constantes de hipertensão, gastrite, pressão alta, processos de sofrimento mental, entre outros2.

Os moradores de rua vivenciam a contradição entre um padrão de intimidade e de vergonha arraigado, e a superexposição de seus corpos. Quando iniciamos um diálogo com um deles, surgem muitas das explicações ansiosas sobre sua trajetória, procurando justificar o fato de não ter uma cozinha ou roupas limpas, de ter vizinhos que “fazem aquelas coisas indecentes”. Pede para que não reparemos na bagunça, na aparência suja e mal-vestida, ou “com o perdão da palavra, nas coisas feias que esse aí fala”. Acentua, muitas vezes, as representações de moralidade, de um comportamento social e corporal em completa dissonância com a dinâmica da rua. O constrangimento deles é evidente.

1 N. Smith, Neil, 2000, op. cit.

2 Segundo os dados do Razin, dos 315 diagnosticados nos três meses de cadastro de seu trabalho, 14% foram diagnosticados como hipertensos, e 10% tinham gastrite. Segundo os depoimentos de funcionários do refeitório, são freqüentes colapsos nervosos repentinos nessa população. Muitas vezes, a causa é tensão nervosa; em outros casos, ela decorre do alcoolismo. De todo modo, ambos os diagnósticos estão imbricados.

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Por um lado, o morador de rua redimensiona, re-situaciona seu corpo3. Se a forma, a norma e a estrutura dos mecanismos e movimentos do espaço urbano filtram e afetam os elementos que contribuem para a constituição da corporealidade, esta reage realinhando e re- inscrevendo os domínios públicos e privados diante da espacialidade específica em que se encontra. Eles criam uma outra condição subjetiva, muitas vezes contraditória, entre tais limites. O corpo do morador de rua traz os fragmentos de sua vivência itinerante e “disruptiva”. Perde-se, geográfica e socialmente, das formas identitárias anteriores no espaço amplo da cidade, e se recoloca, atravessando as fronteiras urbanas que lhe são impostas.

Assim, os habitantes de rua anestesiam surpreendentemente os sentidos perante os efeitos excessivos do urbano a que estão expostos o dia inteiro, como a poluição visual, garantida pelos

outdoors, pelo trânsito e pelo excesso de imagens das metrópoles; ou a auditiva, provocada pelos

barulhos infernais dos viadutos, das sirenes de polícia, da maré do tráfego de ônibus, carros e caminhões, pelos barulhos de fábricas, trens, metrôs. Estes aspectos do urbano transformam-se em um ritmo de audição e visão confortáveis aos moradores de rua. Quando estão há muito tempo na mesma praça ou calçada, eles assimilam tais sons e imagens a seu cotidiano.

Por outro lado, esses mesmos sentidos são aguçados a fim de se perceber o mal aparentemente anônimo presente nas pilhagens noturnas e nas agressões físicas e verbais iminentes. Ouvidos e olhos se detém na dinâmica das relações da “vizinhança”, para o que se fala ou se deixa de falar à sua volta, para as abordagens de transeuntes ou de entidades assistenciais, para os possíveis contatos corporais que podem lhe cercar durante o dia. De um modo geral, elas se preparam para a defesa, colocando-se ora na posição de caça, ora na de caçador, em meio ao cotidiano de visíveis tensões sociais.

Outra reinscrição torna visível a manipulação corporal dos habitantes de rua na circulação pelo espaço urbano. A partir de uma pesquisa sobre mímese corpórea transformada em um espetáculo, três atrizes do Lume (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais/Unicamp)4 apresentaram uma leitura dessa corporalidade.

3 E. Grozs, 1999.

4 A técnica de interpretação teatral é denominada mimesis corpórea ou imitação de corporeidades. Essa técnica, bastante trabalhada nos estudos do Lume, implica apreender matrizes corpóreas e vocais pela observação, imitação e codificação de ações físicas e vocais observadas no cotidiano.

O primeiro trabalho dentro dessa perspectiva de dramatização que diz respeito à temática do morador de rua é do próprio Lume. O espetáculo “Um Dia” trata de situações de trauma profundo que incluem, entre outras, a de

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Entre outros aspectos, chamou-me a atenção o fato de que, segundo as atrizes, na quarta fase da etapa de construção de seu trabalho, elas costumavam ir ao zoológico para a observação e composição física de seus personagens. Elas detectaram semelhanças entre comportamento de animais, particularmente, dos macacos, e a dinâmica corporal das pessoas da rua:

“A relação que estabelecem com o próprio corpo e também com o espaço, principalmente o chão, são quase comuns. É impressionante perceber que qualquer um de nós, vivendo longe das condições de higiene a que estamos habituados e sem todo o aparato de cadeiras e mesas que nos cercam, estaríamos muito próximos daqueles macacos. (...)”.5

De acordo com o procedimento metodológico dessa mimesis, não se tratou de uma transferência mecânica dos aspectos do comportamento animal para o mundo da rua. Porém, as observações feitas se referem a um comportamento reconhecível nas ruas, particularmente, naqueles moradores que estão nelas há mais tempo e totalmente desconectados de outros vínculos sociais. As atrizes identificaram formas de aderência corporal nos espaço amplos da cidade que, no entanto, privam esses sujeitos dos equipamentos “civilizatórios” e de conforto (tal qual a cadeira ou a cama) e que, simultaneamente os prende no vazio espacial que esse limiar impõe. Como uma forma de resposta às condições nas quais se encontram, vemos pessoas deitadas encolhidas nas calçadas, a mão na cabeça; de cócoras com o olhar longe, coçando suas partes íntimas, catando piolhos.

Porém, opondo-se a essa “primitivização” 6 imposta pela ausência de condições materiais que permitam a experiência dos padrões civilizatórios de comportamento7, contornos e linhas de casas são marcados nas calçadas, espalhados em inúmeras ruas na cidade. Como é o caso de uma mulher que, todas as noites, no calçadão do centro da cidade, em frente a uma loja, formava um mendigos, presidiários e a do Holocausto judeu. Para o estudo de movimentos corporais ligados ao tema e para a posterior construção dos personagens, os atores do Lume recorreram a observações nas ruas de São Paulo, assim como a uma série de leituras. Após um tempo de estudo e apreensão dos movimentos observados, construíram um interessante espetáculo, no qual o morador de rua aparecia em destaque por meio de suas manifestações corporais. 5 Colla, et alli, op. cit, p. 110.

6 A falta de uma “tecnologia” aplicada ao cotidiano que proporcione conforto, modos de sentar, comer, dormir padronizados em nossa sociedade contemporânea cria uma adequação corporal dessa população para o exercício dessas funções.

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retângulo de caixas de madeira, desenhando sua habitação, defendendo-a ferozmente de quem chegasse perto. Ou o caso de homens que marcavam com giz as divisórias de sua casa na calçada, interrompendo o fluxo de passagem na mesma.

Com o tempo, os moradores de rua vão ganhando uma sensação muito forte de autonomia, associada à potencialidade de deslocar-se constantemente quando da iminência de um conflito ou quando assim desejarem, e ao manejo maleável e produtivo de suas relações com as entidades. Se por um lado, o fato de irem se mimetizando no espaço urbano gera crises identitárias e perigos físicos iminentes, por outro, facilita sua circulação e seus meios de obter recursos, além de criar uma sensação de liberdade. Os que estão há tempos na rua apresentam uma espécie de aversão ao espaço fechado, que é ilustrada, em termos metafóricos, com as expressões de Cinira: as paredes e portas não lhe confortam mais.

Esse incômodo, perceptível nas falas nas ruas, nas inquietações dentro de lugares de reunião, entidades assistenciais, entre outros, constitui uma das queixas com relação aos albergues. A “fobia” pode ser traduzida na dificuldade crescente que os habitantes de rua criam, com o tempo, para se submeter às regras de outrem, sejam elas institucionais ou pessoais. As fronteiras que demarcam seu espaço e sua identificação a ele nas ruas são, na maioria das vezes, materialmente invisíveis, mas significativamente fortes.

Pensar de que forma as fronteiras corporais se delineiam é uma tarefa infinita: as marcas corporais e a interface táctil com as paredes de proteção (os materiais recicláveis), descritas no capítulo anterior, constituíram uma primeira fronteira. Neste capítulo, porém, vou dar foco a algumas questões nas quais pude perceber outras delineações, particularmente ligadas a chaves fundamentais do mundo da intimidade e da forma de serem praticadas no universo da rua. Cada uma dessas dimensões se abre para uma série de outras questões, que aqui não puderam ser trabalhadas mais profundamente. Mas trazê-las à tona propiciou de forma inspiradora a reflexão sobre as fronteiras de público e privado com as quais operam os habitantes das ruas em São Paulo.

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O espaço marcado por gênero

Uma noite, andando nas ruas do centro, junto com educadores sociais, deparamo-nos com um senhor magro, completamente alcoolizado, que balbuciava algumas frases. Nós nos aproximamos, e ele contou uma vaga história a respeito de ter que pegar ônibus para uma cidadezinha pequena próxima e, em seguida, nos pediu dinheiro. Dissemos que não tínhamos, mas que se ele quisesse poderíamos ligar para a CAP para que o conduzisse a um albergue até o dia seguinte. O homem não aceitou. Muito trôpego, saiu pela calçada larga da avenida, dizendo frases sem sentido.

Como estávamos fazendo trabalho de abordagem, ficamos andando pela avenida. Em alguns minutos, vimos que o homem caminhava por ali e resolvemos dar-lhe o telefone da CAP. Ao nos aproximarmos, percebemos que ele chegava perto de pessoas que estavam à beira da porta de uma loja. À direita havia um casal dormindo abraçado sobre papelões e envolto em cobertores cinzas. Do lado esquerdo, uma mulher, com o corpo também envolto em uma coberta, deitava-se de lado. Ela fechara os olhos para dormir, mas se via que estava desperta, olhando de soslaio o homem que se aproximara.

Ele estava de pé, muito próximo desta mulher. Nós nos aproximamos para dar o telefone do serviço. Ele, ainda olhando para a mulher, disse-nos em alto som: “Mas o que eu quero, o que

eu preciso, é de uma esposa, eu preciso de uma esposa!”. Continuava a se aproximar da mulher.

Nossa tensão era evidente. O homem estava trôpego, mas era forte. Já o imaginávamos atacando a mulher que ele fitava. O casal ao lado estava desperto e atento. Percebi que, se fosse necessário, eles interviriam. O homem permanecia impassível em sua decisão de se aproximar.

A mulher não se moveu. Continuou deitada de lado. Em um determinado momento, ela levantou a mão em direção a ele, o polegar e o indicador apontados para ele, os demais dedos recolhidos, um gesto que lembrava um revólver. Estendeu a mão e ficou, com os olhos fechados. Ao perceber o movimento, o homem recuou um pouco, embora continuasse a gritar que precisava de uma esposa. Nós nos cansamos de tentar convencê-lo a sair dali e, impotentes, retomamos nosso trabalho. Ele lá ficou, cambaleante, encarando o gesto imperativo da mulher, o qual eu considerava pouco eficaz no caso de o homem decidir realmente atacá-la8.

8 Caderno de campo, maio de 2003.

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O espaço da rua é composto de signos, discursos, práticas e pertinências relativas a um universo eminentemente masculinizado. A construção mais recorrente da figura do morador de rua é a do homem só, provedor desempregado que circula para procurar trabalho e acaba ficando nas ruas. A mulher foi entrando gradualmente no universo da rua, desalojando os limites do espaço ao qual está circunscrita nas práticas e representações, ou seja, a casa. Mas sua presença não foi suficiente para alterar os padrões de classificação de gênero presentes.

O homem só, adulto, e em idade produtiva ainda configura o perfil majoritário dos habitantes de rua em São Paulo. Como descrito no Capítulo 2, a partir da década de 1990, as famílias passaram a ganhar visibilidade e acrescentaram outras imagens para a situação de rua. Porém, o habitante de rua morando sozinho é a realidade quantitativa mais evidente, bem como o perfil mais significativo. As mulheres, por sua vez, são encontradas tanto como parte destas famílias quanto inseridas na dinâmica solitária associada à rua, ainda que em número bem inferior.

Tomemos os dados mais recentes: no Censo de 2000, foi registrado 84,2% de homens e 15,1% de mulheres na rua. Na estimativa da Fipe de 2003, a porcentagem permaneceu praticamente inalterada nos logradouros: 80,3% de homens e 15,4% de mulheres. Nos albergues, a proporção de homens e mulheres é, em 2000, de 84, 9% e 14,3%, respectivamente, e 87,2% e 12,4%, em 20039. De uma maneira geral, a diferença quantitativa entre os sexos permanece grande. O aumento gradual das mulheres modificou um pouco a paisagem urbana, no sentido em que se vê um número notável de casais e de mulheres perambulando.

As mulheres que vão para a rua saem de seus contextos familiares e domésticos por inúmeras razões. Uma das mais elencadas é a violência doméstica, a qual atinge adultas e adolescentes, e efetuada por pais, padrastos, maridos, familiares. Outras mulheres vão a São Paulo, sem dinheiro e sem referências, procurar seus maridos migrantes que prometiam voltar acabam se tornando o chefe provedor da família. Algumas chegam acompanhadas de seus filhos, outras sozinhas. Há ainda as que vão para as ruas com seus cônjuges e, muitas vezes, separam-se deles. Várias são idosas e estão na rua em função da quebra de laços com parentes, ou do

9 Secretaria Municipal de Assistência Social, 2000, op. cit. Secretaria Municipal de Assistência Social/FIPE, 2003,

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abandono dos filhos. E, por fim, a dependência de álcool e drogas constitui outro dos motivos que levam mulheres para as ruas.

O circuito da rua é revestido do discurso da masculinidade. Gestos e expressões verbais associados tradicionalmente à afirmação da virilidade são utilizados o tempo todo; da mesma forma, a afirmação da necessidade de se trabalhar reforça seu papel de provedor e sua honra masculina10. Mas a qualidade do masculino projetada nos discursos e práticas que envolvem o universo da rua não é necessariamente incorporada na sua totalidade. Como nos coloca Joanne Passaro, “as pessoas de rua são homens e mulheres em crise”.11 A crise se deve ao fato de que a

situação de rua impõe um desafio aos papéis de gênero tradicionalmente compostos. Por um lado, os homens, por estarem distantes dos vínculos de pertencimento familiares e sociais e desalojados do mundo do trabalho, encontram-se em uma posição contrária àquela que é esperada deles – inclusive por parte deles mesmos – já que lá eles não correspondem ao papel de provedor:

“Para os homens de rua (homeless men) esta crise está relacionada com a posição culturalmente contraditória que ocupam – eles são vistos ao mesmo tempo como hipermasculinizados e desmaculinizados. Estes homens parecem ser independentes do controle de mulheres, famílias e sociedade, e, portanto, são considerados perigosos, violentos e agressivos. (...) acompanhando essas imagens hipermasculinizadas estão as demasculinizadas – homens de rua são homens falidos, em termos tradicionais de gênero, porque são dependentes e incapazes de se manter”.12

Por outro lado, as mulheres, cujo domínio está associado ao mundo privado e à circulação no ambiente doméstico, encontram-se deslocadas espacialmente quando “moram” nas ruas. A condição de estar na rua provoca re-interpretações diversas a respeito da imagem dessas mulheres

10 De acordo com Leczneiski, que estudou os guris de rua de Porto Alegre, a ênfase nas marcas de masculinidade também está presente entre os meninos de rua, nos gestuais e nas lutas corporais que forjam entre si, nas rimas, narrativas e canções que criam cotidianamente. A exaltação da masculinidade também se dá nas falas explícitas sobre baixo corporal e sexo, nas manifestações de desafio e agressividade e no uso abusivo de palavrões (L. Leczneiski, 1995).

11 J. Passaro, 1996.

12 Idem, p. 2. (Tradução minha).Um interessante argumento da autora é que, no caso de Nova York, são oferecidas às moradoras de rua um leque mais amplo de benefícios do welfare state que possibilita a elas sair da condição da rua. O acesso a tais benefícios depende da boa adequação dessa mulher ao papel feminino tradicional: dependentes, necessitadas, vulneráveis. No entanto, para os homens de rua – geralmente não brancos – não há tal possibilidade. (Idem, ibidem).

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e aumenta consideravelmente sua vulnerabilidade. Porém, talvez por isso mesmo, o circuito de amparo para que elas saiam da situação de rua é maior do que no caso dos homens. Passaro